O que é que Lisboa está a fazer pelo andar a pé?

Num pequeno evento em Setembro, a Câmara de Lisboa apresentou vários projectos e programas em desenvolvimento na cidade, que visam melhorar a mobilidade pedonal para todos. São alguns passos importantes, mas há ainda muito a ser feito para tornar Lisboa mais acessível e caminhável.

Uma pessoa a correr na Rua da Prata pedonalizada (fotografia LPP)

Todos somos peões, mesmo os que têm a sua mobilidade mais condicionada. O caminhar é a forma de mobilidade mais universal, mas é muitas vezes um tema esquecido, por várias partes. Andar a pé é uma experiência com muitas barreiras, que alguns sentem mais que outros, o que condiciona a acessibilidade aos espaços, a utilização do transporte público e a vivência da própria cidade. Para colocar holofotes na mobilidade pedonal, a Câmara de Lisboa realizou, em meados de Setembro, uma pequena conferência, onde mostrou o que tem estado a fazer para melhorar o dia-a-dia do peão.

O evento, intitulado A Pé Por Lisboa, decorreu no dia 18 de Setembro, no contexto da Semana Europeia da Mobilidade, e serviu para antecipar a Walk21, uma conferência internacional sobre mobilidade pedonal, que está a decorrer por estes dias pela primeira vez em Lisboa. O A Pé por Lisboa serviu, também, para celebrar os 10 anos do Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa, um documento extenso e detalhado que tem guiado, dentro do possível, a actuação da autarquia na promoção do andar a pé e da acessibilidade. Pedro Nave, chefe da Divisão do Plano de Acessibilidade Pedonal, partilhou algumas reflexões e avanços alcançados ao longo deste período.

“A Câmara de Lisboa é acusada de não fazer muitas obras pelo andar a pé, e estas apresentações vão contradizer essa ideia. Tem-se feito muito pela acessibilidade pedonal e também com projectos grandes, como na Avenida da República”, afirmou Pedro. Contudo, o técnico sublinhou que nem todas as intervenções têm a visibilidade das grandes obras. “A Câmara também faz projetos que contribuem para o caminhar que são, por vezes, invisíveis, porque decorrem de pequenas obras de manutenção e espaço público e que não têm a importância que os outros têm. Um pequeno passeio em falta consegue fazer uma ligação pedonal que estava por preencher. Coisas pequenas como retirar desníveis e fazer passadeiras sobrelevadas também contribuem para a acessibilidade”añadió.

Embora a calçada portuguesa tenha um valor artístico reconhecido, Pedro Nave admitiu que não é o pavimento mais adequado para quem caminha diariamente. “Sabemos que a calçada é um pavimento bonito, mas não é adequado para caminhar. O calcário fica polido pela utilização e, quando não está bem mantido, as pedras saem do sítio, há buracos”, referiu, mencionando que a cidade tem utilizado materiais como betão para criar pavimentos mais lisos e confortáveis, deixando a calçada portuguesa para as praças e locais históricos. O responsável sublinhou que se tem procurado coexistir esses pavimentos mais lisos com a calçada nos passeios, separando dois conceitos: um é o passeio em si, que pode ser utilizado pelas pessoas; outro é o canal pedonal, um trajecto contínuo e a direito onde as pessoas efectivamente circulam. “Para o canal pedonal, temos encontrado alternativas mais adequadas para o caminhar”, disse o actual coordenador do Plano de Acessibilidade Pedonal.

Uma zona acessível junto à Avenida da Liberdade (fotografia LPP)

Outro aspecto que Pedro Nave adiantou no evento foi a necessidade de falar da segurança no espaço público quando se fala de mobilidade pedonal e de fazê-lo integrando todas as pessoas. “Percebemos que não é só a questão da mobilidade condicionada e das pessoas com deficiência. É também as questões de género. As mulheres não fazem os mesmos percursos que os homens, e isso condiciona as nossas escolhas”, referiu, exemplificando o trabalho desenvolvido no Bairro Padre Cruz, em Carnide. Mas a mobilidade condicionada e as pessoas com deficiências devem continuar a ser incluídas. A acessibilidade também exige inovação, como a introdução de sinalização táctil para auxiliar as pessoas cegas a atravessar a estrada. “Encontrámos uma empresa que fazia uma betoneira para pedir o verde para peões e que não tinha botão; bastava ter um contacto táctil com ela para accionar”, explicou Nave, referindo que esta betoneira também oferece outras funções que beneficiam os peões com deficiência visual, como a possibilidade de verbalizar o nome da rua em que a pessoa se encontra e indicar o número de vias a atravessar. “A expectativa de tempo de atravessamento para uma pessoa cega é importante para que não se sinta perdida no meio da passagem de peões”dijo.

Actualmente, a Câmara de Lisboa encontra-se a trabalhar na revisão do Plano de Acessibilidade Pedonal, com uma actualização das acções do plano que não chegaram a ser implementadas e que precisam ser actualizadas de acordo com as novas necessidades dos peões. Outro ponto de destaque nesta revisão é a inclusão de grupos que anteriormente não eram contemplados inicialmente no plano, como as pessoas de baixa estatura ou com obesidade. “Temos de perceber as necessidades destas pessoas. Estamos a fazer esta aprendizagem agora para que as necessidades sejam contempladas nesta actualização do plano”, afirmou o responsável.

