Os cineastas Ila Bรชka e Louise Lemoine tรชm viajado pelo mundo ร procura de diferentes quotidianos e contextos urbanos. O seu projecto documental Homo Urbanus retrata 14 cidades, de Rabat a Veneza, passando por Tรณquio, Mumbai e, mais recentemente, Lisboa.

Hรก muitas formas de retratar Lisboa e cada um poderรก fazรช-lo a partir da sua perspectiva. Cada pessoa verรก, ouvirรก e viverรก Lisboa de uma maneira prรณpria, com base naquilo a que dรก mais atenรงรฃo e no que mais lhe interessa. Ila Bรชka e Louise Lemoine sรฃo dois artistas โ ele italiano, ela francesa โ com particular interesse na sรฉtima arte. Sรฃo mais que cineastas, porque o trabalho que apresentam vai alรฉm do filme puro e duro. Prova disso รฉ a sua sรฉrie Homo Urbanus, dedicada a explorar as particularidades da vida urbana em vรกrias cidades e que acaba de ter um episรณdio dedicado a Lisboa. ร dele, precisamente, que falamos neste artigo.
Homo Urbanus Lisboetus รฉ o resultado de uma visita de duas semanas de Bรชka e Lemoine ร capital portuguesa. Em 40 minutos, fica condensada a realidade que o duo de cineastas encontrou ao andar por Lisboa โ uma sequรชncia de sons e de imagens sem aparente conexรฃo mas que acabam por se interligar de forma tรฃo genuรญna e bela, acabando, de forma nรฃo inocente, por contar uma histรณria. Uma histรณria que nรฃo tem narrador nem voz, apenas aquilo que nos รฉ dado para ver e escutar. โO objectivo destes nossos filmes รฉ deixamos as pessoas a pensar que, se observarem melhor, vรชem muitas coisas nas cidades. As cidades falam muito alto, mas se nรฃo quisermos ouvir, continuamos a viver como todos os outrosโ, disse Ila Bรชka na apresentaรงรฃo do filme que decorreu no CCB a 5 de Marรงo.
En Homo Urbanus Lisboetus, hรก muito de Lisboa que nos vai ser familiar mas tambรฉm outros detalhes que, talvez, sempre tenhamos percebido sem realmente os observar. Essa รฉ a magia deste pequeno filme. Uma parte substancial deste exercรญcio documental รฉ feito de cรขmara a apontar para baixo โ para o chรฃo โ, adoptando um ponto de vista que, na era dos telemรณveis, nos รฉ familiar, mas que aqui serve para contar a histรณria da calรงada de Lisboa e dos desafios que impรตe diariamente a quem nela caminha โ รฉ โo desafio diรกrio da cidade com o chรฃoโ, disse Bรชka. No filme, vemos as particularidades e desafios da mobilidade pedonal numa cidade de sobe e desce, onde os mais velhos, por exemplo, tรชm dificuldade em caminhar nรฃo sรณ pela exigรชncia fรญsica mas tambรฉm pelos passeios estreitos. Depara-nos com os passeios esburacados ou desnivelados, e com a naturalidade que o homo urbanus lisboetus se vรฃo adaptando a essas realidades โ e tambรฉm com as improvisaรงรตes que nascem. Observamos o diรกlogo que os homens das cargas e descargas, tรชm de fazer com os restantes caminhantes e com a cidade em si, quando transportam os seus carrinhos pelo espaรงo exรญguo e irregular.
