Chuvas, cheias, inundações, drenagem. Como podemos preparar Lisboa?

A precipitação intensa dos últimos dias levantou questões sobre a drenagem e (im)permeabilização da cidade. Afinal, o que é o Plano de Drenagem? O que tem este Plano além dos túneis? Como se pode resolver as cheias e inundações numa das capitais europeias mais impermeabilizadas? Isto é efeito das alterações climáticas? Percorremos documentos e a…

A bacia de retenção da Praça de Espanha após um dia de chuva intensa (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

No início deste mês de Dezembro, Lisboa viveu momentos difíceis com dias de chuva intensa. Um dos momentos mais críticos foi a noite de 7 de Dezembro quando se registaram valores de precipitação elevados num curto espaço de tempo, resultando em cheias como há muito não se via na área metropolitana de Lisboa. Em Algés lamenta-se uma vítima mortal e por toda a região fazem-se contas aos estragos provocados pelas inundações.

Dados do IPMA indicam que, em apenas uma hora, chegou a cair mais de 40 mm de chuva – quase um terço da média da precipitação total para o mês de Dezembro em Lisboa (126,2 mm). Foi nas estações meteorológicas da Tapada da Ajuda e do Instituto Geofísico D. Luís, no Príncipe Real que se registaram os máximos naquela noite: 47,8 mm e 44,5 mm de precipitação, respectivamente, em apenas uma hora; 77,0 mm e 74,7 mm, se olharmos para um expecto mais alargado de seis horas. Na manhã daquele dia 7 de Dezembro, o IPMA tinha lançado um aviso laranja, o segundo mais alto, para o distrito de Lisboa; às 22h26, actualizou-o para a cor vermelha, o nível de alerta mais grave.

Dias depois, a 13 de Dezembro, outro momento crítico, tendo sido atingidos novos máximos de precipitação, de acordo com o IPMA.

“Temos um passado de impermeabilização de solos terrível, de décadas. Temos um problema estrutural na cidade porque muita dela está construída em leito de cheia, em sítios onde não deveria ter sido construída”, reconhecia José Sá Fernandes numa entrevista na Edição da Noite da SIC Notícias, a 8 de Dezembro. Sá Fernandes foi Vereador responsável pelos Espaços Verdes na Câmara de Lisboa entre 2009 e 2021. Acompanhou, por isso, a transformação da cidade nas últimas décadas. Viu também as cheias de 2014. E acompanhou a elaboração do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL).

As bacias de retenção podem ser pontos de encontro de biodiversidade (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Afinal, o que é o Plano de Drenagem?

Logótipo do Plano Geral de Drenagem de Lisboa (via CML)

O Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL) foi originalmente concebido em 2008, na altura da Presidência de Carmona Rodrigues mas revisto anos mais tarde, entre a presidência de António Costa e de Fernando Medina A versão actual entrou em vigor em 2016, com um horizonte temporal de 14 anos – ou seja, até 2030. Basicamente, o Plano faz um retrato do sistema de drenagem actual da cidade de Lisboa e propõe novas infraestruturas com vista a reforçar esse sistema, preparando-o ao mesmo tempo para um futuro de alterações climáticas.

“Havia uma ideia de Carmona Rodrigues de fazer um Plano de Drenagem constituído por vários tanques que iam retendo a água. Consultados os maiores especialistas portugueses e estrangeiros, percebeu-se que não era esse o caminho e fez-se um novo Plano de Drenagem para ser concretizado”, explicou Sá Fernandes na SIC Notícias. “Esse Plano aconselha os túneis mas aconselha outras medidas.”

