Em Almada, vizinhos estão a unir-se para transformar os espaços públicos em torno dos ringues e das suas habitações. Estão a criar murais de arte urbana, a dinamizar jardins comunitários e a organizar actividades que convidam famílias inteiras a sair de casa e a passar um dia agradável em comunidade.
Um ringue pode ser mais que um espaço fechado para a prática de futebol ou basquetebol. Pode ser um elemento catalisador de encontros nos bairros, permitindo que a vizinhança se conheça, estreite laços e ganhe motivação para trabalhar em prol do bem comum. Em Almada, o ringue de Cacilhas, nas traseiras da Rua António Nobre, tornou-se o ponto de encontro do Estuário, um colectivo de vizinhos e de amigos que nunca gostou muito de estar em casa.
“O Estuário é um espaço de experimentação social no meio urbano em que nós, individualmente, cada na sua área, faz aquilo que sabe. Pode vir para a rua, trazer os miúdos e mostrar o que se faz. E os miúdos podem pegar nisso e fazer o que entenderem com isso”, explica Diogo Salvador, um dos membros do Estuário. O surgimento do Estuário foi um processo espontâneo e pouco planeado. O colectivo que hoje se orgulha do seu nome – “é um nome muito feliz, porque fazemos parte de um estuário, que vai daqui até Lisboa ou Vila Franca de Xira” – foi surgindo da vontade de uns vizinhos e de outros, que se conheceram ou já em Cacilhas ou ainda noutras andanças. “Muitos de nós somos Miratejo. Somos amigos da secundária e viemos para aqui viver. Esta rua, a António Nobre, é muito conhecida artisticamente, a nível de música. Já muitos nomes saíram daqui.” Estes vizinhos, que inicialmente se mobilizaram em torno da música ou do graffiti, cresceram e têm hoje outras prioridades: “A grande semente acabou por sermos vários adultos com filhos que queriam criar condições e espaço para eles poderem novamente voltar para a rua, de terem aquilo que nós tivemos na nossa infância.”
Assim, do núcleo inicial do Miratejo, o colectivo foi cativando outras famílias que também estabeleceram as suas raízes em Cacilhas, em ruas rodeadas de prédios altos e que servem maioritariamente para estacionamento. “Há uma enorme densidade populacional aqui e isto era basicamente um sítio onde as pessoas não se conheciam. Era como qualquer outro bairro”, contextualiza. “À medida que fomos construindo o parque infantil, o mural, o jardim… principalmente o jardim, houve um conjunto de dinâmicas que se foram criando, de entreajuda, de amizades…”, acrescenta Diogo. “Há pessoas do Estuário que não se conheciam e que hoje são elementos fundamentais do colectivo. De repente, os seus filhos são os melhores amigos e vão dormir à casa uns dos outros.”
O trabalho do Estuário tem incidido sobretudo nas traseiras da Rua António Nobre, em torno de um ringue, isto é, de um campo polivalente, onde se pode jogar à bola. “Este ringue tem uma história muito mais antiga à nossa presença aqui. Quando estes prédios estavam a ser construídos, os miúdos jogavam ali numa parte mais acima do local onde está hoje o ringue E na altura – isto em 1984, 1985… –, queriam construir lá um grande depósito e isso acabaria com esse primeiro ringue, que os miúdos tinham destruído”, conta Diogo. “Mas os miúdos conseguiram boicotar a destruição do depósito. À noite, iam tirar os parafusos e a gasolina às máquinas das obras. Não foi possível construir o depósito e a Câmara acabou por construir um ringue.”