O filme olha tambรฉm para cima. Para os aviรตes que estรฃo constantemente a sobrevoar Lisboa tรฃo prรณximos dos edifรญcios. ร fรกcil sermos ensurdecidos por tantos aviรตes, ao ponto de a urgรชncia de um novo aeroporto se tornar bem audรญvel. Vemos tambรฉm a cidade captada pelo turismo de massas com o rodopio de tuk-tuks (que nรฃo deixam de ser elementos alegres na cidade), a proliferaรงรฃo de alojamentos locais (tรฃo bem simbolizados com os cofres de chaves) ou as trotinetas espalhadas sem nexo por espaรงos pรบblicos. ร-nos mostrado o lado dos edifรญcios em reabilitaรงรฃo e o dos edifรญcios ao abandono. Assistimos ร cidade a acontecer a partir da janela do 28, o elรฉctrico que quase empurra essa cidade contra as fachadas dos edifรญcios tal รฉ a compactaรงรฃo do centro histรณrico. Vemos os animais que vรฃo resistindo neste espaรงo urbanizado e complexo, como as galinhas do Campo Mรกrtires da Pรกtria que jรก parecem conhecer as dinรขmicas dos carros para atravessar a estrada. Observamos tambรฉm a relaรงรฃo com o rio, da apanha na margem de Alcochete, ร contemplaรงรฃo do rio na marginal do Cais do Sodrรฉ. Tudo o que Ila Bรชka e Louise Lemoine mostram parte de um lugar de nรฃo julgamento. โNรฃo hรก julgamento neste filmeโ, detalhou Bรชka. โNรฃo รฉ um retrato positivo, nem negativo. ร uma observaรงรฃo com espontaneidade.โ
ร isso. O filme รฉ um registo, condicionado nรฃo sรณ pelo momento em que foi filmado como pelo curto tempo que o duo de cineastas passou em Lisboa. โร apenas o nosso ponto de vista, a nossa opiniรฃo. Aquilo que vimos nas duas semanas em que estivemos cรก. ร o que vimos nesse momentoโ, explica Bรชka. โNรฃo estamos a filmar o que achamos que รฉ positivo ou negativo. Estamos a filmar tudo. Temos uma relaรงรฃo humana com o que vemos. Achamos que tudo รฉ bonito. Nรฃo รฉ o bonito de fachada, mas o bonito de humano, de ser tudo muito humano.โ
Uma das belezas deste documentรกrio รฉ tambรฉm a sua capacidade de contar uma histรณria sem recorrer a um narrador. โA ediรงรฃo รฉ a nossa forma de escrever o filme, mas รฉ tambรฉm a consequรชncia do que estamos a observar na cidadeโ, apontou Bรชka. As diversas situaรงรตes sรฃo agrupadas em sequรชncias que ganham sentido nรฃo sรณ pelo que mostram directamente, mas sobretudo pela relaรงรฃo entre elas. Por exemplo, de uma sequรชncia de pedras soltas na calรงada seguimos para trabalhos de calcetamento, observadas por uma senhora no 28, e, a partir daรญ, embarcamos numa viagem de elรฉctrico; deste, seguimos para a questรฃo da turistificaรงรฃo da cidade, e por aรญ adiante…
โLisboa รฉ uma cidade tรฃo bonita que nรฃo precisa do nosso filme para ser melhor ainda. A questรฃo รฉ como รฉ que ela vai sobreviver nessa beleza. Isso รฉ uma questรฃo importanteโ, comeรงou por dizer Bรชka em jeito de alerta para Lisboa, acrescentando que, por exemplo, Veneza รฉ uma cidade que estรก a โmorrerโ por causa da sua beleza. โCada bonita fotografia que um turista tira mata a cidade um bocadinho mais, porque estรก a convidar outros turistas a virem e nรฃo a criar uma discussรฃo sobre o que estรก a acontecer.โ
Esta discussรฃo รฉ algo que Bรชka e Lemoine procuram nestes filmes que estรฃo a fazer, mostrar alรฉm da โgrande fachada que as cidades tรชmโ. Atravรฉs da sรฉrie Homo Urbanus, o duo de artistas-cineastas explora a ideia da cidade como ecossistema, observando as peculiaridades da espรฉcie que designam como esse homo urbanus no habitat internacional que aquela vai construindo โ e atravรฉs do qual se constrรณi. A dupla tem vindo a viajar pelo mundo desde 2017 e o seu projecto jรก retrata 14 cidades distintas, de Rabat a Veneza, passando por Tรณquio e Mumbai, e tendo sido Lisboa a รบltima cidade ร data.
