O prédio municipal do número 69 da Rua Marques da Silva, ocupado em 2017 por um colectivo contra a gentrificação e a especulação imobiliária, vai ser transformado em seis apartamentos de renda acessível. As obras deverão arrancar no início de 2026 e terminar em 2028.

O prédio camarário do número 69 da Rua Marques da Silva, em Arroios, que foi ocupado em 2017 por um colectivo em luta contra a gentrificação e a especulação imobiliária, será transformado em renda acessível. O edifício, devoluto há uma década, vai ser agora requalificado com verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e deverá voltar a ter moradores em 2028.
Segundo o Público, este imóvel vai ter seis apartamentos totalmente reabilitados para renda acessível. O projecto de requalificação deverá ser concluído até ao final deste ano, “prevendo-se o lançamento da empreitada no início de 2026”, indicou a Câmara de Lisboa ao referido jornal.
O prédio integra a lista de imóveis “em reabilitação e a reabilitar” no âmbito do plano concebido pela autarquia com esse fim e tendo por base o levantamento do património municipal feito para a Carta Municipal de Habitação de Lisboa, escreve o Público. É um dos 42 edifícios municipais identificados nesse documento, aprovado no ano passado, com potencial de “reabilitação, reconstrução e reconversão para uso habitacional”.

A história da ocupação
Ao contrário de outras capitais europeias, Lisboa não tem propriamente uma tradição de ocupação de imóveis devolutos como forma de protesto. Mas a 15 de Setembro de 2017, nas vésperas das eleições autárquicas de 1 de Outubro que dariam a vitória ao socialista Fernando Medina, o número 69 da Rua Marquês da Silva foi ocupado por um grupo de activistas que se apresentou como “Assembleia de Ocupação de Lisboa” (AOLX). Essa ocupação manteve-se por quatro meses e meio, com a expulsão dos ocupas só a 30 de Janeiro de 2018.
Na altura, a política seguida na cidade de Lisboa era alvo de críticas à esquerda, por vozes que denunciavam uma crescente especulação imobiliária, gentrificação dos bairros e aumento das rendas, num contexto de forte crescimento do turismo e da chegada de estrangeiros. A Câmara, que era liderada pelo PS, situação que as eleições de Outubro não alteraram, parecia pouco empenhada em proteger a população e o património municipal – evidência disso era o facto de o imóvel que foi ocupado estar vazio desde 2015, a degradar-se, apesar de se situar numa zona central da cidade, onde a procura por habitação era e é elevada.

Quando os ocupas entraram naquele prédio, estenderam várias lonas à janela. Numa delas, podia ler-se: “Não somos especuladores, somos espectaculares.” O aviso era uma espécie de bandeira branca de paz, de quem não quer fazer mal, apenas fazer algo pelo acesso à habitação na capital. “A cidade é de quem a ocupa”, era outra das frases penduradas pelos activistas. A entrada no edifício terá sido fácil, uma vez que a porta estaria apenas encostada. Os ocupas fizeram as limpezas necessárias e trocaram as fechaduras.

O grupo tinha um blogue no Tumblr, hoje desactivado, em que se apresentava como “um grupo de pessoas, sem qualquer filiação institucional, unidas pela vontade de dar vida a um imóvel abandonado”. Escrevia, nesse canal online, que queriam tirar o edifício camarário das “malhas da especulação” e fazer dele “um espaço de usufruto social, seja habitacional, educativo ou cultural”. Só não sabiam o quê em concreto. Num dos primeiros dias da ocupação, “mais de 150 pessoas” participaram numa assembleia aberta para colectivamente decidir o uso a dar ao imóvel – o convite foi feito a toda a cidade, foram bem-vindas todas as pessoas que quisessem participar no processo.
O jornal local O Corvo dava conta, a 19 de Setembro de 2017, de algumas das ideias discutidas nessa assembleia, dois dias antes, como a instalação no edifício de um “observatório para as questões da habitação”, de um centro cultural ou de um espaço de ensaio para bandas e artistas. Quanto a dar-lhe um uso de habitação, Nuno Couto, um dos porta-vozes do grupo, disse a’O Corvo que “foram ouvidas propostas nesse sentido” e que era uma possibilidade que, tal como as outras, teria de ser melhor discutida em próxima sessão da assembleia.
“Ao mesmo tempo, a imagem da cidade como um local solarengo, pitoresco e pacífico, promovida por indústrias turísticas, contribuiu para o aumento do número de pessoas interessadas em visitar e morar em Lisboa. O mercado está em alta e os preços também. O mercado está em alta e os preços também. Bairros onde as rendas eram outrora minimamente acessíveis viram os seus valores aumentarem de uma forma brutal. A recomposição destrutiva dos modos de vida na cidade, agora reservada a quem consegue pagar mais caro, é ilustrada pelos sucessivos casos de despejo”, lia-se no blogue do AOLX.