Inspirados – ou não – por essa história de resistência, os membros do Estuário e outros vizinhos que se foram juntando ao colectivo foram recuperando os espaços em redor do ringue. Ao lado desse campo desportivo, existe agora um parque infantil, construído pela Junta por pressão e envolvimento do colectivo. E, ao lado desse parque, os vizinhos criaram um jardim comunitário, com espécies autóctones e exóticas, uma pequena biblioteca, jogos musicais para crianças (que agora foram retirados para manutenção) e um mural de arte urbana. Estes três espaços – ringue (que foi, entretanto, requalificado pela Câmara de Almada), parque infantil e jardim – funcionam em conjunto como um amplo recinto de convívio, onde membros do Estuário e outros moradores podem reunir-se, interagir e construir uma comunidade mais unida. “Aqui temos um espaço confortável e seguro. Os pais podem estar a 50 ou 100 metros dos seus miúdos, que sabem que eles estão em segurança”, diz com satisfação.
O ringue estava degradado e o espaço onde está hoje o parque infantil e o jardim comunitário era um canteiro sem interesse. É precisamente neste espaço revitalizado não só pelo colectivo, mas também pela Junta e Câmara, que o Estuário tenta organizar todos os anos a Cidade das Crianças, um dia repleto de actividades para os mais novos e que ao mesmo tempo promove o convívio entre os mais adultos.
Um dia para as crianças… e para os adultos
A Cidade das Crianças, que é dinamizada habitualmente a 1 de Junho, o Dia Mundial da Criança, é uma espécie apogeu da capacidade e ambição do Estuário, que só acontece quando se conjugam disponibilidades; uma espécie de celebração de todos os espaços públicos que o colectivo foi e quer continuar a revitalizar na vizinhança. “Isto é basicamente a afirmação do que se vai fazendo o ano inteiro, é quando os vários pais e mães são mais activos.”
Esta edição foi um dia inteiro de programação gratuita, com actividades dinamizadas por vizinhos e amigos, que não só fazem as delícias das crianças mas também dos adultos. Houve uma oficina sobre formigas, onde todos conseguiram ver estes pequenos seres com outro olhar e consideração. Ou um workshop de hip hop, onde Daniel Freitas, rapper e produtor de Almada, mais conhecido como TNT, apresentou aos mais novos os conceitos de batida e de ritmo. Houve também uma oficina de origamis, uma hora de jogos tradicionais e um momento para explorar formas de brincadeira livre, onde os pequenos receberam objectos e materiais para explorarem com a sua imaginação.
A programação incluiu também uma tertúlia onde mães com profissões geralmente associadas ao sexo masculino partilharam as suas experiências, um piquenique comunitário, onde cada família trouxe o que queria para partilhar ou vender, ou um jogo educativo para ensinar de uma forma nada chata a importância da cooperação
O ringue esteve o dia de portas abertas com bicicletas, trotinetas, carrinhos de rolamentos, e bolas de futebol e de basquetebol à disposição. Também o jardim proporcionou às crianças a oportunidade de se sentirem livres a explorarem o espaço por entre os arbustos e a fazerem o que a imaginação ditava. Pequenos e graúdos tiveram curiosidade de ver que livros a pequena biblioteca comunitária tinha. Houve música e, para os mais crescidos, cerveja para ajudar a passar um dia quente.
Mesmo sendo um evento feito por voluntários, não faltou o cuidado profissional. Do design e materiais de comunicação, à sinalética espalhada pelo local, ajudando a localizar cada espaço e cada actividade, bem como à instalação de sanitários temporários para dar apoio a toda a “cidade” ou à activação dos cafés na proximidade com menus especiais para o evento.
No final do dia, tudo dá trabalho mas a satisfação é muito superior, diz Diogo: “Enquanto pai, dar esta experiência aos meus miúdos dá trabalho. E às vezes até é incoerente porque, em vez de estar em casa, estou aqui com outros pais, à noite, a montar as coisas para a Cidade das Crianças, a regar o jardim ou a plantar mais uma planta que algum vizinho deixou aqui. Mas enquanto tudo isto fizer sentido para mim e para todos nós, nós vamos continuar.” A motivação para continuar é encontrada também noutros grupos que estão ou querem promover iniciativas idênticas. “No ringue das Barrocas, já existe um colectivo que está a experimentar estratégias parecidas e que quer fazer algo parecido ao que se passa aqui. Portanto, enquanto existirem estes feedbacks positivos, vamos continuar.”