O Plano original de Carmona Rodrigues (independente, apoiado pelo PSD) tinha 2006-2008 como horizonte temporal e incluía duas grandes obras: por um lado, a construção de vários reservatórios nas partes altas da cidade, para atenuar a água de grandes chuvadas que chegaria às zonas baixas da cidade e que provocaria aí cheias; e, por outro, a criação de um micro-túnel entre a Avenida Almirante Reis e Santa Apolónia para conduzir a água para o rio Tejo, por não ser possível construir um reservatório no Martim Moniz por existir lá um parque de estacionamento subterrâneo. Com Carmona Rodrigues, Lisboa ganhava um plano de drenagem pela primeira vez nos então últimos 40 anos.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Nos anos seguintes, a Câmara de Lisboa, então liderada por António Costa (PS) em dois mandatos, não conseguiu financiamento para a execução do Plano de Carmona, que implicava um investimento de 160 milhões de euros. Em 2015, é anunciada pelo novo Presidente da autarquia, Fernando Medina (PS) uma revisão do antigo Plano de Drenagem, com o lançamento da versão actual. O PGDL, a sigla pela qual ficou conhecido, passou por um período de consulta pública até ser aprovado em reunião de Câmara em Dezembro daquele ano. O novo Plano:

  • é mais ambicioso ao pensar em 100 anos em vez de 10. Isto significa que a infraestrutura construída no âmbito do Plano, fica pronta para um tempo de vida útil de 100 anos;
  • passa a falar em alterações climáticas, procurando preparar a cidade de Lisboa para um cenário de mais chuvas fortes e intensas em intervalos de tempo curtos;
  • muda a estratégia: em vez da construção de reservatórios, o novo Plano assenta na criação de bacias de retenção e na construção de grandes coletores (os túneis) que possam levar as águas em excesso directamente para o Tejo.

Sem possibilidade de financiar a execução do Plano com fundos da União Europeia, a Câmara de Lisboa virou-se para a contratação de um empréstimo no valor total de 250 milhões de euros, repartido em cinco tranches, junto do Banco Europeu de Investimento (BEI) para executar o PGDL e para, entre outras intervenções, construir os dois aguardados túneis – a parte mais cara e complexa de todo o Plano de Drenagem.

Calendário
  • 2004/06 – lançado o concurso público para a elaboração do Plano e adjudicada a tarefa ao consórcio Chiron/Engidro/Hidra;
  • Março 2008 – apresentação do primeiro Plano de Drenagem, com uma perspectiva a 10 anos e que não foi executado nos anos seguintes por falta de financiamento;
  • 2015 – revisão do Plano anterior e apresentação de uma nova proposta, o Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL) 2016-2030. Novo plano alarga o horizonte temporal de 10 para 100 anos e muda a estratégia do anterior: bacias de retenção em vez de reservatórios, e construção de dois grandes túneis de drenagem;
  • 2017 – construção dos túneis passa por Avaliação de Impacte Ambiental, com processo de consulta pública. Contratação de empréstimo ao Banco Europeu de Investimento (BEI) para a execução dos túneis, em particular, e do Plano, no geral;
  • 2018 – primeira tentativa de concurso público para a execução dos túneis. Tentativa falhada devido ao baixo valor base proposto (106 milhões);
  • 2019 – relançamento do concurso público, com novo valor base de 140 milhões.
  • Dezembro 2020 – conclusão do concurso público e adjudicação da obra por 132,9 milhões ao consórcio Mota Engil/SPIE Batignolles Internacional;
  • Abril 2021 – assinatura do contrato;
  • 2022/23 – consignação e início da obra.

Depois de elaborados os projectos de concepção e de execução dos túneis, e de uma fase de Avaliação de Impacte Ambiental, realizada ainda em 2017, foi lançado o concurso público internacional para encontrar quem executasse a obra. Em 2018, esse concurso, com um valor base de 106 milhões de euros, ficou deserto, isto é, sem propostas. Foi, então, relançado em 2019 com um novo valor base, de 140 milhões. Em Dezembro de 2020, o concurso é fechado e a obra é adjudicada por 132,9 milhões ao consórcio formado pelas empresas Mota Engil e SPIE Batignolles Internacional. O contrato é assinado em Fevereiro de 2021 pelo então Vice-Presidente da Câmara de Lisboa, João Paulo Saraiva (PS), do executivo liderado por Medina. Em 2022, a obra avança com Carlos Moedas.

Brochura sobre o PGDL (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

O que tem este Plano além de túneis?