Quando a ocupação do número 69 da Rua Marques da Silva, era recente o lançamento do Programa Renda Acessível (PRA) pela Câmara de Lisboa, que previa, em 2017, entre cinco e sete mil casas de tipologias T0, T1 e T2 com rendas entre os 250 e os 450 euros, abaixo dos valores praticados pelo mercado. O programa seria efectivado nos anos seguintes em terrenos ou edifícios municipais, através de construção pública ou de concessões com privados, e sabe-se hoje que ficou muito aquém das expectativas – os grandes projectos do PRA, como o de Benfica ou o do Alto do Restelo, não chegaram a ser lançados.
Já em 2017, a AOLX criticava a iniciativa camarária, dizendo que estaria “longe de constituir uma resposta efectiva ao problema”. “O seu objectivo é mais simbólico do que material, contribuindo para a legitimação de uma política habitacional marcada pela falta de iniciativa, pelo desbaratar de património e pela cumplicidade com fundos de investimento, inclusive na definição de supostas políticas sociais”, escrevia o colectivo no seu blogue.
Apesar do distanciamento em relação às políticas camarárias, a Assembleia de Ocupação mostrava-se disposta a dialogar com a autarquia, que, num cenário eleitoral, preferiu remeter-se ao silêncio relativamente à ocupação. Houve apenas duas visitas pela Polícia Municipal, que terá apenas quatro pessoas e ameaçado avisar a PSP para “expulsar as pessoas da casa coercivamente depois das eleições”, segundo escreveram os activistas no Facebook, numa publicação feita a 18 de Setembro de 2017. “Há duas vias: ou a Câmara reconhece que, de facto, a casa estava devoluta e há uma alternativa que passa por um grupo de pessoas que querem ali fazer qualquer coisa de positivo ou, então, continua a ter um imóvel devoluto”, dizia Nuno Couto ao jornal O Corvo, referindo haver um grande número de imóveis propriedade municipal sem uso e uma enorme dificuldade em encontrar habitação condigna a preço razoável em Lisboa.
Como tudo terminou

A história da ocupação do prédio municipal da Rua Marques da Silva terminou a 30 de Janeiro de 2018. Na manhã dessa terça-feira, uma operação levada a cabo pelos serviços de património da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e pela Polícia Municipal, com o apoio da PSP, teve como fim o esvaziamento do imóvel. De acordo com O Corvo, estaria no interior apenas uma pessoa, integrante do colectivo que o tinha ocupado quatro meses e meio antes.
“Mantivemos sempre a disponibilidade para dialogar com o Presidente da Câmara, a quem enviámos uma carta explicando a nossa posição. Ainda há pouco dias, havíamos reiterado a nossa disponibilidade para dialogar, mas nunca obtivémos resposta”, disse na altura a este jornal um dos membros do AOLX, Pedro Rita, lamentando que a autarquia da capital tenha “optado pela força e pela violência e não pelo diálogo”. Uma proposta feita pelo colectivo passava pela realização de “um concurso público autónomo” para a atribuição dos seis fogos daquele edifício a quem deles necessitasse, com “rendas justas”.
Muitos dos frequentadores da casa reuniam-se nas imediações e assistiam à acção de despejo, relata O Corvo, dando conta da presença também de Tiago Ivo Cruz, então deputado municipal do Bloco de Esquerda (BE), que falou numa acção “despropositada e desproporcionada”, “demonstrativa de autoritarismo”; e de Rita Silva, da associação Habita, que dizia ter dúvidas sobre a legalidade da acção de despejo, apesar de admitir que a ocupação terá ocorrido também à margem da lei. “A CML tem muitas casas vazias e se a sua função social não está a ser cumprida, com o património deixado a degradar-se, sem que se perceba a vontade da autarquia em dar-lhe uso, podemos falar num processo legítimo. Estamos a falar de um espaço que tinha uma actividade sócio-cultural e podia ser parte da solução”, declarou àquele jornal.
Na altura, O Corvo dava conta de que este edifício poderia vir a ser demolido no âmbito da construção do Jardim do Caracol da Penha. Tal acabou por não acontecer. Foram demolidos apenas os prédios em ambos os lados do número 69 – um deles serviu para criar a entrada para o referido jardim.











