Ana Drago tem estudado as causas da crise no sector da habitação. Nesta entrevista, falámos sobre a aposta no turismo como forma de recuperação económica e captação de capital estrangeiro, sobre os seus efeitos para a área metropolitana de Lisboa e ainda sobre potenciais saídas deste ciclo.

A crise habitacional em Portugal é cada vez mais um consenso social. Hoje, o reconhecimento da sua existência atravessa praticamente todo o espectro político. O debate tem-se focado no diagnóstico do problema, e naturalmente, as potenciais soluções para esta crise.
Conversámos com Ana Drago, doutorada em Estudos Urbanos e atualmente investigadora no Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos Sociais (CES), que coordenou o livro A Segunda Crise de Lisboa: Uma Metrópole Fragilizada.
O livro é um trabalho de vários autores do Observatório sobre Crises e Alternativas do CES que fazem uma investigação e análise crítica sobre o desenvolvimento económico e social da área metropolitana de Lisboa (amL) na última década, que nos ajuda a entender as causas da atual crise no setor da habitação. A conversa focou-se na aposta no turismo como forma de recuperação económica e captação de capital estrangeiro, os seus efeitos para a amL — como a subida dos preços da habitação e a criação de conflitos geracionais dentro da classe média — e potenciais saídas deste ciclo.
Nas últimas décadas o debate sobre a desigualdade regional em Portugal focou-se maioritariamente numa ideia de um litoral próspero e do interior desertificado e não tão dinâmico. Combater esta dicotomia é um dos principais objetivos deste projeto?
Eu não diria bem que é, ou seja, nós temos a percepção de que Portugal é marcado por uma grande heterogeneidade; na verdade, para um país tão pequeno, nós temos regiões, modelos de desenvolvimento, notas demográficas, localização de diferentes tipos de economia com uma grande, grande heterogeneidade.
Aquilo que nos pareceu interessante foi perceber que, apesar de alguma recuperação que houve na economia, na sociedade, no emprego, nos rendimentos, no ciclo da geringonça, houve um conjunto de traços de transformação significativa de uma espécie de modelo de desenvolvimento do país, de um motor de crescimento, em que o seu primeiro espaço de aplicação foi provavelmente a área metropolitana de Lisboa. Pelas suas características económicas, obviamente pela concentração de capital, de política, de pessoas, de agregação.
“Mas esta ideia de que houve um modelo de desenvolvimento ou uma estratégia de crescimento que apostou significativamente numa espécie de modelo exportador e valorizador de ativos patrimoniais e, ao mesmo tempo, de desvalorização do trabalho, isso teve um impacto significativo e provavelmente teve um impacto até mais importante na área metropolitana de Lisboa do que teve no Algarve, que já tinha um modelo de especialização muito virado para a área do turismo.”
Mas esta ideia de que houve um modelo de desenvolvimento ou uma estratégia de crescimento que apostou significativamente numa espécie de modelo exportador e valorizador de ativos patrimoniais e, ao mesmo tempo, de desvalorização do trabalho, isso teve um impacto significativo e provavelmente teve um impacto até mais importante na área metropolitana de Lisboa do que teve no Algarve, que já tinha um modelo de especialização muito virado para a área do turismo.
Em Lisboa, com o impacto da nova especialização turística e do crescimento significativo das compras na área do imobiliário por causa da procura estrangeira, houve qualquer coisa que se transformou. E, portanto, quando nós queríamos olhar para o que tinha acontecido durante a pandemia do Covid19, nós partíamos da pandemia mas, na verdade, era necessário ir um bocadinho mais atrás. Era preciso perceber o que é que tinha acontecido à economia portuguesa e metropolitana durante a última década, durante a aplicação do programa da Troika, e perceber depois essas fragilidades durante o tempo da Covid-19.
Em 2022, ainda ano de pandemia, o tráfego no aeroporto Humberto Algarve, por questões sanitárias, caiu 70%. Ainda assim, tivemos 9,3 milhões de passageiros, que é um valor muito próximo a 2004, o ano em que organizámos o Euro. Como é que chegámos aqui? Ou seja, uma queda estrondosa e estamos aos níveis de há 20 anos.
