Avenida de Berna. A última ciclovia de Lisboa nasceu torta

No entender da Câmara Municipal de Lisboa, a mais recente ciclovia da cidade, na Avenida de Berna, foi uma obra secundária numa intervenção de carácter simples que se propunha a criar uma faixa BUS naquela artéria.

Fotografía de Mário Rui André/Lisboa For People

Numa entrevista em 2019, Miguel Barroso, arquitecto especialista em urbanismo e mobilidade urbana, dizia que a cidade possível é o resultado de todos os constrangimentos, forças e interesses”. Miguel referia-se às vontades políticas da autarquia e das Juntas de Freguesia, aos objectivos eleitorais, mas também aos vários regulamentos que são precisos cumprir e nem sempre é possível cumprir todos. “Então, tenta-se criar o equilíbrio da situação que menos transtorno possa causar. Algumas vezes saem as bicicletas prejudicadas, outras os automóveis, outras os peões. O ideal seria que ninguém saísse.” Mexer no espaço público – completava o especialista – “é muito delicado” e um trabalho de “pesar os prós e os contras”.

No entender da Câmara Municipal de Lisboa, a mais recente ciclovia da cidade, na Avenida de Berna, foi uma obra secundária numa intervenção de carácter simples mas que, ainda assim, que se propunha a criar uma importante faixa BUS naquela artéria. O objectivo: que os 18 autocarros/hora que passam na Avenida de Berna pudessem encontrar ali um corredor de alto desempenho, que num futuro ligará o Areeiro, pela Avenida João XXI, a Alcântara, pela Avenida de Ceuta. E enquanto se fez o tal corredor BUS, melhorou-se a localização de algumas paragens de autocarro para desbloquear o canal pedonal, removeu-se o estacionamento à superfície e instalaram-se duas ciclovias unidireccionais – uma em cada sentido da avenida, fazendo a ligação entre a Praça de Espanha e a Avenida da República, e vice-versa.

Fotografía de Mário Rui André/Lisboa For People

Uma ciclovia com demasiados compromissos e alguma desatenção às regras

À luz do Plano Municipal Director (PDM), que regula o que se pode e não se pode fazer na cidade de Lisboa, a Avenida de Berna está classificada como de 2º nível na hierarquia da rede viária, isto é, é uma via de distribuição principal que “assegura a distribuição dos maiores fluxos de tráfego internos ao concelho, bem como os percursos médios e o acesso à rede estruturante”. Enquanto avenida de 2º nível, a Avenida de Berna está sujeita a uma série de características básicas, como largura mínima de 3 metros para as vias de trânsito, número mínimo desejável de duas vias em cada sentido, estacionamento “sujeito a restrições operacionais da via”, não existência de cargas e descargas, presença de corredores de BUS, passeio com pelo menos 3 metros de largura (no caso de se tratar de um novo arruamento), e ciclovias segregadas.

Recorte do Plano Municipal Director de Lisboa

Em cima do PDM, existe outro tipo de documento, denominado Manual de Espaço Público (MEP), e que estipula um conjunto de boas práticas e de orientações técnicas que devem prevalecer no desenho das ruas e do espaço público da cidade. Lançado em 2018, este manual de carácter consultivo é muito claro em relação ao que se deve ou não se deve fazer na criação de espaços de circulação ciclável. Lê-se que “a criação de espaço para a implementação de percursos cicláveis deve ser sempre garantida com recurso a espaços mortos ou rodoviários, não devendo ser feita à custa de espaço pedonal”, permitindo-se excepções “quando justificadas e apenas quando a largura do perfil garante qualidade de circulação aos peões (>2,50m livres de obstáculos)”.

Recorte do Manual de Espaço Público de Lisboa

Lê-se também que “deve evitar-se a coexistência com peões”, excepto nas chamadas “zonas de moderação da circulação automóvel” descritas no PDM, isto é, em bairros onde a velocidade e tráfego são reduzidos, permitindo uma coexistência saudável entre todos os veículos a 30 km/h. O Manual de Espaço Público indica ainda que uma faixa BUS deve ter uma largura entre 3,25 e 2,50 metros, e que os passeios não devem ter menos que 1,50 metros de largura (mas o recomendado é 1,80 metros, pois permite que duas pessoas em cadeira de rodas se cruzem).