De uma forma simplificada, o novo PGDL propõe controlar a água na origem, através de bacias que a retenham e promovam a sua infiltração no solo nas partes altas da cidade, e através de túneis, conduzir o excedente de água para o rio, evitando dessa forma cheias. A construção de dois túneis subterrâneos para levar águas directamente para o rio é apenas uma parte do Plano de Drenagem, que tem vindo a ser executado desde 2016.

O Plano inclui as seguintes grandes intervenções:

  • dois grandes túneis de 5,5 metros de diâmetro interno, um entre Santa Apolónia e Monsanto (de 5 km) e outro entre Chelas e o Beato (de 1 km), com o objectivo de captar águas em excesso em zonas específicas e de as descarregar directamente no Tejo, evitando inundações e protegendo as zonas mais baixas da cidade. Esta é a obra mais significativa do PGDL e representa um investimento de 140 milhões de euros;
  • duas grandes bacias de retenção de água a céu aberto, uma na Ameixoeira, construída em 2018, e outra no Alto da Ajuda, construída em 2019. E ainda uma intervenção do Parque Eduardo VII, executada em 2021, para melhorar a capacidade deste espaço verde quanto em reter água. As bacias de retenção ajudam a retardar o acesso de água aos colectores de drenagem da cidade, permitindo que não haja água a mais nos túneis subterrâneos. Estas bacias têm também uma função de infiltração, permitindo que a água acumulada possa infiltrar-se no subsolo em vez de ser drenada no rio;
A bacia de retenção do Alto da Ajuda permite captar água para evitar que esta chegue às zonas baixas da Ajuda, Belém e Alcântara (fotografia de Lisboa Para Pessoas)
  • um micro-túnel no Parque das Nações, com 325 metros de comprimento, 1,2 metros de diâmetro interno e 9 metros de profundidade, e que leva água de uma bacia próxima da Gare do Oriente (Avenida de Berlim) para o rio Tejo. A construção deste pequeno colector ficou concluída em 2020. Foram ainda melhorados cinco pontos de descarga de água de chuvadas no Tejo na zona do Parque das Nações;
  • a ligação de bacias de retenção já criadas em diversos parques e jardins ao sistema de drenagem da cidade. A saber: Parque Oeste, Campo Grande, Quinta da Granja, Vale Fundão e Vale de Chelas. Esta intervenção ainda está por fazer;
  • obras várias no sistema de drenagem actual (reforços de colectores, melhorias do escoamento de superfície com sarjetas/sumidouros, controlos de caudais, etc). Esta parte do plano está ainda, na sua maioria, por executar.

Antes de se ter começado a executar o Plano Geral de Drenagem, Lisboa realizou algumas intervenções neste âmbito. Por um lado, acabou-se com os esgotos no Tejo (o grande receptor de água de Lisboa), com o encaminhamento de todas as chamadas águas residuais domésticas para tratamento numa ETAR. Fizeram-se ainda intervenções nas zonas baixas da cidade para melhorar a descarga das águas pluviais no rio, e foram instalados medidores de precipitação e de caudal nos colectores. Segundo Sá Fernandes, fez-se ainda um trabalho ao nível da impermeabilização dos solos: “Desde 2008, passámos a não permitir mais impermeabilizações de solo. Acabámos com todos aqueles loteamentos que estavam previstos em vales, em leitos de cheia, em sítios com bacias de água”, explicou na mesma entrevista, dando o Vale da Montanha – entre o Areeiro e Chelas – como um exemplo de onde se criou um parque urbano integrado num corredor verde. “Conseguimos um PDM, que existe desde 2012, para que essa regra [da não impermeabilização] fosse clara para todos.”

