De um lado, uma frota envelhecida e acabada, com avarias constantes. Do outro, barcos novos e elétricos, mas que não chegam e nem sempre carregam. O transporte fluvial que liga Lisboa à Margem Sul tem somado atrasos e supressões, em particular nas ligações do Seixal. Os passageiros queixam-se de uma redução na qualidade do serviço.

O relógio marca 7h45 e o barco com partida do Seixal a essa hora, rumo ao Cais do Sodré, em Lisboa, já deveria ter partido. “Senhores passageiros, informa-se que o embarque será feito pelo cais lateral e com 7 minutos de atraso”, ouve-se no altifalante. A mensagem, apesar de em tom de aviso, não foi uma novidade para as inúmeras pessoas que se acumulavam dentro do edifício do terminal fluvial, na sala de embarque, depois das cancelas. Uma porta foi aberta pelo segurança e pacientemente as pessoas saíram para o exterior, onde outros passageiros – que não se deram ao trabalho de passar o passe – aguardavam a chegada do barco. Já todos mais ou menos sabiam que o embarque seria feito pelo exterior, ou seja, pelo cais que é secundário, pois é o que costuma acontecer de segunda a sexta neste horário.
O barco é um dos antigos, a diesel, e não uma das três novas embarcações elétricas que já circulam no Tejo. Uma delas estava, àquela hora, atracada junto ao terminal fluvial, pronta para fazer a ligação das 8h10 – um horário que costuma ser suprimido quando se verifica alguma avaria na frota.
O transporte fluvial faz parte do dia-a-dia de milhares de pessoas na área metropolitana de Lisboa. Todos os dias, 14 barcos asseguram mais de 400 ligações que transpõem a barreira natural que é o Tejo. Longe dos engarrafamentos, oferecem um tempo de viagem competitivo face ao carro, complementando os sistemas de transportes rodo e ferroviário das duas margens. Dir-se-ia a solução óbvia para quem circula entre os concelhos de Almada, Seixal, Barreiro ou Montijo e a capital, mas tem sido contestada pela redução da fiabilidade do serviço. Em particular no Seixal, onde estão a ser estreados com vários constrangimentos os novos barcos elétricos.

Em 2019, num study desenvolvido pelo ISCTE e pela Universidade Católica Portuguesa, o serviço da TTSL era percecionado pelos passageiros como positivo, com destaque para a pontualidade, segurança e rapidez. Utilizado sobretudo por trabalhadores nas suas deslocações casa-trabalho, que confiavam no serviço, apontando como únicos fatores negativos a poluição inerente aos motores a combustão da sua frota e as greves, ainda que com menos relevância.
Este foi o último ano de estabilidade no serviço da operadora fluvial. Desde 2019 que o número de supressões anuais passou de rondar as 3 000 para perto das 12 000. Se em 2020 este número se justifica pelas restrições de mobilidade impostas pela pandemia da Covid-19 e que foram responsáveis pela redução de 8 543 ligações; nos anos seguintes, com a retoma da normalidade, os ajustes programados, os plenários, as greves e as avarias começaram a ganhar expressão, sendo responsáveis no seu conjunto por mais de 98% das supressões.

Enquanto os restantes meios de transporte batiam os números de 2019 na procura, com os carros nas pontes 25 de Abril e Vasco da Gama, o comboio da Fertagus e os autocarros da Carris Metropolitana a superar a procura pré-pandémica entre 2022 e 2023, o transporte fluvial só conseguiu retomar na ligação ao Barreiro, com as restantes carreiras a registar um número inferior de passageiros, de acordo com o último Anuário Estatístico da Mobilidade e dos Transportes, do IMT (2023). A persistência das supressões pode ajudar a explicar este fenómeno.
Os indicadores apresentados são retirados dos relatórios de gestão da empresa, que não são divulgados desde 2022. Nestes documentos, a TTSL dá conta do envelhecimento da frota, que tem hoje uma idade média de 36,5 anos, justificando assim o aumento acentuado do número de avarias e consequente impacto no serviço.

Uma redução que já foi incorporada na oferta. Se antes se suprimiam barcos entre Cacilhas e o Cais do Sodré, hoje a oferta foi reajustada, com menos 38 carreiras diárias do que as definidas no contrato de serviço público. Ajustes anunciados como “temporários” por períodos de um mês, mas que são sucessivamente renovados há anos.
Em resultado, as frequências que já foram de cinco minutos em hora de ponta, hoje não descem dos quinze. É, por isso, comum ver passageiros ficarem retidos na porta 4 do terminal fluvial do Cais do Sodré, hoje a atual porta de embarque em direção a Cacilhas, porque o barco encheu poucos minutos depois da abertura das portas. Esta foi uma realidade que temos testemunhado durante a hora de ponta da tarde, com vários barcos a encher consecutivamente antes da hora. Ajuda que a frequência, ainda que tenha sido reduzida, seja elevada, em comparação com outras ligações fluviais, nomeadamente a do Seixal, onde a supressão de um barco na hora de ponta significa que o intervalo entre barcos passa de 20 para 40 minutos – quase uma hora.
A carreira entre Lisboa e o Seixal mantém, à semelhança das outras ligações, a oferta programada contratualmente com o Estado, mas esta nem sempre se concretiza na prática. A avaria de um barco é suficiente para disromper a operação. Um problema reconhecido pela empresa e que em 2019 motivou o lançamento de um concurso para a compra de 10 navios movidos a gás. O procedimento teve de ser anulado por incumprimento dos requisitos técnicos dos candidatos e só no ano seguinte se concretizou, desta vez para barcos elétricos, prevendo-se, na altura, a entrega de quatro embarcações em 2022 e 2023, com as restantes duas a chegarem em 2024.
Porém, o processo demorou mais do que o esperado. O primeiro barco só atracou em Lisboa em março de 2023, mas entre a reparação de danos identificados no casco e a polémica compra de baterias, a primeira viagem com passageiros ocorreu quase dois anos depois, no final de 2024. Desde então os barcos têm estado em fase experimental na ligação entre o Seixal e o Cais do Sodré, tendo começado a fazer parte da oferta regular da empresa em alguns horários.