Acho que o que nós tivemos foi uma espécie de circunstância e, ao mesmo tempo, uma lógica política. Eu trabalho mais na área das questões da habitação e do imobiliário e nós, a partir de certa altura, criámos uma série de regimes especiais direcionados para a captação de capital internacional, de investimento estrangeiro direto, muito centrado sobre este investimento no imobiliário.
É verdade que, quando olhamos para o turismo, vemos que cresce a seguir à grande crise financeira e à grande maré das políticas da austeridade – ali a partir de 2012/13 –, em todos os países da União Europeia, de forma significativa. Mas Portugal, de alguma forma, desponta e aumenta essa capacidade de recepção de procura externa e isso mostra que, ao contrário do que acontecia na década anterior, no início do novo século, temos uma aposta significativa na área do turismo. E depois há um conjunto de fatores que se vão juntar muito bem: o governo, na altura, percebe que aquilo é uma dimensão significativa com potencial para a criação de novo emprego, que se tinha perdido com a crise financeira de 2008/ 2009, e depois os anos da Troika, faz transformações no sentido da desvalorização do trabalho e, ao mesmo tempo, de disponibilização do stock habitacional para a atividade turística. Tudo se conjuga para procurar ali uma nova estratégia de crescimento.
“Quando olhamos para o turismo, vemos que cresce a seguir à grande crise financeira e à grande maré das políticas da austeridade – ali a partir de 2012/13 –, em todos os países da União Europeia, de forma significativa. Mas Portugal, de alguma forma, desponta e aumenta essa capacidade de recepção de procura externa.”
Isso já acontecia muito no Algarve. O Algarve, durante o Verão, fica com cerca de 10 vezes mais população do que costuma ter durante os outros trimestres, mas na área metropolitana de Lisboa, à falta de um outro modelo de desenvolvimento, a aposta no turismo permitiu criar novo emprego e permitiu criar novas rentabilidades para diferentes segmentos de classe.
Ou seja, em Lisboa tivemos segmentos de classe média que passaram a colocar a sua habitação no alojamento turístico como forma de encontrar uma nova forma de complementar rendimentos de trabalho. O que, obviamente, é muito desigual porque serve apenas a quem tem disponibilidade para ter uma casa para colocar no mercado do arrendamento turístico. Essas desigualdades foram-se estruturando ao longo da década de crescimento, a partir de 2014-2016, até bater na pandemia.
“Na área metropolitana de Lisboa, à falta de um outro modelo de desenvolvimento, a aposta no turismo permitiu criar novo emprego e permitiu criar novas rentabilidades para diferentes segmentos de classe. O que, obviamente, é muito desigual porque serve apenas a quem tem disponibilidade para ter uma casa para colocar no mercado do arrendamento turístico.”
E mesmo com a pandemia, nos anos de 2020/2021 houve um conjunto de apoios significativos, que como o João Ramos de Almeida trabalha neste resumo, foram dirigidos às empresas e menos aos trabalhadores, mas acabaram por sustentar o trabalho. Embora tenha sido o trabalho mais mal pago e mais precário na área do turismo, que foi mais castigado e teve um impacto significativo na coroa periférica da área metropolitana de Lisboa, onde as pessoas tiveram de facto maiores dificuldades.
Mostra fragilidades que já existiam…
De facto, eu acho que mostra muito aquilo que é a sucessão de crises que temos vindo a discutir. A entrada no Euro, as regras da Organização Mundial do Comércio, novas concorrências [Ásia e Leste Europeu], a grande crise financeira de 2008, o impacto das políticas de austeridade. Nós sofremos um conjunto de choques na economia portuguesa que foram alterando algo de significativo não só na economia nacional, mas também na economia metropolitana.
Lisboa costumava ser a região portuguesa que funcionava como motor de crescimento, que puxava e arrastava o resto da economia, e agora tem uma perda de produtividade, de repartição de rendimentos, de captação de rendimentos, tem perdas nos salários, desqualificação da mão de obra. Tudo isto se vai acumulando na área metropolitana de Lisboa.
“Lisboa costumava ser a região portuguesa que funcionava como motor de crescimento, que puxava e arrastava o resto da economia, e agora tem uma perda de produtividade, de repartição de rendimentos, de captação de rendimentos, tem perdas nos salários, desqualificação da mão de obra.”