Apresentados atravรฉs da lente de uma selecรงรฃo de temas e questรตes ligadas ร vida quotidiana na rua, estes filmes permitem-nos entender cada um desses diferentes contextos urbanos como um laboratรณrio local e รบnico, respondendo ao desafio global de como podemos viver em conjunto. Ila Bรชka e Louise Lemoine procuram fazer โ ร s vezes sem nos apercebermos โ uma anรกlise minuciosa da forma como as pessoas habitam, adaptam, se apropriam ou lidam com os espaรงos que enquadram as suas vidas, evidenciando o modo como as pessoas e os lugares se influenciam mutuamente, revelando como o ambiente construรญdo influencia o nosso estado fรญsico, psicolรณgico e emocional.
Os 10 primeiros filmes podem ser alugados ou adquiridos atravรฉs do Vimeo dos artistas por 18 ou 30 euros; os quatro mais recentes estรฃo em exposiรงรฃo no MAC/CCB atรฉ 6 de Abril. O filme Homo Urbanus Lisboetus passou na RTP2 a 5 de Marรงo (ainda podes ir a tempo de gravรก-lo na box da tua operadora) e estรก tambรฉm disponรญvel na referida exposiรงรฃo.
Sobre Lisboa, ficou em Bรชka o ritmo da cidade. โFoi impressionante para nรณs. Tudo รฉ muito calmoโ, disse, tendo em memรณria lugares como Tรณquio ou Mumbai. โTalvez esteja relacionado com o chรฃo, porque nรฃo รฉ fรกcil andarโ, arriscou uma como explicaรงรฃo. Na apresentaรงรฃo no CCB, o cineasta italiano, a viver em Franรงa, falou com descontraรงรฃo das particularidades que foi encontrando pela capital portuguesa โ como as pedras soltas da calรงada, que diz serem โparte da belezaโ e que รฉ algo que โfaz parte da cidade como um organismo vivo, รฉ sinal da vida da cidadeโ; ou como os aviรตes, que โรฉ como viver com uma pessoa que nรฃo รฉ perfeita. Nรณs nรฃo somos perfeitos, temos muitos defeitos e problemas. Amas alguรฉm tambรฉm pelos seus problemasโ.
Tambรฉm as galinhas no Campo Mรกrtires da Pรกtria mereceram um comentรกrio especial de Bรชka. โAs galinhas foram muito surpreendentes na forma como lidam com os carros โ elas sabem o que fazer. Dizemos ร nossa crianรงa de sete ou oito anos para ter cuidado aqui e ali, mas a galinha sabe como se mover e nรฃo morreโ, observou. โOs animais tรชm de viver num ambiente urbano que nรณs criamos para nรณs mesmos, e eles tรชm regras diferentes para viver nesse ambiente. Observar os animais รฉ muito importante, assim como observamos as relaรงรตes dos idosos.โ E completou: โTemos de perceber como nos relacionamos uns com os outros para termos melhores relaรงรตes. Temos de entender que para as pessoas mais velhas a cidade pode ser melhor e que as relaรงรตes entre todos os humanos devem ser melhores.โ
โFilmamos com muita empatia, e a empatia nรฃo poderia ser mais realista. Se temos muita empatia com o que estamos a filmar e a observar, vamos ter um bom resultado.โ Jรก no final da apresentaรงรฃo, Bรชka lanรงou uma interrogaรงรฃo: โNรฃo sei porquรช, mas nรฃo vimos muitas crianรงas a brincar. ร uma questรฃo que devemos fazer: porquรช? Nรฃo quer dizer que nรฃo haja crianรงas a brincar em Lisboa, mas se calhar nรฃo apanhรกmos no momento em que estivemos cรก.โ De fora, ficou a noite โ neste e nos outros filmes, por um motivo: โDe noite, as pessoas nรฃo se comportam da mesma forma. ร uma mรกquina diferente. O que queremos fazer nรฃo รฉ isso.โ