A próxima edição do festival TODOS volta a marchar para Arroios. Entre 12 e 14 de Setembro, o TODOS sai à rua munido de empatia e atenção entre comunidades e culturas. “Lado a Lado” é o tema que dá o mote à programação, que também passa pelo Jardim Constantino, onde nos sentámos a conversar com Miguel Abreu, fundador e director do festival.

Miguel Abreu fala depressa, praticamente sem hesitar. Mais de 15 anos depois de ter desenhado o festival TODOS, conhece bem o que move a cidade e as suas comunidades. Mas não acredita que as cidades devam ser multiculturais, um conceito muitas vezes responsável pela criação de guetos e incompreensão. Prefere falar-nos de interculturalidade, da criação de pontos de encontro entre todos, para que vivam uma cidade lado a lado.
É este o pontapé de saída para mais uma edição do TODOS – Caminhada de Culturas, que desde 2009 tenta descobrir conexões locais em vários bairros da cidade. Este ano regressa a Arroios, freguesia profundamente marcada pela diversidade cultural, com uma programação recheada de “espaços de interacção” que prevê a segunda Marcha de Todos, que deu o primeiro passo em 2024. Mas este ano será maior.
O TODOS não ocupa um território. Mas instala uma espécie de fio invisível entre espaços públicos, interiores e exteriores, para estabelecer diálogos que possam depois perdurar. “Queremos descobrir conexões possíveis entre pessoas e instituições. Caminhamos, tropeçamos em pessoas, encontramos ruínas, património, associações e é desta mistura que nasce, nomeadamente, este ‘Lado a Lado’”, explica Miguel Abreu. E, passo a passo, a cada edição encontra inspiração para o ano seguinte.
Interculturalidade vs multiculturalidade
Acima de tudo, o TODOS quer-nos pôr a pensar, em particular, numa “freguesia muito heterogénea, com tipologias de pessoas muito diferentes entre si e onde sentimos bastante racismo, bastante desencontro social, com zonas para uns e zonas para outros”, descreve o director do festival. Por isso mesmo, este ano quiseram trabalhar a ideia dos espaços de interacção entre as pessoas. No programa, encontram-se actividades que traduzem essa vontade, como sessões de cinema que convidam ao debate, focadas nas três grandes comunidades de imigrantes que residem em Arroios, como brasileiros, chineses ou originários da região sul-asiática conhecida como Indostão.
Outra questão trabalhada nesta edição é a "posição das mulheres em cada uma destas culturas”, numa tentativa de “descentrar o olhar do nosso posicionamento europeu, escutar mais dessas mulheres em diálogo com mulheres de outras culturas”. Um exercício de empatia desdobrado em vários momentos da programação, como a oficina Our Body is Our Body, em torno da Thiruvathira Kali, uma dança tradicional do Estado indiano Kerala, que tem uma forte ligação com a emancipação feminina. Será orientada por Thrinisha Mohandas que irá relacionar o tema com os movimentos feministas ocidentais, além de ensinar alguns passos de dança.
Destaque ainda para o espectáculo de teatro-documentário Viemos Roubar os Vossos Maridos, da brasileira Maria Giulia Pinheiro, que recorda o episódio Mães de Bragança, convidando à reflexão sobre o lugar do outro, abordando estereótipos, machismo, racismo, xenofobia e patriarcado.

Mas, para Miguel Abreu, o TODOS “não é um festival destas coisas para a pacificação”, defende. “Nós agitamos as águas, é mais essa a intenção de pôr as pessoas a pensar, porque o multiculturalismo é cada um ficar no seu cantinho”, critica o fundador do festival. E recorda um célebre discurso proferido por Angela Merkel em 2010, que “decretou a morte da multiculturalidade, porque deu asneira na Alemanha e também em França, quando houve os motins nos banlieues de Paris, porque as comunidades ficam fechadas sobre si”.
Miguel lamenta que, sozinho, o TODOS não consiga que estas águas corram para um mar mais alargado, onde a interculturalidade possa de facto ter espaço. “Eu diria que, para se fazer a sério a construção de uma cidade intercultural, seriam precisos uns 30 ou 40 festivais como o TODOS, com outras pessoas, outros nomes, mas sempre com esta preocupação de criar espaços” que desenhem várias formas de comunicação no sentido de aproximar as pessoas de causas comuns. “Porque a interculturalidade que nós queremos ou que estimulamos é da transversalidade em todos os sectores”, observa.