A atividade turística foi usada como uma forma de exportar capital e trabalho que anteriormente estava alocado naquilo a que se chamam ‘atividades não exportadoras’ ou não transacionáveis – como a construção, restauração, agentes imobiliários. Era uma atividade doméstica que passávamos a exportar a partir de dentro do país.
Também contribuiu para o uso económico de segundas casas, essas tais casas que, como referiu, eram da classe média, num período que havia altos juros, crise financeira, crise bancária. O que é que há para não gostar desta transição?
Uma das coisas que eu acho interessante é o debate sobre as transacionáveis. Em 2011, no tempo áureo da chegada da Troika, nós fazíamos um diagnóstico sobre a economia portuguesa em que dizíamos que se tinha vindo a especializar, a partir dos tais choques externos que vieram na entrada do século, nos setores não transacionáveis. E tinha sido, de facto, esse crescimento da bolha do crédito no acesso à habitação, o crescimento do emprego na área da construção e do imobiliário e, portanto, houve na altura um debate muito importante sobre a economia nacional em que era necessário encontrar essa lógica exportadora.
Portugal acabou por fazer uma espécie de truque: nós exportamos aquilo que, aparentemente, não sai do lugar. Há um debate interessante que até foi feito por um conjunto de autores italianos sobre as crises do modelo industrial dos países do Sul. Eles pegam em Itália, em Espanha, na Grécia e em Portugal e discutem se verdadeiramente continuamos a olhar para a habitação como um setor transacional, porque na verdade criou-se um mercado transnacional de investimento na habitação.
“Portugal acabou por fazer uma espécie de truque: nós exportamos aquilo que, aparentemente, não sai do lugar.”
É verdade que, da minha parte, e da parte das pessoas que escreveram neste livro, nós trabalhámos pouco sobre a questão dos fundos imobiliários, que noutros países europeus têm um impacto significativo – esta emergência no contexto de pós-crise dos gestores de ativos, que se transformam nos ‘universal owners’ da economia. Aquilo que nós argumentamos é que olhamos para um modelo neoliberal que é aplicado pela Troika e para a ideia de que era preciso a desalavancagem da dívida pública. Isto conduziu à política da austeridade, mas também à lógica de criação de uma dívida privada que acontecia sobre as famílias, sobre o acesso à habitação. E, portanto, tudo aquilo que foi feito foi uma ideia de dinamizar o mercado habitacional de modo a torná-lo atrativo para procuras externas e, por outro lado, a argumentação utilizada era que iria levar as famílias portuguesas para uma lógica de arrendamento.
A liberalização do mercado de habitação de arrendamento conduziu, como nós sabemos, aos despejos, àquilo que ainda eram núcleos de classes populares que viviam no centro da cidade a serem expulsas para as periferias, no sentido de dinamizar esse mercado, supostamente para o arrendamento em espaço nacional, mas também para potenciar lógicas de investimento por parte de estrangeiros. Sabemos quais são esses regimes especiais, os residentes não habituais, os vistos Gold, novas formas de intervenção sobre o edificado que foram facilitadas e, portanto, muito mais baratas e, obviamente, o novo regime de arrendamento urbano.
E que têm consequências.
Quando tudo isto se conjugou com as alterações que foram feitas especificamente no campo do trabalho — a reforma da legislação do trabalho que embarateceu o trabalho —, nós tivemos o cruzamento de duas lógicas. Ou seja, foi possível criar uma bolsa de novo emprego em atividades que são muito pouco produtivas e que, quando olhamos para as estruturas de rendimento entre as várias atividades económicas, são aquelas que têm remunerações mais baixas, qualificações mais baixas e maiores níveis de precariedade.
Nós fomos criando uma bolsa de emprego que, na verdade, puxa toda a economia para baixo. É um novo emprego com rendimentos mais baixos, é um novo emprego com produtividade mais baixa, é um novo emprego extremamente vulnerável a estes ciclos de procura. No contexto de uma recessão em espaço transnacional, uma das primeiras despesas que as pessoas cortam são as viagens turísticas e, portanto, nós fragilizamos todo o tecido da economia. Os trabalhos do José Reis e do José Maria Castro Caldas mostram que isto tem efeito em toda a estrutura de rendimento e na estrutura de criação de valor da área metropolitana, mas de alguma forma contagia as outras atividades.