O Parque Oeste, na Ameixoeira, é parte de um amplo Corredor Verde (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

O PDM, em vigor desde 2012, fala efectivamente na promoção do “aumento das áreas permeáveis no espaço público, enquanto contributo para o aumento da permeabilidade do solo na cidade”, ou do “aumento da presença do verde e da área permeável na cidade, nomeadamente no espaço público, nos interiores de quarteirão e nas coberturas das garagens”, com vista ao mesmo objectivo. Fala também na “protecção da permeabilidade dos logradouros” e na “formalização de corredores ecológicos”, protegendo algumas áreas onde hoje se desenrolam parques verdes e urbanos – Vale da Montanha, Vale do Fundão, Rio Seco, etc. Mas o PDM também “liberalizou os usos do solo, abrindo a porta a ocupações excessivas e desadequadas. Urge inflectir caminho, planeando adequadamente as ocupações do solo da cidade, revertendo ou corrigindo situações indutoras de risco” – palavras da actual Vereação do PCP na Câmara de Lisboa, enviadas às redacções aquando das recentes cheias. Criticas que PEV tinha já feito em 2018 na Assembleia Municipal, quando aprovou uma recomendação pela “valorização e preservação do Solo como recurso fundamental na cidade”.

A drenagem além do Plano

Seja como for, numa cidade, a drenagem é importante para a cidade independentemente das mudanças que experienciamos e que experienciar viver ao nível do clima. O agora Plano Geral de Drenagem de Lisboa (PGDL) procura modernizar e aperfeiçoar o sistema de drenagem já existente na cidade. Sim, Lisboa tem, claro, um sistema de drenagem. É um grande sistema, composto por bacias, colectores (túneis) e outros equipamentos, e que procura a infiltração das águas pluviais (da chuva) no subsolo ou a sua retenção e condução para o rio. Se a drenagem da cidade tem toda uma infraestrutura que escapa ao nosso olhar por estar subterrânea (o caso dos colectores) ou por ser visível apenas quando chove (o caso das bacias), há uma parte importante dela que pisamos todos os dias: as sarjetas ou sumidouros, para onde escorrem as águas dos passeios e estradas.

Uma sarjeta (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

O sistema de drenagem de Lisboa divide-se, na verdade, em três – um para cada zona hidrográfica da cidade. Cada sistema é composto por pontos de captação de água (a dita água pluvial), por uma rede de colectores que a transporta, por uma ETAR onde essa água é tratada, e por pontos de descarga no rio Tejo:

  • o sistema de drenagem de Alcântara, que serve os concelhos de Oeiras e Amadora, mas também uma boa parte de Lisboa. É o maior sistema de drenagem da cidade, envolvendo toda a área de Algés, Alcântara, Ajuda, Belém, Cais do Sodré, e também Benfica, Campolide, Avenidas Novas, a Avenida da Liberdade e sua envolvente, o eixo da Avenida Almirante Reis e Martim Moniz, a Baixa da cidade, e Alfama. Este sistema é composto por vários colectores (túneis) que transportam a água recolhida para o Caneiro de Alcântara, que une as águas da antiga ribeira de Alcântara com as águas residenciais (vulgo esgotos) e as águas pluviais das zonas referidas; o Caneiro de Alcântara está ligado à ETAR de Alcântara onde é feito o tratamento de toda a água antes de esta chegar ao Tejo;
  • o sistema de drenagem de Chelas, que faz fronteira com o de Alcântara em Santa Apolónia e apanha toda a parte ribeirinha da cidade até aos Olivais. Recebe também as águas da Graça, Penha de França, Chelas, Bela Vista, Campo Grande, Alvalade, Lumiar, Alta de Lisboa e Santa Clara. A norte, faz fronteira com a bacia de drenagem de Odivelas. O sistema de Chelas está associado à ETAR de Chelas;
  • o sistema de drenagem de Beirolas inclui toda a freguesia dos Olivais e do Parque das Nações (incluindo Moscavide e Sacavém), uma parte do Beato e de Marvila, o Aeroporto de Lisboa e uma parte do concelho de Loures. Está associado à ETAR de Beirolas.

Os pontos de captação mais comuns de água são as sarjetas (ou sumidouros), para onde escorrem as águas que os colectores transportam até às ETARs para tratamento – daqui são descarregadas no rio (nem sempre mas já iremos às excepções).

Avenida da Liberdade (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Lisboa, uma capital impermeabilizada

Sá Fernandes olha para a construção dos túneis de drenagem como “uma redundância” porque, diz, “já não conseguimos permeabilizar o que foi impermeabilizado”. “Preferia muito mais tirar terrenos que estão impermeáveis hoje e torná-los permeáveis, mas face à cidade que temos [a construção dos túneis] é uma inevitabilidade”, referiu o ex-Vereador.