Ao mesmo tempo, desafia certos decisores: “A maior parte dos políticos diz que Lisboa é uma cidade multicultural, não introduzem o intercultural, que é um passo seguinte. Se insistem na multiculturalidade, estão a insistir na guetização e no conflito entre comunidades, em vez de criar projectos e políticas de transversalidade.”
Há, no entanto, espaços onde a interculturalidade nasce de práticas espontâneas. Para Miguel Abreu, o Hospital Dona Estefânia é um bom exemplo. “É um verdadeiro hospital intercultural, sem qualquer tipo de formalismo, com médicos, técnicos ou enfermeiros que constroem um hospital intercultural, no sentido de já ter berços virados para Meca”por ejemplo.
Juntar as peças
O Hospital Dona Estefânia é um dos muitos espaços da freguesia que acolhe o TODOS, numa edição que também se estende pelo Mercado de Arroios, Ginásio da Pena, Duplacena 77, Liceu Camões, Jardim Constantino, BOTA, Clube Atlético de Arroios, Biblioteca de São Lázaro, BUS – Paragem Cultural, DEPOZITO, Jardim Cesário Verde, Hospital Miguel Bombarda, Galeria Anita Ribeiro – Junta Freguesia de Arroios, Largo do Intendente, Clube Estefânia, Praça José Fontana ou a Igreja Evangélica Lisbonense.

Partes de um todo que, para Miguel Abreu, poderiam funcionar como um “projecto cultural comum”, do qual o TODOS serve como mediador neutro e temporário, na esperança de promover projectos comuns e interacção quotidiana. “Aqui, o que vemos é que cada um está no seu lugar: a Escola de Mulheres está lá no seu cantinho, o Clube Atlético de Arroios está ali na sua casinha… fazem isto, fazem aquilo, mas tudo para dentro, não interagem muito uns com os outros”, constata.
E porque o TODOS não se esgota nos dias de festival, todos os diagnósticos e propostas são, a cada edição, sistematizados em relatórios finais, onde Miguel Abreu deixa algumas recomendações de continuidade, registos que podem servir de inspiração a quem quiser dar seguimento ao trabalho do TODOS. No entanto, conta, “99,9% das sugestões são ignoradas, porque ninguém lê estas coisas, infelizmente, mas são os políticos que temos”. Embora, ressalve, “há sempre um técnico ou outro que lê e que se interessa”.
O Festival TODOS é promovido pela Academia de Produtores Culturais, fundada por Miguel Abreu, e pela Câmara Municipal de Lisboa, de quem depende não apenas o financiamento como também a definição dos territórios a trabalhar. Miguel Abreu não esconde a importância da participação da autarquia, mas também revela algumas dificuldades que por vezes resultam da parceria. Por exemplo, no ano passado, “o dinheiro entrou às 23h30 do dia da abertura”, assinala, porque quando o TODOS termina, começam logo a trabalhar para o ano seguinte. “Não podemos estar à espera de todo o procedimento burocrático administrativo”, alerta, embora este ano o financiamento tenha chegado mais atempadamente.
Uma marcha que nasce do não
Um dos momentos em destaque desta edição é a segunda Marcha de Todos, onde se irão juntar centenas de músicos, actores e bailarinos. São mais de 400 os inscritos, numa marcha dramatizada, com coordenação artística de Miguel Jesus e Joana Brito Silva, que é também um desfile de vizinhos.
Um momento de celebração que, curiosamente, tem uma história que remete para a génese do festival, em 2009, como nos conta Miguel Abreu: "O TODOS começou por ser uma encomenda da Câmara de Lisboa para eu fazer uma marcha no Terreiro do Paço”, recorda. Mas na altura não achou boa ideia, porque sentia que a proposta teria de partir das próprias comunidades de imigrantes, preferindo desenhar um festival. “E é um festival que marcha do não. Eu disse não a uma marcha que agora que se tornou pedida, já não é imposta, é uma marcha desejada. São imigrantes completamente integrados e celebrativos da sua condição de imigrantes aqui e o ano passado foi muito feérico, eles ficaram muito contentes. Eu acho que a marcha deve continuar, porque é uma forma de os incluir de forma participativa e activa”explica.
Pode ter demorado 16 anos a acontecer, mas hoje o desfile acaba por traduzir o espírito do festival e está expresso na imagem que, este ano, acompanha o cartaz do TODOS. Uma fotografia espontânea da marcha do ano passado com uma jovem do Bangladesh e outra da China, que se conheceram no desfile, traduzindo o espírito lado a lado, que dá o mote para a programação.
Em 2026, o festival estará de regresso a Arroios, mantendo a metodologia de três anos em cada território. Mas, para já, é tempo de viver lado a lado: a agenda completa está disponível em festivaltodos.com.