A Câmara de Loures notificou uma centena de moradores de um bairro auto-construído em Santa Iria da Azóia, dando-lhes 48 horas para desocupar as suas casas, aparentemente sem lhes apresentar qualquer alternativa. Embora reconheçam viver numa situação precária e irregular, os residentes daquele bairro preferem um tecto ao frio da rua em pleno Inverno. Entretanto, a autarquia decidiu aguardar uma resposta da Segurança Social antes de iniciar qualquer demolição.

Preta Lopes, 32 anos. É uma das pessoas que vai ser despejada pela Câmara de Loures em Santa Iria da Azóia. Vive há cerca de um ano num pequeno bairro clandestino entre uma zona industrial e o viaduto de uma auto-estrada. Primeiro dividiu casa com uma amiga – num edifício vazio que fora ilegalmente ocupado –, mas como o espaço era pequeno para si e para o marido acabou por construir, ao lado, uma habitação de madeira. Isto “há cinco ou seis meses”. Agora, pode ir para a rua, em pleno Inverno.
O bairro onde Preta e mais uma centena de pessoas residem surgiu nas traseiras da Rua das Marinhas do Tejo, num terreno particular, que o proprietário quererá vender. Nesse espaço, há um conjunto de três edifícios de tijolo; dois estão arrendados legalmente e um deles estava desocupado desde a construção da auto-estrada e começou a ser ocupado de forma irregular há cerca de dois anos, principalmente por imigrantes de São Tomé. Em torno desse imóvel, que conta com nove apartamentos, surgiram cerca de 15 habitações auto-construídas por outras pessoas, a maioria também imigrante, que, como os ocupantes do edifício, não encontraram melhores alternativas habitacionais – seja no mercado, seja através de programas municipais. A barraca de que Preta Lopes fez o seu lar nos últimos meses não tem as melhores condições – ela própria sabe disso –, mas “é melhor que viver na rua”, assegura.


Preta abre-nos a porta. Lá dentro, um frigorífico, um sofá e uma sanita, devidamente ligada ao saneamento público, como acontece nas restantes habitações auto-construídas. Quanto a água e electricidade? “Vamo-nos safando”, diz apenas. Muitos dos pertences que Preta e o marido tinham na casa estão entretanto debaixo do largo viaduto da auto-estrada, que está mesmo ao lado. É que com o aviso de despejo, afixado na porta pela Câmara e Polícia Municipal de Loures, Preta não quis arriscar. Ela e muitos vizinhos despacharam-me a tirar o pouco que tinham para “debaixo da ponte”. “O terreno ali é público, do Estado”, refere Preta, afirmando que isso a tranquiliza.
Ordem para despejar
Foi na terça-feira, 10 de Dezembro, que Preta e os vizinhos esbarraram com uma notificação das autoridades, colada com fita-cola em cada uma das construções daquele bairro clandestino: “Avisam-se os utilizadores/ocupantes da presente construção que em virtude de se tratar de uma construção precária e clandestina, insuscetível de legalização urbanística, foi determinado por Despacho da Sra. Vice-Presidente, datando de 9/12/2024, que a Câmara Municipal de Loures dará início ao processo de demolição no prazo de 48 horas”, pode ler-se. Ou seja, a demolição seria na passada quinta-feira, dia 12.

“Deste modo, deverá a construção encontrar-se livre de pessoas e bens, não se responsabilizando a Câmara Municipal de Loures por quaisquer bens que, na data da demolição, se encontrem no seu interior”, lê-se ainda no aviso que está assinado e carimbado.
“É desnumano. É desumano em pleno Inverno”, lamenta a imigrante são-timorense. Preta está em Portugal “faz dois anos em Fevereiro”. “Vivi em Odivelas mas depois fui despejada pelo senhorio” com a mãe e a irmã, conta-nos. No último ano, o seu lar tem sido na Rua das Marinhas do Tejo. Trabalha nas limpezas em Lisboa e recebe à hora. Está perto do comboio, o que é uma facilidade, mas o certo é que “o salário não dá para pagar uma renda”, conta. O marido trabalha na construção civil. Juntos têm tentado encontrar casa, mas não estão a conseguir, explicando que está tudo demasiado caro. “Sei que invadi uma propriedade que não é minha”, refere, consciente de que, de um dia para o outro, uma situação de despejo poderia acontecer.
Mas, é com angústia, que se vê forçada a ir para a rua, em pleno Inverno, sem alternativa. “Estamos dentro de uma casa, com um tecto, como é que nos querem meter na rua assim. É desumano”, reafirma. Quando viu a notificação colada na porta, Preta e alguns vizinhos despacharam-se a tirar os pertences para debaixo do viaduto. Foi aí que dormiu na gelada noite de quarta para quinta, não fosse acordar com máquinas a entrarem pela casa adentro. Na noite de quinta para sexta, já voltou a dormir na casa auto-construída (e que conta com um revestimento especial para ajudar a proteger do frio, uma adição que é fruto dos conhecimentos do marido).