Segundo uma análise da Agência Europeia do Ambiente, realizada com imagens de satélite de 2006 e partilhada em 2011, Lisboa é a quarta cidade mais impermeabilizada da Europa – fica atrás de Bucareste (Roménia), Tirana (Albânia) e Varsóvia (Polónia). A capital portuguesa conta com 60,66% do seu solo impermeabilizado, isto é, ocupado por edifícios, estacionamento, asfalto e outras infraestruturas que impedem a infiltração da água.

Gráfico via Agência Europeia do Ambiente

É nesse contexto de impermeabilização que o PGDL pode ser importante, captando a água que não consegue entrar no solo e levando-a por túneis estilo auto-estrada até ao Tejo. No fundo, é “passar a água do ponto A para o ponto B e a deitá-la no rio rapidamente, quando precisamos dela, porque é um recurso cada vez mais necessário”, diz Aurora Carapinha. Para a arquitecta paisagística, discípula de Gonçalo Ribeiro Telles, o PGDL não pode ser uma solução única para as cheias e sozinho não chega. “Temos que fazer planos de gestão do ciclo da água e ter políticas de ordenamento que percebam que os territórios não podem aguentar uma construção infinita. Os recursos solos e água são fundamentais na gestão política urbanística”, disse numa entrevista ao Público.

Nessa curta conversa, Aurora Carapinha explica que é importante permeabilizar a montante das zonas de cheias (ou seja, nas partes altas) para promover a infiltração da água no solo, mas também permeabilizar as partes baixas (que tendem a inundar) pelo mesmo motivo. “Basta ter mais áreas verdes em determinadas zonas, mais jardins, o que não quer dizer que se tirem todas as estradas ou vias. Durante muitos anos chamou-se a atenção para a necessidade de não impermeabilizar os logradouros da Baixa Pombalina, em Lisboa, que deixavam a água entrar no solo”, disse. “Quanto mais água entrar no solo melhor, porque estamos a usar os métodos do ciclo da água. É fazer com que a água não se perca, porque é um disparate perdermos esta água toda que choveu.”

No Jardim do Campo Grande, a água fica propositadamente retida para infiltrar-se, devagar, no subsolo, evitando-se cheias e inundações na zona (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Logo no início do documento de várias páginas em que consiste o Plano Geral de Drenagem, é referido que este Plano não é a solução única para as cheias e inundações, devendo a acção ser integrada com “com o desenvolvimento da cidade preconizado no Programa Diretor Municipal (PDM), com as boas políticas em matéria de adaptação climática e com as acções previstas noutros programas em desenvolvimento na cidade”. Ou seja, este Plano não resolverá tudo no que toca a cheias, principalmente por Lisboa ser uma cidade altamente impermeabilizada. No entanto, a Lisboa de 2006 não é a mesma nos dias de hoje. Nos últimos anos, desenharam-se corredores verdes e concretizaram-se alguns; nasceram novos parques urbanos; fizeram-se pequenas bacias de retenção em vários pontos da cidade; reservaram-se terrenos para agricultura urbana.

A recente transformação da Praça de Espanha num Parque Urbano – com o nome de Gonçalo Ribeiro Telles – é um exemplo das adaptações que Lisboa tem vindo a fazer. Aqui existe hoje um amplo relvado central que, em dias de muita chuva, ganha um lago – é a água a acumular-se e a ficar retida enquanto não consegue infiltrar-se no solo ou enquanto não escorre ribeira abaixo. Sim, na Praça de Espanha existe também uma ribeira temporária nos dias mais chuvosos, permitindo que essa água do lago e outra que por ali escorra seja direccionada para o sistema de drenagem; dali entra na rede de Alcântara e irá parar ao Caneiro. Nestes dias de precipitação intensa foi quando a bacia de retenção da Praça de Espanha mais provou a sua função, apesar de a sua envolvente continuar a inundar. Falamos de inundações não só na Avenida de Berna mas também no novo cruzamento rodoviário da Praça, relevando existir um qualquer problema na condução dessas águas para a nova bacia de retenção.