Ora, quando se pensa uma intervenção numa avenida como a de Berna, é preciso olhar para estes regulamentos, conjugar as diferentes directrizes e estabelecer os compromissos que serão necessários fazer devido às limitações de orçamento, das características da própria obra e do arruamento em questão. A intervenção na Avenida de Berna ainda está por terminar, pois existem alguns pormenores a tratar, mas pode dizer-se que na globalidade já está concluída: o corredor BUS encontra-se operacional, a ciclovia transitável e já há condições para se fazer um balanço de quem mais ganhou e de quem mais perdeu. Contas feitas, todos – carros, transporte público, peões e bicicletas – terão ganho um bocadinho, mas no que toca a compromissos quem mais perdeu terá sido a mobilidade suave (já lá vamos).

O que é que se ganhou?São cumpridos os regulamentos?
Dois corredores BUS, um em cada sentido, que irão fazer parte de um corredor de alto desempenho entre o Areeiro e Alcântara;Os corredores BUS existentes em cada sentido foram desenhados com 3,30 metros de largura, cumprindo as recomendações do MEP;
Duas vias de trânsito automóvel em cada sentido;A largura das vias de trânsito foi ligeiramente aumentada para passarem a cumprir o requisito mínimo de 3 metros, estipulado no PDM;
Passeios desimpedidos em toda a extensão devido à relocalização de duas paragens de autocarro que bloqueavam o canal pedonal, especialmente para pessoas de mobilidade reduzida (está prevista a mexida numa terceira paragem);Os passeios têm mais de 1,50 metros (MEP), havendo pontos em que chegam a ter mais de 2,50 ou 3 metros;
Duas ciclovias unidireccionais segregadas, uma em cada sentido;As ciclovias são segregadas, como estabelece o PDM. No entanto, apresentam zonas partilhadas com peões, contrariando o MEP;
Foi eliminado o estacionamento à superfície (existiam 101 lugares na avenida). Foram reservados lugares para moradores em ruas adjacentes;O PDM refere que a existência de estacionamento em avenidas de 2º nível está “sujeito a restrições operacionais da via”;
Os lugares de cargas e descargas foram deslocalizados para ruas adjacentes.Não existem cargas e descargas em arruamentos de 2º nível à luz do PDM.

Um processo que arrancou e decorreu torto

A intervenção na Avenida de Berna arrancou logo no início de 2021 com a publicação do projecto no site da Câmara e uma quase imediata contestação por parte de moradores das Avenidas Novas, preocupados com a anunciada remoção da centena de lugares de estacionamento existentes na avenida. Apesar de os parques subterrâneos da zona terem uma ocupação média inferior a 50% e de, no período nocturno, residentes ocuparem apenas 60% dos lugares disponíveis naquela artéria, segundo dados divulgados pela autarquia, a Junta de Freguesia das Avenidas Novas aceitou a pressão popular e promoveu uma “reunião de emergência” presencial em Fevereiro, em pleno pico pandémico, com tempo para intervenções públicas e com a presença do vereador de mobilidade, Miguel Gaspar.

Da sessão não resultou qualquer alteração ao projecto e os trabalhos no local foram iniciados em meados de Março, como inicialmente previsto. A obra demorou mais que os três meses inicialmente previstos (e ainda estará a decorrer) e teve alterações pelo meio, compromissos de última hora que acabaram por prejudicar peões e bicicletas, num projecto que inicialmente já não era o ideal para estes.

Os refúgios das paragens de autocarro

Uma das principais vantagens da intervenção na Avenida de Berna consistia no desimpedimento do canal pedonal com a relocalização de duas paragens de autocarro. Estas passariam para dois pequenos refúgios (ou ilhas), avançados em relação ao passeio e atrás dos quais passaria a ciclovia. Desta forma, estaria assegurada a continuidade do corredor ciclável, mas também a circulação de pessoas com mobilidade reduzida, que na anterior Avenida de Berna, teriam dificuldades em passar, por exemplo, à frente de uma das instituições culturais mais conceituadas da cidade, a Fundação Calouste Gulbenkian.