“Sem nenhuma saída”
A prometida demolição não foi iniciada na quinta-feira, nem na sexta, nem no fim-de-semana. A atenção mediática que este caso consumou, graças ao trabalho de mobilização do movimento Vida Justa, terá adiado a vontade da Câmara. “As pessoas aparentemente foram informadas pela polícia de que aconteceria na quinta-feira de manhã. Algo que acabou por não se verificar, cremos nós, porque a comunicação social se dirigiu ao local e porque nós também, do movimento de Vida Justa, fizemos questão de cá estar para apoiar as pessoas”, explica-nos Tiago Sequeira, porta-voz da Vida Justa. “Alguns moradores e jornalistas, inclusive, disseram que viram a polícia a aparecer e a espreitar, e depois a ir-se embora sem dizer nada. Portanto, nós acreditamos que as demolições iriam mesmo avançar, caso não estivessem cá a comunicação social, caso não estivesse cá o movimento de Vida Justa, e caso estas pessoas não estivessem organizados para proteger as suas habitações.“
Para Preta, os últimos dias têm sido de ansiedade constante porque não sabem o dia de amanhã. Encontram-se “sem nenhuma saída, sem nenhum percurso para percorrer”, e sem qualquer apoio da autarquia “Pedimos apoio da Câmara, alguma solução”, desabafa, lamentando a ausência de respostas. Diz que foram recebidos tanto na Câmara, como na Assembleia Municipal (aqui com a ajuda do movimento Vida Justa, participaram na sessão agendada na semana passada). Mas nada parece ter mudado. Continuam sem soluções ou sequer sem perceber se o despejo avança. E, se sim, quando.

“Aqui, a política da Câmara de Lourdes, nos últimos tempos, parece ser de despejar primeiro, e logo se vê se as pessoas têm soluções de relojamento”, aponta Tiago. “E o que a lei de bases da habitação, no artigo 13º, diz é que deve ser ao contrário. Os despejos só podem acontecer quando estiverem garantidas soluções alternativas de habitação. Não é isso que está a ser feito aqui”, nota o porta-voz da Vida Justa. Nas contas do movimento, aquele bairro clandestino alberga aproximadamente uma centena de pessoas, incluindo 21 crianças, quatro pessoas doentes e uma mulher grávida.
O problema das barracas
De acordo com o jornal Observador, a ocupação do terreno começou com a ocupação do imóvel, onde se instalaram vários moradores há cerca de dois anos, contra a vontade do proprietário do terreno. Limparam o imóvel e fizeram algumas obras, para dar ao espaço as mínimas condições. O saneamento foi feito também pelos novos inquilinos, a maioria são-tomenses. Tiago Sequeira apresenta a mesma história: “Estas casas tinham proprietário, aliás, ainda têm, mas estavam desocupadas. Estas pessoas não conseguiam encontrar uma solução no mercado de arrendamento. E a única solução que encontraram foi ocupar estas casas que estavam abandonadas e em muito más condições, cheias de lixo, tecto aberto, sem saneamento”explica. “E as pessoas que ocuparam – volto a dizer porque não tinham alternativa – usaram os seus próprios meios para fazer obras, pequenas obras nas casas e para as deixarem em condições mínimas de habitabilidade.”
“Depois a Polícia Municipal veio aqui e disse às pessoas que não podiam cá estar porque as casas não tinham saneamento, e que se as pessoas resolvessem a questão do saneamento, poderiam ficar até que a Câmara entrasse em contacto para resolver esta questão”, conta o porta-voz da Vida Justa. “E foi isso que as pessoas fizeram, organizaram-se e, do seu próprio bolso, pagaram as obras necessárias para terem o saneamento, arranjaram todos os materiais necessários e instalaram a canalização.”

Portugal, em particular nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, teve no final do século passado um grave problema de barracas – habitações indignas, como as que vimos, e que foram auto-construídas pelas pessoas junto às grandes cidades, onde estavam as oportunidades de emprego. Iniciativas como o PER (Programa Especial de Realojamento) conseguiram extinguir este problema, promovendo o realojamento dessas populações em bairros municipais, construídos pelas autarquias. Hoje, os municípios continuam a oferecer soluções habitacionais para as pessoas mais desfavorecidas, com rendas altamente subsidiadas. Mas essas respostas são sempre limitadas, como prova o crescente número de pessoas a viver em situação de sem abrigo na região de Lisboa.
Ao mesmo tempo, as câmaras não querem que o problema da barracas regresse. Há o receio de que a falta de acção em situações pontuais possa levar ao crescimento de novos bairros informais, tornando depois o problema mais complexo de gerir. Este tem sido um dos argumentos da Câmara de Loures, que justifica a necessidade de intervir para evitar que aquele bairro auto-construído aumente em escala e se torne um desafio social maior. “Tendo em vista também a necessidade de se evitar que este núcleo precário e insalubre continue a crescer, na terça-feira, os cidadãos que vivem nestas construções foram notificados, por edital camarário, de que estas construções serão demolidas e que deviam procurar alternativas”, referiu autarquia liderada pelo socialista Ricardo Leão, num comunicado publicado na quinta-feira, o dia em que estava prevista a demolição das construções informais – incluindo do edifício de tijolo, que estava devoluto antes de ter sido ocupado.
“Todos os utilizadores deste espaço foram encaminhados para os serviços de acção social da Câmara, tendo os agregados familiares (correspondentes a 99 pessoas) que procuraram a autarquia sido recebidos pelo gabinete da Vice-Presidente, com os pelouros da Habitação e Desenvolvimento Social, na terça-feira”, assegurou o Município no mesmo comunicado.