Bacia de retenção planeada para a Praça Espanha (DR)

Na entrevista que já citámos, Aurora Carapinha lembra-nos que Lisboa assenta em várias ribeiras, como a sua toponímia indica. “Na Avenida de Berna, por exemplo, passava a vala do Rego, por isso é que há ali o Hospital do Rego. Essa vala do Rego recebia todas as águas da encosta de São Sebastião da Pedreira e daquela zona”, conta. “As ribeiras [em zonas urbanas] não podem ser cortadas. Não quer dizer que tenham de sofrer processos de renaturalização, mas temos de respeitar a escorrência da água dos pontos altos para os mais baixos.” Ao longo dos seus anos de crescimento, Lisboa escondeu as suas ribeiras – foram encanadas algures por baixo das ruas e avenidas. Há mais exemplos além do que Aurora deu. A ribeira de Arroios, que percorre o eixo da Almirante Reis, a ribeira de Valverde, que vive debaixo da Avenida da Liberdade, ou a ribeira de Alcântara, que corre no Caneiro de Alcântara, de que já falámos, misturada com esgotos domésticos.

Trazer esses ou outros cursos de água semelhantes para a superfície, integrando-os no espaço público da cidade, pode fazer sentido também numa lógica de renaturalização da própria cidade. Essa discussão deu-se, aliás, em Alcântara quando, em 2021, o partido Livre propôs recuperar a sua ribeira, separando-a das águas residuais domésticas e tirando-a do Caneiro. A ideia passava por colocar a ribeira essa correr ao longo da Avenida de Ceuta, no Corredor Verde do Vale de Alcântara que está ainda por concluir, algo que o projecto original não prevê (o plano é criar um curso de água artificial, alimentado pela ETAR de Alcântara).

Praça de Espanha (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Também na nova Praça de Espanha estaria prevista a renaturalização da ribeira do Rego, hoje escondida debaixo do solo. “A proposta defende a renaturalização do caminho natural da água, promovendo a instalação de um ecossistema húmido, em coexistência com os restantes sistemas da cidade, naturalmente bio diverso, produtivo, com todos os benefícios que daí advém, uma atmosfera mais limpa, jardins mais fáceis de sustentar, uma cidade mais fresca, mais resiliente as alterações climáticas, uma cidade mais bonita”, podia ler-se na descrição do conceito do projecto, assinado pelo atelier de arquitectura paisagista NPK.

Trazer a água de novo para a superfície da cidade, em determinados momentos e em determinados espaços, significa aumentar a permeabilidade da cidade, mas também torná-la mais agradável com novas zonas para estar e apreciar a biodiversidade que, inevitavelmente, se juntará em torno desses cursos hídricos. A forma como pavimentamos a cidade tem muito a ver com este assunto de valorização da água e da promoção da sua infiltração no subsolo. Parques de estacionamento automóvel, por exemplo, podem e devem ser ter um piso permeável que permitam à chuva entrar entre blocos de cimento em vez de um piso de alcatrão. E em alguns arruamentos da cidade, nomeadamente ruas de bairro, podemos usar blocos de granito em vez de asfalto para não só convidar automobilistas a reduzir a velocidade, mas também para permitir que a água possa infiltrar-se.

Parque Eduardo VII (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

E sim, os corredores verdes. Falta falar deles. Idealizados muitos deles por Gonçalo Ribeiro Telles, os corredores verdes são conjuntos de parques urbanos, que estão ligados entre si e onde é possível caminhar, pedalar, apreciar a Natureza, cultivar, praticar desporto, espairecer, brincar… Muitos desses corredores preenchem vales, como é o caso do Corredor Verde Oriental, que liga os parques urbanos da Bela Vista, Vale da Montanha, Casal Vistoso, Vale de Chelas, Vale Fundão e Quinta das Flores, e termina no Parque Ribeirinho Oriente, junto ao rio e por sua vez conectado a todo a área ribeirinha do Parque das Nações.