Por nós termos uma estrutura de rendimentos tão baixa que puxa os salários para baixo, porque fragilizámos os sindicatos, fragilizámos a legislação de trabalho, investimos neste tipo de atividades. Há um outro conjunto de atividades que exigem que os seus profissionais procurem rendimentos mais altos e que vão para outros lugares. Portanto, nós estamos a exportar a tal mão-de-obra mais qualificada, ou alguma mão-de-obra que procura no início de vida outro tipo de rendimentos, e estamos a perder centralidade e capacidade de captação dessas mesmas atividades que são mais produtivas e são capazes de criar mais valor. Portanto, estamos a ter um ciclo em que puxamos a economia para baixo. Isto acontece muito na área metropolitana de Lisboa, mas acaba por ter um efeito de arrastamento, creio eu, sobre o conjunto da economia nacional.
“Nós fomos criando uma bolsa de emprego que, na verdade, puxa toda a economia para baixo. É um novo emprego com rendimentos mais baixos, é um novo emprego com produtividade mais baixa, é um novo emprego extremamente vulnerável a estes ciclos de procura.”
No que toca à habitação, os preços da habitação e o mercado globalizaram-se. Portugal, de facto, é um dos países com um dos menores stocks de habitação pública da Europa e, finalmente, parece haver um reconhecimento de que isto é um problema. Temos agora, pela primeira vez, um Ministério da Habitação e o PRR menciona a construção de 26 mil habitações nos próximos anos, com o programa 1º Direito. Coincidentemente, 26 mil é mais ou menos o número de Airbnb’s que existe na área metropolitana de Lisboa de 2022.
Estamos a tentar resolver o problema da habitação neste momento apenas ao tentar criar um parque público, com décadas de atraso? Não é um pouco como tentar resolver os problemas de uma social democracia do pós-guerra, onde ainda existiam controlos capitais, sem perceber as particularidades do contexto da integração europeia e do neoliberalismo?
Eu acho que esse tem sido um debate extremamente interessante, pelo menos entre uma série de investigadores, nos últimos anos. Nós começámos com esta percepção de que havia uma crise de habitação, ou seja, que estávamos a ter preços claramente divergentes em relação àquilo que é a estrutura de rendimentos médios na sociedade portuguesa ou na área metropolitana de Lisboa, e que, portanto, podíamos olhar para aquilo que foi sempre, digamos, o filho esquecido das políticas sociais em Portugal: a política de habitação.
Há sempre uma estranheza ao pensar porque é que, com um movimento de moradores tão forte durante a revolução portuguesa – e em que a questão da habitação foi tão falada como um dos problemas principais deixados pelo fascismo –, por volta de 1977/ 1979, deixámos de ter capacidade de grande produção habitacional. A leitura que eu fiz, num trabalho anterior, é que foi mais fácil na sociedade portuguesa, durante o período da institucionalização democrática, criar novas redes públicas sobre a saúde ou sobre a educação lançadas no território, mas que não iam mexer com a propriedade privada dos solos, que era o que acontecia na habitação; portanto, foi mais fácil estruturar esses direitos sociais do que os outros, que iam exigir uma política de solos, de expropriação, de investimento e, portanto, o regime português, de alguma forma, retraiu-se.
“Foi mais fácil na sociedade portuguesa durante o período da institucionalização democrática criar novas redes públicas sobre a saúde ou sobre a educação lançadas no território, mas que não iam mexer com a propriedade privada dos solos, que era o que acontecia na habitação; portanto, foi mais fácil estruturar esses direitos sociais do que os outros, que iam exigir uma política de solos, de expropriação, de investimento.”