“Situação evidente de risco para a saúde pública”
“Da recolha de informação sobre estes agregados familiares, conclui-se que apenas 20 pessoas indicaram moradas no concelho de Loures – sendo que grande parte delas nunca habitaram verdadeiramente numa habitação no concelho, tendo apenas dado uma morada de um conhecido ou familiar. As restantes têm moradas nos concelhos vizinhos e até em Coimbra, Viseu e noutras localidades do país. De origem estrangeira, a maioria em idade ativa, encontram-se muitos a trabalhar em situações precárias por não lhes ter sido ainda concedido visto de trabalho no país”, prossegue-se na nota divulgada. “Este é o retrato de uma realidade nacional e que exige uma resposta concertada de âmbito nacional.”
A Câmara de Loures termina, referindo que “garantir que a dignidade na habitação é uma marca deste executivo camarário, que não pode aceitar a existência de situações precárias e ilegais que, ademais colocam em risco a saúde pública e a de todos os que ali vivem de modo insalubre”. “Além das pobres condições interiores destas construções precárias, detectou-se uma situação evidente de risco para a saúde pública, uma vez que os habitantes deste núcleo vivem em situação de absoluta insalubridade, sem eletricidade própria ou água potável, com lixo acumulado, onde proliferam roedores”, identifica a autarquia. “No local, foi detetado que a maioria destas construções foram feitas nos últimos meses com chapas e madeira de aparite, entre outros materiais frágeis e de pouca durabilidade, sendo que mais estavam já em preparação.”

Segundo a Câmara de Loures, a decisão de demolir aquele bairro foi tomada depois de ter sido recebida uma denúncia sobre as condições de habitabilidade em diversas construções ilegais a 5 de Dezembro, tendo o local sido visitado com assistentes sociais e agentes da Polícia Municipal. Tiago Sequeira, do Vida Justa, reconhece serem construções precárias mas diz que “é melhor do que dormir ao relento, sobretudo em pleno Inverno, com este frio”. “O que aconteceu foi isto: foi colocado este aviso de demolição, com prazo muito exíguo, de apenas 48 horas, para as pessoas não só retirarem os seus pertences das suas casas, como para encontrarem elas próprias, pelos seus próprios meios, uma solução no mercado de arrendamento em tempo recorde.”
Câmara de Loures vai aguardar
A Câmara de Loures vai, afinal, aguardar por uma resposta da Segurança Social antes de avançar com qualquer demolição. Em declarações na Assembleia Municipal, na quinta-feira à noite, Sónia Paixão (PS), Vice-Presidente da autarquia, disse que foram activados “os mecanismos de emergência da Segurança Social porque não compete à Câmara Municipal de Loures por si só responder a estas situações de emergência”, afirmou, referindo que, à data e hora daquela sessão, aguardava ainda que o Presidente do Instituto de Segurança Social [Octávio Félix de Oliveira] retribuísse as suas “insistências de telefonema” e dizendo que tinha “duas comunicações escritas” do Município, uma delas com uma “solução temporária” para apresentar a estas famílias.
“Não devemos subscrever que aquelas habitações sejam consideradas adequadas para abrigar crianças e mulheres grávidas”, reforçou a autarca. A responsável disse que havia habitações a serem construídas naquele bairro “na semana anterior” e repetiu o que o comunicado, emitido durante aquele dia (e citado anteriormente neste artigo), havia já referido: que os actuais moradores “foram atendidos imediatamente pela minha adjunta e mais elementos do meu gabinete mal chegaram aos Paços do Concelho – não esperaram nem uma hora por este primeiro atendimento –” y eso, “de seguida, foram encaminhados para os serviços de acção social”.
Preta e outros moradores relatam terem sido recebidos pelos serviços camarários, mas afirmam que saíram desses encontros sem soluções concretas ou informações claras sobre o processo de demolição. Além disso, toda a actuação da Câmara de Loures sugere que o acompanhamento às pessoas residentes no local, em situações indignas de habitabilidade, só foi realizado após a afixação das notificações de demolição, e não de forma preventiva.
“A crise habitacional é sobejamente conhecida em Portugal e afecta todo tipo de pessoas: pessoas imigrantes, pessoas portuguesas, pessoas que trabalham, casais… Nós conhecemos casos de casais que trabalham, que têm emprego, têm salário, que ainda assim não conseguem pagar uma renda e são forçadas a viver na rua. Portanto, estas pessoas, com os meios que têm, tentaram procurar soluções, propuseram, inclusive, ao proprietário que fosse pagar uma renda, coisa que o proprietário terá rejeitado. E na falta de soluções, tiveram de encontrar as suas próprias soluções”, conclui Tiago.