Uma das ilhas de paragem de autocarros prevista no projecto original (via CML)

Os refúgios previstos no papel começaram a ser implementados na obra tal como estavam desenhados: um canal ciclável de cerca de 1,20 metros a passar atrás das paragens, estas isoladas entre a ciclovia e a estrada, e o passeio com calçada no espaço sobrante. Este desenho seria aplicado tanto na paragem em frente à Gulbenkian como na existente junto à paróquia. No entanto, uma decisão interna na Câmara terá abortado a construção das ilhas em prol de uma alternativa: em vez de separada a ciclovia do passeio, todo o pavimento seria calcetado e as bicicletas teriam duas rampas para subir e descer do passeio, passando atrás das paragens de autocarro numa área de coexistência. A mudança de última hora terá atrasado a obra ao obrigar à remoção dos lancis que já estavam a ser colocados, conforme documenta a fotografia em baixo:

As ilhas chegaram a ser feitas para serem desfeitas logo a seguir (fotografia cortesia de leitor)

Ao que o Lisboa Para Pessoas apurou, a alteração terá tido por base o facto de não se conseguir garantir um canal pedonal com o mínimo de 1,50 metros em algumas partes com a ciclovia na lógica segregada, pelo que se terá optado, assim, por uma zona mista. Todavia, a partilha de espaço entre peões e ciclistas não só é desaconselhada no Manual de Espaço Público da autarquia, como propicia conflitos desnecessários numa cidade já antagonizada pela maior visibilidade e presença da bicicleta no espaço público. Esses conflitos são visíveis em infraestruturas mais antigas como a da Avenida do Brasil, que apresenta um esquema semelhante ao que agora foi aplicado na Avenida de Berna, com a ciclovia a interromper antes das paragens de autocarro e a obrigar bicicletas a partilhar espaço com peões.

Além das áreas de partilha entre peões e bicicletas atrás das paragens de autocarro, existem zonas de coexistência também junto aos semáforos e nas intersecções, onde a ciclovia também se mistura com o passeio – há, no entanto, marcações no chão a indicar perda de prioridade para ciclistas e “prioridade ao peão”. Também a ligação da ciclovia da Avenida de Berna à da Avenida da República não está feita e há um problema aqui para quem venha de uma das ciclovias e queira apanhar a outra – terá de improvisar um pouco o atravessamento de dois semáforos, pelo meio de um espaço onde às horas de ponta confluem muitos peões, e de uma via interna/de trânsito local da Avenida da República.

As cargas e descargas informais

Ainda com a obra a decorrer, outra alteração de última hora que mexeu com o projecto. Esta partiu da Junta de Freguesia das Avenidas Novas e terá resultado de novas pressões populares, num ano que é de eleições autárquicas e, por isso, crítico para qualquer político em funções. Num boletim enviado aos fregueses, a Junta disse ter conseguido “melhorias para moradores e comerciantes” depois de negociações com o vereador da mobilidade da Câmara de Lisboa e anunciou a criação de “zonas de paragem rápida, onde os residentes na avenida podem parar para deixar ou recolher crianças e cidadãos com mobilidade reduzida ou para descarregar compras de supermercado, antes de procurarem estacionamento nas imediações”. “Também os comerciantes podem usar essas zonas para rápidas operações de cargas e descargas”, pode ler-se ainda no boletim que não foi publicado no site da Junta mas que chegou a ser divulgado por algumas pessoas nas redes sociais.

Estas “zonas de paragem rápida” foram implementadas, nos últimos dias, em frente a entradas de garagem. Encontram-se assinaladas com uma marcação que se assemelha à sinalização habitual de um lugar de cargas e descargas, só que com outra cor, o que coloca estes espaços num enquadramento legal dúbio. À luz do Reglamento de señalización del tráfico (RST), a marcação rodoviária “M14a – Estacionamento para cargas e descargas” estipula um rectângulo amarelo cortado obliquamente por duas linhas também amarelas – não podem ter outra cor. Assim, e seguindo o RST, estas “zonas de paragem rápida” não existem, o que poderá colocar dúvidas aos condutores, que que poderão achar legitimamente que uma paragem naquele espaço está autorizada, e às próprias autoridades.

