Liliana Madureira e Gabriela Araújo apresentam uma história infantil para mostrar aos mais novos (e também aos mais velhos) que as ruas podem ser diferentes daquilo a que estão habituados.
Não é uma história infantil. Ou talvez seja. Ou então é uma história para crianças e também adultos. Bem, o certo é que Liliana e Gabriela queriam criar um livro para mostrar aos mais novos como as suas cidades podem ser diferentes – com mais espaço para brincar, por exemplo – e levá-los numa viagem de mudança, trazendo os pais consigo.
“As crianças são o melhor do mundo. Pode ser um chavão, mas para mim é uma premissa. Sempre adorei a criatividade, o facto de ainda estarem em crescimento, permeáveis, curiosas, expressivas, sinceras…”, explica Liliana Madureira, que ao longo da sua vida profissional tem desenvolvido projectos com os mais novos, do Brincapé aos Comboios de Bicicleta. “Adoro trabalhar a mudança com quem está ainda em processo, será com elas que conseguiremos mudar conceitos e preconceitos. Será nesta fase que criamos bons hábitos de vida e uma maior conexão com a natureza, um maior respeito pelo seu ecossistema.”
Um certo dia, Liliana estava a navegar no feed do Instagram quando se cruzou com o trabalho da ilustradora portuense Gabriela Araújo. Mensagem para aqui, mensagem para acolá, perceberam que tinham em comum uma preocupação de mãe: o facto de o actual desenho das cidades privilegiar demasiado o automóvel, deixando pouca margem para as crianças terem autonomia na mobilidade ou sequer espaço para brincar em liberdade. “A Gabriela já andava pela cidade a desafiar o trânsito, mas agora com uma bebé pequena os medos tinham invadido o coração e já não era só ela a desafiar o trânsito mas sim ela, mãe, e o seu bem mais precioso”, conta Liliana. Então, decidiram fazer algo juntas.
Foi assim que nasceu Isto Não É Uma História Infantil, um pequeno livro escrito e ilustrado para crianças mas que procura também inspirar adultos; isto porque a história pode ser infantil, mas pretende também envolver pais e mães numa mudança que as autoras entendem como necessária. É que “temos um problema para resolver”: “uma grande máquina” que, apesar de ser “super confortável”, nos faz andar rápido e “ver tudo de relance”, e que nos empurrou para os passeios, deixando-nos sem espaço para cantar ou caminhar sossegados. Não propõem soluções “radicais”, mas antes soluções de compromisso e consenso, como rotas seguras para pedalar ou caminhar para a escola, parques de estacionamento que tirem os carros das ruas ou obstáculos que obriguem as viaturas a ir mais devagar.“Temos de falar mais sobre estes temas, que têm também de chegar a mais pessoas. Todos nós temos de começar a desconstruir esta ideia de que as ruas são dos carros, e tudo o resto – peões, trotinetes, bicicletas – são adaptados ao espaço que sobra. Ambas sentimos a necessidade de criar conteúdo que fale sobre isto, pois infelizmente e sobre o nosso território, ainda não há muito. Os carros têm de deixar de ser fixes”, completa Gabriela.
“Isto não é uma história infantil… Ou talvez seja! Mas daquelas que é para adultos também. Daquelas que começa na infância e nos acompanham a vida toda. Nós damos o pontapé de saída, com algumas ideias de como podemos criar cidades mais sustentáveis, com uma mobilidade eficiente, saudável. Mas há todo um trabalho para passar dos sonhos à realidade. E para isso é preciso a vontade de todos. A mudança está, primeiro, em nós. O que poderás fazer, TU, para mudar esta forma como nos movimentamos pouco salutar? Vem divertir-te connosco, pensar e desenhar uma cidade onde é tão bom viver!”
– sinopse de Isto Não É Uma História Infantil
“Andei a pesquisar várias histórias infantis, mas não encontrei nenhuma que fosse sobre esta coisa de provocar a criança para a acção, que a tornar-se numa pessoa participativa na construção da sua cidade”, explica Liliana, que integra a cooperativa Bicicultura, dedicada à promoção da mobilidade activa, incluindo entre os mais novos. “Há um projecto pelo qual teço muito carinho, um projecto da Bicicultura, que tem este ADN de colocar as crianças no centro da acção e de promover uma educação pela prática, onde as crianças pensam a cidade, fazem propostas e importa que depois as consigam implementar.” Esse projecto chama-se Bicycle Heroes e objectiva a constituição de Conselhos de Crianças, onde estas possam ter uma voz activa, conforme contámos aqui. Liliana já sonha em poder ligar todas estas iniciativas, podendo o livro ser um motor de desbloqueio e inspiração para os mais novos começarem a falar sobre as suas ruas, os seus bairros, as suas cidades.
E quem sabe se não poderão surgir novos livros, novas histórias infantis, novas histórias escritas pelas crianças e ilustradas por elas mas dirigidas aos adultos. “Sim, também estamos a ponderar a possibilidade de uma editora que faça um trabalho interessante e que possa lançar as histórias, dando-lhes a abrangência que queremos.” Por agora, o trabalho de Liliana e Gabriela está publicado pela ADENE, a agência do Governo central para a energia, uma entidade que que “trabalha a transição energética em diversas áreas, tendo uma área mais recente de mobilidade e sustentabilidade. Há muito trabalho que a agência quer desenvolver, nomeadamente sobre a mobilidade em bicicleta”, explica Liliana.
Durante a Semana Europeia da Mobilidade, celebrada entre 16 e 22 de Setembro, Liliana e Gabriela apresentaram o trabalho em escolas que já tinham alguma ligação a projectos de mobilidade activa, como, por exemplo, os Comboios de Bicicletas/CicloExpressos. As autoras aproveitam também o contexto da Kidical Mass (Massa Crítica de Crianças), um movimento global que dá visibilidade às crianças no espaço urbano e que já tem presença em várias cidades portuguesas, incluindo em Lisboa. Afinal, um livro que convida os mais pequenos a repensarem a cidade tem tudo a ver com um movimento que leva esses mais pequenos, acompanhados pelos seus pais, para as ruas pedir um espaço público diferente.
“Nesta edição especial com a ADENE, eles ficaram com uma parte da produção para poderem oferecer nas suas acções. Outros livros voaram para as localidades onde existem grupos promotores da Kidical Mass, para que eles também pudessem ler nas suas actividades. Alguns foram entregues nas escolas e também a dinamizadores comunitários que trabalham o tema. Queremos ainda deixar em algumas bibliotecas para que possam estar disponíveis para leitura“, aponta Liliana. “O que não queremos é perder o livro para os circuitos da economia regular. Mas o projecto terá continuidade”, promete a autora. “Foi um casamento muito feliz e foi muito fácil criar, fazer nascer este livro. Trabalhar com gente produtiva, interessada e eficiente é meio caminho andado para o sucesso e para conseguir superar rápido as pequenas dificuldades que podem surgir pelo caminho.”
Quem quiser uma cópia física desta história – ou saber mais sobre o projecto – poderá falar com as autoras, através do Instagram ou enviando e-mail, por exemplo.