Tivemos um grande ciclo de crescimento de construção informal ali até ao início dos anos 1990 e depois, quando entrámos no Sistema Monetário Europeu, a descida das taxas de juros permitiu aquele fluxo de crédito barato que estimulou um determinado modelo de crescimento, que foi sobre a construção de propriedade. Nós, de facto, tivemos aquela ligação entre o sistema financeiro, as construtoras, e os donos dos solos fundiários que estruturou este modelo de habitação. A Ana Santos, o João Rodrigues e o Nuno Teles têm trabalhado muito a financeirização do capitalismo português, muito centrado sobre essa estruturação entre o sistema financeiro, famílias, construção e acesso aos solos.
Depois veio a crise e, na altura, nós começámos a discutir, em 2015/2016, a perceção de que os preços não correspondiam aos rendimentos médios e que podíamos finalmente apostar numa política pública de estruturação de um stock público de habitação, olhando para aquela que tinha sido a experiência do pós-guerra na maior parte da Europa do Norte e caminharmos nesse sentido. O IHRU [Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana] começou, a partir da primeira discussão de 2017, a nova geração de políticas de habitação, e havia a meta de atingir os 5% de habitação com apoio público.
O apoio público é sempre algo que nós queremos perceber o que é que significa, porque seriam 170 a 180 mil novos fogos construídos, o que é uma coisa significativo e em que existe muitíssimo investimento, planeamento. Eu acho que aqui na meta dos 5% nós temos que perceber o que é que o próprio Governo do Partido Socialista acha que é a construção de novos fogos, e o que são outras formas de apoio público com acesso à habitação.
Os regimes de benefícios fiscais que foram criados, nomeadamente para os senhorios da oferta privada: aquela coisa de que se a pessoa alugar a sua casa a menos de 20% do preço da área da sua freguesia, tem um conjunto de benefícios fiscais, a que se chama o Programa de Arrendamento Acessível. Na verdade, com tanta procura de habitação que existiu até agora, desde que foi criado em 2019, 900 contratos foram feitos — é uma pinga de água para aquilo que é necessário. Em 2018, o IHRU fez, a partir de inquéritos às câmaras municipais, um diagnóstico que mostrou que havia 26 mil famílias com carências graves em matéria de habitação e, portanto, isto era dirigido, não tanto para uma classe média que tem dificuldades, ou que tem um grande impacto nos custos habitacionais no seu rendimento, mas a pessoas que estão em situação de carência grave habitacional.
Percebemos muito rapidamente que estes 26 mil não seriam suficientes. Este programa que foi lançado, o programa 1º Direito, agora com participação a 100% por parte do PRR, é uma primeira resposta. Provavelmente não vai responder a tudo e temos o problema do tempo: temos de utilizar os fundos até 2026, e a construção é sempre um processo muitíssimo moroso. Porque é preciso fazer as estratégias locais de habitação, é preciso perceber as necessidades, ter acesso aos terrenos, fazer concursos de arquitetura, fazer concursos de construção, todos eles são impugnados e, portanto, tudo isto vai demorar muito tempo a dar resposta.
Tempo que escasseia…
O problema é que nós temos segmentos de classe média que são particularmente vocais na sociedade portuguesa, que têm também imensas dificuldades no acesso a uma habitação digna e razoável, tendo em conta os seus rendimentos. E o 1º Direito não dá resposta a isto. É verdade que o PRR tem 600 milhões guardados para o Programa de Arrendamento Acessível, eventualmente algum com construção, e outro tipo de apoios que podem surgir, mas o que nós começamos a perceber é que a estrutura de propriedade privada é de tal forma significativa no parque habitacional público, e o tipo de procura a que o mercado habitacional português está sujeito pressiona de forma tão gritante (as tais procuras externas), que não basta construir de novo e, aparentemente, não basta dar benefícios fiscais também aos senhorios. Vamos experimentando estas soluções.
“O problema é que nós temos segmentos de classe média que são particularmente vocais na sociedade portuguesa, que têm também imensas dificuldades no acesso a uma habitação digna e razoável, tendo em conta os seus rendimentos. E o 1º Direito não dá resposta a isto.”
O debate que tem surgido na Europa, e aquilo que foi o movimento em Berlim de estruturação de um referendo sobre a própria regulação de rendas – em Berlim foram até mais longe, sobre a expropriação dos grandes senhorios, das grandes empresas –, é um debate absolutamente fundamental. Nós não conseguimos ter um instrumento de intervenção no mercado de habitação que o torne adequado às pessoas que de facto vivem e trabalham na cidade, que animam a economia metropolitana, se nós não baixarmos as rentabilidades que hoje em dia estão disponíveis. E, portanto, tem que se mexer numa matéria que é extremamente complexa do ponto de vista político na sociedade portuguesa, que é nós termos que começar a regular rendas. Eu não vejo grande alternativa a isto.