Em muitos desses corredores e parques, foram criadas bacias de retenção. Já em cima falámos delas associadas ao PGDL, mas a maioria destas bacias existentes hoje em Lisboa não estão directamente ligadas aos colectores de drenagem, servindo sobretudo para acumular água e promover a sua infiltração mais lenta. Na verdade, as bacias de retenção têm essa importante função de atenuar o caudal de água que escorreria para zonas baixas, provocando cheias, ou que iria esgotar a capacidade dos colectores e da rede de drenagem. Estas bacias podem também ter uma função anti-poluição, “guardando” as águas pluviais (que podem estar poluídas ou contaminadas) quando os sistemas de tratamento não têm capacidade para fazer face aos caudais afluentes.

Uma bacia de retenção no Parque Urbano da Quinta da Bela-Flor, que pertence ao Corredor Verde de Alcântara, ainda em construção (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Alterações climáticas?

Se chuvadas fortes, com quedas de água intensas em espaços temporais curtos, sempre aconteceram, as alterações climáticas irão torná-las mais frequentes. Lisboa conta com um Plano de Ação Climática (PAC), elaborado em 2021 e com o horizonte temporal de 2030, com uma Estratégia Municipal de Adaptação às Alterações Climáticas (EMAAC), documento de 2017, e ainda há o Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas da Área Metropolitana de Lisboa (PMAAC-AML). Em todos os documentos, é unânime: Lisboa, a cidade e a região, será afectada por eventos de precipitação intensa, que ocorrerão mais vezes e com maior magnitude, e pelo aumento do nível médio da água do mar. Estará, por isso, mais susceptível a cheias e inundações. E, por isso, será essencial que cidades como Lisboa se preparem com sistemas de drenagem mais eficazes para ajudar a que a água que cai, e que tende a ir para as partes baixas da cidade, possa ser devidamente encaminhada.

Numa das primeiras partes do PGDL lê-se, neste sentido:

“As situações de inundação são frequentes, em particular nas zonas baixas e planas da cidade e situadas a jusante de bacias hidrográficas de grande dimensão e com uma ocupação significativa, como é o caso das zonas baixas de Alcântara e de Chelas. As redes de drenagem destas áreas, junto ao estuário, estão sujeitas às marés e possuem uma reduzida disponibilidade gravítica para o escoamento dos caudais gerados a montante. A situação tem tendência a agravar-se devido à crescente ocupação de território e ao efeito de alterações climáticas, nomeadamente no que respeita ao aumento do nível médio de água do mar e ao aumento da probabilidade de ocorrência de eventos extremos de precipitação. Essas situações constituem desafios particularmente difíceis de resolver.”

– PGDL 2016-2030

Mas as alterações climáticas representam um desafio também para os próprios sistemas de drenagem. Nas mesmas primeiras páginas, pode ler-se:

“Os impactos das alterações climáticas no sistema de drenagem estão, sobretudo, associados à subida do nível médio das águas do mar nas zonas baixas da cidade de Lisboa e ao possível aumento da frequência e magnitude dos fenómenos extremos de precipitação, de curtas durações. Acresce o impacto do aumento da variabilidade do regime de precipitação, com o provável aumento da duração dos períodos secos que, associado ao aumento da temperatura do ar, condicionará as condições de autolimpeza dos coletores e proporcionará a ocorrência de odores, seticidade, toxicidade e corrosão.”

– PGDL 2016-2030

As cheias e inundações a que assistimos nos últimos dias, devido a níveis de precipitação intensos em espaços temporais curtos, podem fazer-nos olhar para a água e para a sua presença na cidade com outros olhos. E podem, também, fazer-nos identificar e a valorizar a rede de drenagem nas suas diferentes formas, algo que se calhar nos passava ao lado nas nossas vidas quotidianas tão atarefadas. Que tiremos um ensinamento disto tudo: o que é drenagem, o que são bacias, e o que se pode fazer para melhor cuidar da nossa água.

A agricultura urbana enriquece os solos e promove a permeabilização (fotografia de Lisboa Para Pessoas)
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