A experiência inicialmente agradou a quem utiliza o barco como meio de transporte. “São bonitos, confortáveis e bastante silenciosos”, conta-nos uma passageira que conhecemos no terminal do Seixal.
No entanto, a promessa da melhoria da fiabilidade do serviço rapidamente se rompeu, com a junção de vários fatores. A começar pela continuação da dependência dos barcos a combustão, velhos e com avarias frequentes, uma vez que os elétricos apenas serviam algumas carreiras. Por sua vez, estes tinham o carregamento limitado ao terminal do Seixal, devido ao atraso na instalação do posto de carga do Cais do Sodré. Como se não bastasse, mesmo no Seixal, nem sempre conseguiam carregar. Problemas no sistema de comunicação entre o barco e o carregador impossibilitaram o abastecimento das baterias e obrigaram várias vezes à imobilização dos barcos elétricos a meio da operação.



“É uma incerteza constante, uma pessoa nunca sabe se vai conseguir apanhar o barco para ir trabalhar”, desabafa um outro passageiro, dando conta das supressões imprevisíveis, muitas vezes só comunicadas na manhã do próprio dia na aplicação da TTSL. Um barco suprimido implica no mínimo mais 20 minutos na viagem diária de quem recorre ao barco para chegar a Lisboa. Viagem esta que demora agora mais tempo. “Os barcos antigos faziam mais barulho e claro que poluíam o ambiente, mas pelo menos cumpriam os horários, agora os 18 minutos da viagem são no mínimo 25, quando não chegam à meia hora”, critica outro passageiro, rematando: “estas pessoas têm de ser chamadas à terra, isto assim não funciona”.
Seja do Seixal para Lisboa, de manhã, em sentido contrário, à tarde, a viagem demora sempre mais que os 18 minutos anunciados, isto sem contar com os atrasos provocados pelas mudanças de cais e por outras questões operacionais (há uma embarcação que tem uma porta avariada, por exemplo, o que atrasa os desembarques todos os dias). Não só as viagens mais longas que impossibilitam o cumprimento das frequências de 20 em 20 minutos nas horas de ponta, como os atrasos que vão acontecendo aqui e ali ainda dificultam mais essa pontualidade. O resultado passa pela supressão de algumas carreiras, em horários que os passageiros já vão conhecendo.

Desde a última semana que a TTSL se comprometeu a resolver os constrangimentos que têm afetado as ligações fluviais. Com a ativação do posto de carregamento no Cais do Sodré e a alocação agora de três barcos elétricos à ligação ao Seixal (antes eram apenas dois), a presidente da empresa, Alexandra Ferreira de Carvalho, disse à SIC acreditar na retoma da normalidade do serviço, esperando recuperar a confiança dos passageiros no serviço fluvial.
No entanto, das promessas à prática, os problemas continuam com supressões devido à avaria do barco a combustão “Algés”, ainda alocado a algumas carreiras, como aconteceu nos passados dias 12 e 18. Nos restantes dias a operação decorreu com normalidade.

Aos três barcos elétricos agora em operação, devem juntar-se os outros sete nos próximos meses. Em declarações ao Public a empresa definiu o segundo semestre deste ano como prazo para a entrega do último barco. Neste período deve também ser terminada a instalação das estações de carregamento em Cacilhas, no Montijo e no Cais do Sodré (uma instalada e uma em falta).
O objetivo da TTSL é substituir a frota atual pelos novos barcos em todas as ligações exceto na do Barreiro: as 10 embarcações encomendadas são suficientes para garantir a oferta atual, sendo que as antigas serão encostadas para fazer cumprir as metas de transição energética que foram assumidas aquando da obtenção de financiamento europeu para esta compra. A TTSL irá manter apenas os catamarãs do Barreiro – porque não foram incluídos neste processo – e alguns cacilheiros para uma eventual exploração turística.

Voltando aos milhares de passageiros que atravessam o Tejo todos os dias, o LPP questionou a TTSL sobre a duração prevista da fase experimental da operação elétrica, assim como de quando será expectável o seu alargamento às carreiras do Montijo e Cacilhas, também contempladas neste projeto, não tendo até ao momento tido resposta.