Era uma vez um autocarro, mas a rampa não estava lá

Artigo de Opinião.

A quebra de preconceitos, a prioridade dada à acessibilidade e a consideração destes temas por todos os restantes intervenientes não é fácil. Por experiência própria a apoiar empresas neste processo, há muita interferência de diversas entidades que impedem a rápida acção para melhorar a acessibilidade e há demasiados constrangimentos financeiros que servem de pretexto para não se fazerem melhorias mais rapidamente.

Fotografia de Diogo Martins

A Carris Metropolitana é a maior mudança de sempre no sector dos transportes públicos, em Portugal, desde a Rodoviária Nacional. A abrangência geográfica, a dimensão da frota e a complexidade de trazer toda a área metropolitana para o século XXI dos transportes é imensa. Toda esta dimensão trazia o desafio de melhorar drasticamente a qualidade dos transportes públicos em autocarro. Tinha tudo para correr mal, e correu. Com todos os problemas de arranque de uma operação que se viu assoberbada com toda uma herança histórica de práticas obsoletas e pouca vontade para quebrar com elas, a Carris Metropolitana tinha uma fasquia imensamente elevada para o normal em Portugal.

Uma das características desafiantes era e é a acessibilidade à frota. Antes da Carris Metropolitana, a maior parte das frotas das operadoras dentro da área metropolitana de Lisboa não tinha qualquer característica de acessibilidade. Em alguns casos tinham para alguns passageiros mas não para outros. Uma dessas operadoras chegou a ser elogiada por ser muito boa em acessibilidade por ter instalado sistemas de avisos sonoros em alguns autocarros; no entanto, não tinha rampas na maioria dos veículos.

No processo de criação da Carris Metropolitana, foi incluída a obrigatoriedade de ter toda a frota acessível. Todos os autocarros têm de ter acesso por rampa ou plataforma elevatória. Não que seja novidade em Portugal, porque algumas concessões anteriores já tinham esta característica contratual. A novidade, aqui, é a abrangência desta regra: não são só os autocarros de tipologia urbana (que circulam mais dentro das cidades e vilas), também os autocarros interurbanos têm a mesma obrigatoriedade.

Essa obrigatoriedade não foi incluída porque os diversos municípios pensaram nas pessoas com deficiência, mas porque ela está na lei. Até à existência da Carris Metropolitana, as operadoras só compravam autocarros acessíveis se eles viessem assim dos seus países de origem ou se fossem novos. Aliado ao facto de parte das frotas ser em segunda mão, já com muitos anos e quilómetros em cima, nada ajudou a que houvesse uma implementação da acessibilidade rápida e eficiente. Era visto como um fardo e um custo extra.

Além do mais, a lei não é clara quanto à obrigatoriedade de tornar as frotas de transporte público acessíveis a todas as pessoas: por um lado, diz que têm de ser; por outro, diz, ao mesmo tempo, que os veículos que já existem podem ficar como estão.

Todo o problema, inclusive o da Carris Metropolitana, de ainda haver questões por resolver no acesso pleno aos autocarros está na forma como as pessoas com deficiência são vistas pela sociedade. Por norma, somos vistos como inúteis, poucos e uma despesa extra. Por isso, geram-se problemas a vários níveis, como a não inclusão de pessoas com deficiência no processo de análise para escolher as melhores soluções e perceber quais as necessidades reais, a fraca formação e não reciclagem desta formação, a baixa prioridade em reparar equipamentos destinados a nós, pessoas com deficiência. Estes problemas não são exclusivos da Carris Metropolitana, são generalizados a todas as esferas da sociedade.

A verdade é que as pessoas com deficiência representam mais de 10% da população portuguesa e a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial estimam que a população mundial com deficiência esteja entre os 15 a 20%. Sendo que os transportes públicos não são apenas e só para quem vive em Portugal, há que pensar em todo um público que não é acolhido porque não se trabalha a acessibilidade. De acordo também com o Banco Mundial, a União Europeia perde todos os anos 700 mil milhões de euros e três milhões de postos de trabalho não são criados por falta de acessibilidade, só referente a turistas (incluindo transportes públicos).

Tenho focado a questão da acessibilidade na existência de rampas que permitem o acesso ao interior dos veículos, mas acessibilidade também é informação. As pessoas com deficiências sensoriais têm de ter acesso a métodos fiáveis para saber onde passam as linhas/carreiras, onde estão a parar os autocarros e quais os percursos. As pessoas com deficiência intelectual têm de ter acesso à informação operacional de forma facilitada e simplificada – isto significa que o site, os horários afixados na rua, os posteletes (chapas nos postes com os números das linhas), os ecrãs, os avisos sonoros nos autocarros… têm de funcionar para que todas as pessoas possam utilizar o serviço público de transporte sem barreiras.

Fotografia de Diogo Martins

No passado dia 20 de Junho, a Carris Metropolitana fez uma visita ao terminal rodoviário da Gare do Oriente, na sequência de reuniões com pessoas da Comunidade do LPP interessadas na operação da Carris Metropolitana. Nesta visita que contou com duas pessoas com deficiência, foram verificados diversos autocarros de várias tipologias para se averiguar dois grandes parâmetros: 1) a existência de meios de acesso aos autocarros; e 2) a preparação das e dos motoristas para a operação dos meios de acesso. Foram identificadas várias questões a serem trabalhadas como a falta de equipamento de acesso em alguns autocarros interurbanos, a falta de formação de qualidade para operar estes equipamentos e também para acolher passageiros com deficiência a bordo, tal como a necessidade de melhorar a reciclagem da formação. Foram identificadas várias outras questões também relacionadas com a informação e procedimentos.

O problema, no caso da Carris Metropolitana, é que vai ter de passar pelo processo que outros operadores estão a passar, e que infelizmente demora muitos anos a ser trabalhado. A quebra de preconceitos, a prioridade dada à acessibilidade e a consideração destes temas por todos os restantes intervenientes não é fácil. Por experiência própria a apoiar empresas neste processo, há muita interferência de diversas entidades que impedem a rápida acção para melhorar a acessibilidade e há demasiados constrangimentos financeiros que servem de pretexto para não se fazerem melhorias mais rapidamente.

Para nós, pessoas com deficiência, todos os minutos que passam sem se trabalharem estas questões são minutos a mais numa já longa espera por um país acessível a todas as pessoas, independentemente das suas condições motoras, algo prometido há mais de 30 anos.

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