Devo dizer que o atual Ministro das Finanças, quando ainda era Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, disse, de forma muito clara: se nós não formos capazes de baixar as rendas no mercado de uma oferta social, uma oferta privada, nós vamos ter que fazer regulação de rendas. Acho que temos de caminhar nesse sentido.
“Nós não conseguimos ter um instrumento de intervenção no mercado de habitação que o torne adequado às pessoas que de facto vivem e trabalham na cidade, que animam a economia metropolitana, se nós não baixarmos as rentabilidades que hoje em dia estão disponíveis. E, portanto, tem que se mexer numa matéria que é extremamente complexa do ponto de vista político na sociedade portuguesa, que é nós termos que começar a regular rendas.”
Nós temos pela primeira vez em Portugal, creio eu, mas talvez também noutros países europeus, uma coisa que não acontecia. Tivemos um processo de construção de identidades de classe média muito ligada à propriedade habitacional, que foi uma espécie de conquista: as pessoas conquistaram, chegaram à cidade, ganharam um emprego, compraram a sua casa, e sentem que é uma segurança em relação à própria provisão de bem estar por parte do Estado. Não sabem o que vai acontecer em relação às pensões e pensam que é um legado que vão deixar aos filhos, portanto está muito estruturado sobre uma ideia até de conquista democrática.
E pela primeira vez nós temos um conflito que atravessa as classes médias, com uma fortíssima dimensão geracional, em que elas têm interesses diferentes sobre a habitação; têm um conflito. Há novas gerações de classe média que entendem que é preciso intervir fortemente no mercado habitacional, regular o alojamento turístico, não permitir este tipo de procura externa que responde à especulação, regular as rendas, ter novos tipos de ofertas.
E há uma parte da classe média que está a beneficiar do boom e da especulação, que vendeu a sua casa por um preço que nunca tinha pensado verdadeiramente vendê-la ou que está a rentabilizá-la, seja num arrendamento habitacional normal ou no Airbnb, se o consegue fazer. E num outro texto, não neste volume, eu argumento aqui que o governo do Partido Socialista está hesitante sobre que setor de classe média apoiar. Agora, obviamente, há aqui uma perceção por parte das finanças e por parte de determinados setores do governo que acham que primeiro o turismo cria emprego, depois o turismo traz investimento externo e, portanto, é preciso manter essas lógicas a funcionar. Eu costumo dizer que a grande oposição à nova Ministra da Habitação é o Ministro das Finanças. É ali que está o problema central da nova estratégia de resposta à crise habitacional.
“Nós temos pela primeira vez em Portugal, creio eu, mas talvez também noutros países europeus, uma coisa que não acontecia. Tivemos um processo de construção de identidades de classe média muito ligada à propriedade habitacional, que foi uma espécie de conquista: as pessoas conquistaram, chegaram à cidade, ganharam um emprego, compraram a sua casa, e sentem que é uma segurança em relação à própria provisão de bem estar por parte do Estado. Não sabem o que vai acontecer em relação às pensões e pensam que é um legado que vão deixar aos filhos, portanto está muito estruturado sobre uma ideia até de conquista democrática.”

Recentemente, países como o Canadá e a Nova Zelândia têm feito algumas políticas na restrição da compra por parte de investidores estrangeiros. Vê-as como um mecanismo que Portugal, principalmente dentro do quadro da União Europeia, tem de tentar explorar?
Esse tem sido outro debate que nós temos vindo a fazer, no meio de incertezas, porque na verdade Portugal perdeu determinada componente da sua soberania no processo de integração europeia. É possível a um país restringir compras por parte de não nacionais mas que provêm do espaço da União Europeia? Ou formas de investimento por parte de fundos imobiliários que são da União Europeia? É um debate muitíssimo complicado.