O Regulamento de Sinalização de Trânsito (RST) sobre a marcação M14a

Quem também não reconhece as “zonas de paragem rápida” implementadas pela Junta de Freguesia é a própria Câmara Municipal. Um porta-voz do gabinete do vereador de mobilidade, Miguel Gaspar, explicou ao Lisboa Para Pessoas que não existem bolsas de cargas e descargas em cima da ciclovia e que, à luz do Código da Estrada, uma paragem ou estacionamento numa via ciclável é proibida e regulamentada com uma coima. O mesmo porta-voz explicou que, como previsto no projecto, serão criadas cargas e descargas nas ruas perpendiculares, o que também aconteceu ao longo da Avenida Fontes Pereira de Melo.

No entanto, mesmo com as “zonas de paragem rápida” informalmente assinaladas, muito tem sido o estacionamento abusivo em cima da recente ciclovia na Avenida de Berna – como tem vindo a ser denunciado nas redes sociais e como o Lisboa Para Pessoas tem observado. Esse estacionamento dá-se, curiosamente, fora das “zonas de paragem rápida”, talvez porque assim não ficam bloqueados os acessos às garagens. As contra-ordenações observadas têm decorrido sobretudo nas zonas de maior pressão, entre a Avenida 5 de Outubro e a Avenida da República. De noite, é possível encontrar carros estacionados nesse quarteirão e, de dia, várias viaturas a realizar cargas e descargas ou simplesmente parados. Sem uma fiscalização apertada, esta situação poderá levar os ciclistas a optar por alternativas que sabem que estarão desimpedidas ou a seguir pela estrada, no corredor BUS, de forma a contornar os veículos parados no espaço que deveria ser o seu.

O Lisboa Para Pessoas contactou a Junta de Freguesia das Avenidas Novas, que até ao momento não respondeu aos esclarecimentos solicitados. O Lisboa Para Pessoas pediu também à Junta de Freguesia das Avenidas Novas uma cópia do boletim e do projecto modificado mas também não recebeu qualquer resposta nesse sentido.

Dores de crescimento?

A ciclovia construída na Avenida de Berna está longe de ser a ideal mas, ainda assim, a sua existência acaba por servir quem utiliza a bicicleta como meio de transporte e procura uma ligação directa entre a Praça de Espanha e a Avenida da República. A Avenida de Berna é, por exemplo, essencial para um percurso segregado, rápido e contínuo entre Benfica e a zona central da cidade. Logo nos primeiros dias da ciclovia, ainda só com os troços pintados e sem segregadores, já eram visíveis algumas pessoas a estrear a ainda incompleta infraestrutura.

Ainda assim, há vários problemas simples que poderão ainda ser resolvidos. Um deles prende-se com os segregadores utilizados – o mesmo modelo que tinha sido aplicado na Almirante Reis – e que, logo nos primeiros dias, começaram a aparecer danificados. Há agora vários desses segregadores soltos e com os parafusos à mostra, situação que deverá ainda ser solucionada, pois a obra ainda não está dada como concluída no site da autarquia.

Fotografías de Mário Rui André/Lisboa For People

A ciclovia da Avenida de Berna nasceu torta, mas será apenas um primeiro passo. A avenida que tinha três vias de trânsito e estacionamento em cada sentido viu uma das vias ser convertida numa faixa BUS e um corredor ciclável nascer no espaço do estacionamento. Se a avenida ficou óptima, é muito arriscado dizer que sim e a própria autarquia admite uma obra de fundo no futuro, em que se possa rever o traçado da ciclovia e melhorar as zonas de conflito. Para já, passou a existir um canal ciclável que garante segurança aos utilizadores menos experientes e que permite aos mais exigentes contornarem determinados obstáculos.

Outras cidades provavelmente não teriam tido a coragem de remover uma centena de lugares de estacionamento numa avenida e de trocá-los por uma ciclovia, pelo que Lisboa parece estar num bom caminho, apesar de tudo, e resta-nos agora aguardar por uma intervenção mais de fundo naquela avenida tão em emblemática e central na cidade de Lisboa. Afinal, “a cidade possível é o resultado de todos os constrangimentos, forças e interesses”.

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