E eu acho que nós temos que explorar bem essas possibilidades jurídicas, porque é extraordinário que Lisboa tenha hoje uma dinâmica cosmopolita extremamente interessante – temos um conjunto de nacionalidades a viver em Lisboa, e isso é muito bom –, mas não pode haver esta espécie de desigualdade. Há um conjunto de estrangeiros que fazem investimento no imobiliário em Portugal, que não vivem em Portugal, e que o fazem estritamente para ter uma forma de rendimento extra. Isso cria uma extração dos rendimentos do trabalho de quem vive, dos rendimentos nacionais na sua média, que é absolutamente inaceitável.
Temos que encontrar aqui uma forma qualquer de regulação deste sistema. Obviamente que é um desafio, eu creio que neste momento sobre essa possibilidade de impedir as compras de estrangeiros, tem que se ir explorando aquilo que é a jurisdição da União Europeia. Acho que é difícil, a propósito da crise de habitação, dizer que vamos sair da União Europeia. Não me parece que seja uma estratégia política sustentável neste momento em Portugal, mas acho que temos que encontrar mecanismos à semelhança de outras cidades que têm procurado encontrar também outras soluções para as suas dificuldades na habitação. Portugal é um caso extremo, creio eu, porque quando nós olhamos para as comparações internacionais vemos que naquele índice entre preço e o rendimento, nas estatísticas da OCDE, Portugal ultrapassa o Canadá, e o Canadá parece quase um modelo inacreditável do que aconteceu.
Nós temos rendimentos muito mais baixos do que aquilo que são os preços que estão a ser praticados hoje em dia no mercado da habitação e isso só é explicável pelas procuras externas, não há outra explicação.
“Nós temos rendimentos muito mais baixos do que aquilo que são os preços que estão a ser praticados hoje em dia no mercado da habitação e isso só é explicável pelas procuras externas, não há outra explicação.”
Um tema não tão mencionado no livro tem que ver com as alterações climáticas e os objetivos de atingir neutralidade carbónica nas próximas décadas. Considera este modelo, baseado no turismo, particularmente vulnerável e contraditório a esses objetivos?
Eu creio que sim. Foi um debate que nós tivemos acerca da questão da localização do aeroporto. Eu tenho a percepção de que é difícil não defender a criação de um novo aeroporto de Lisboa, porque somos uma área periférica da Europa e, obviamente, o aeroporto de Lisboa está completamente atolado na sua procura. Agora, percebe-se que o modelo de aposta no turismo é um modelo de desqualificação da economia portuguesa. A prazo, com as alterações que têm vindo a ser discutidas no quadro europeu, eu creio que a nossa ideia de que é possível trazer uma procura turística do Norte e do Centro da Europa em direção a uma região tão periférica no futuro, com a mesma intensidade que está a ser praticada ao longo desta última década, é incomportável. Agora, tudo isto necessita de planeamento.
Eu devo confessar: nós realizámos em Janeiro um debate sobre o planeamento, que aconteceu durante dois dias na Fundação Calouste Gulbenkian, em que tentámos partir sobre a questão do regresso do planeamento económico, do planeamento e do ordenamento do território, administração pública, ou seja, a estruturação de modelos de desenvolvimento e de escolhas políticas no longo prazo, no qual a dimensão das alterações climáticas foi transversal a todos os domínios. Portanto, aquilo que nos parece fundamental é que quando olhamos para o que tem sido a estagnação do crescimento dos salários, a desqualificação da economia portuguesa, e quando olhamos para as apostas que foram feitas nos últimos anos, feitas e mantidas ao longo dos últimos anos, precisamos de ter um pensamento estratégico que tenha em conta a profunda transformação que nós vamos ter nas nossas formas de mobilidade, de consumo de energia, de modelos de produção de valor.
Eu acho que esse debate ainda está por fazer na sociedade portuguesa, mas é, certa‐ mente, uma das maiores bandeiras que nos diz que é insustentável este modelo de tentar manter em perigo uma estratégia de crescimento económico apostada na procura externa turística.
Esta entrevista foi originalmente publicada na revista sobre Cidades que o Shifter editou em parceria com o LPP. A versão física dessa revista está esgotada. Neste momento, está à venda um novo número, desta feita dedicado à Inteligência Artificial.