Dar vida aos bairros, arrefecer a cidade e ter uma Lisboa activa

Durante o evento A Pé Por Lisboa foram apresentados programas de diferentes departamentos e divisões da Câmara de Lisboa que têm em comum a promoção do andar a pé. Helena Palma, chefe de divisão do Departamento de Espaço Público, apresentou o programa Hay vida en mi barrio, cujo objectivo é a requalificação do espaço público, promovendo o caminhar e assegurando conforto nos passeios. Este programa assenta no conceito da cidade dos 15 minutos, em que os bairros são mais funcionais, com equipamentos e serviços próximos, permitindo que as deslocações a pé sejam seguras e confortáveis, numa distância de até 15 minutos. “O programa Há Vida No Meu Bairro pretende melhorar a conexão entre diferentes actividades e espaços urbanos, privilegiando as deslocações a pé, com bons pavimentos e arborização”, explicou Helena, assegurando que este projecto, desenvolvido há cerca de dois anos, integrou algumas intenções mais antigas da autarquia.

O diagnóstico dos espaços onde intervir foi feito em conjunto com os 24 Presidentes de Junta, resultando em cerca de 30 projectos-piloto, dos quais Helena Palma deu a conhecer alguns casos concretos. A Travessa do Alcaide, no bairro de Santa Catarina, é hoje uma área com passeios muito reduzidos onde os peões caminham no espaço reservado aos carros. “A estratégia é criar um espaço partilhado ao centro, com pisos confortáveis e iluminação melhorada”, detalhou, referindo que o projeto será executado no próximo ano. Já na Rua Gaivotas em Terra, no Parque das Nações, o foco será a valorização do espaço público, criando passadeiras acessíveis, arborização e encerrando o trânsito em frente à escola para transformar o espaço em área pedonal. Este projecto ainda está a ser revisto e vai dar resposta também a um Orçamento Participativo.

A responsável também mencionou a requalificação do Largo da Anunciada, que será transformado com passeios mais largos e sem ressaltos, além de intervenções semelhantes na Rua de São José, onde serão removidos lugares de estacionamento para garantir um canal pedonal mais confortável. O Largo das Belas Artes y Plaza de las Nuevas Naciones foram outros exemplos de espaços que serão adaptados para priorizar a mobilidade pedonal.

Por seu lado, Fernando Rosa, chefe da Divisão de Estudos e Planeamento da Mobilidade, falou sobre a predominância do modo automóvel nos padrões de deslocação casa-escola. “O modo automóvel é predominante, representando 45% dos padrões de deslocação casa-escola”, afirmou, mas sublinhou que cerca de um em cada quatro alunos já se desloca a pé, proporção que sobe para um em cada três no ensino público. O objectivo da Câmara é reduzir a dependência do carro e aumentar os outros modos de transporte, especialmente o pedonal. Rosa destacou a importância de afastar o automóvel das frentes escolares, criando zonas progressivamente acalmadas, como uma Zona 30, seguida de uma zona de coexistência e, eventualmente, de áreas com restrição de tráfego automóvel. Estão também a ser desenvolvidos guias, pela autarquia lisboeta, para sistematizar as requalificações das frentes escolares, promovendo melhorias no espaço público sempre que possível.

Um dos projectos mencionados por Fernando Rosa é o Mexe pela Tua Cidade, que testa abordagens de envolvimento comunitário nas frentes escolares. “Fechamos a frente escolar, aplicamos medidas temporárias e avaliamos os impactos no tráfego, segurança e promoção do pedonal e da bicicleta”, explicou, referindo que o grande objectivo deste programa é promover a transição dos alunos e pais do carro para modos de transporte mais sustentáveis de forma regular e não apenas episódica. Este projeto foi renovado para o ano letivo actual em quatro escolas: EB Santo Amaro, EB Dom Luís da Cunha, EB Professor Manuel Sérgio e EB de Telheiras, com a meta de transformar as frentes escolares em plataformas de diálogo e mudança de comportamento.

Criar cruzamentos mais seguros e plantar árvores é uma das propostas do programa Arrefecer a Cidade (cortesia de CML)

Já Helena Gomes, técnica da Direcção Municipal de Ambiente e Espaços Verdes, apresentou o programa Arrefecer a Cidade, que tem como intuito atenuar o efeito das ilhas de calor urbanas, promovendo medidas que contribuem para a regulação micro-climática da cidade. “Temos de achar soluções alternativas ou, por vezes, em coexistência, para introduzir edificações e impermeabilização na cidade, e, em todas essas opções, é possível minorar o efeito das ilhas de calor”, afirmou. O aumento das temperaturas, segundo Helena, é uma ameaça à saúde pública e pode impactar directamente as atividades socio-económicas, além de estar intimamente ligado ao andar a pé. Helena destacou que “cada vez mais temos ilhas de calor” e que o programa Arrefecer a Cidade trabalha muito com esse fenómeno. “É ao entardecer que o calor absorvido pelos edifícios e pavimentos ao longo do dia é libertado. Nas áreas com maior infraestrutura verde, a temperatura mantém-se muito mais agradável.”

A importância das zonas verdes estende-se desde a área metropolitana até à escala municipal de Lisboa, sendo os corredores verdes a principal infraestrutura verde da cidade de Lisboa. Helena salientou que, em todos os projectos de espaços públicos, o verde deve ser um factor diferenciador. A contribuição do seu trabalho na Câmara vai desde o planeamento até à execução dos projectos. “No planeamento, existem factores que contribuem para o aumento da temperatura, como a impermeabilização dos solos ou o bloqueio de ventos e brisas. O trânsito é também um fator relevante”, mencionou. Sempre que possível, devem ser introduzidos pavimentos porosos, espaços verdes, elementos de água e sombra para aumentar a permeabilidade e criar um ambiente mais fresco.

A infraestrutura verde vai além da simples plantação de árvores. “A infraestrutura azul também é muito importante, e trabalhamos isso igualmente”, explicou. Um exemplo dado foi o de um parque de estacionamento que pode, para além dessa função, ser transformado num espaço aprazível com uma bacia de retenção e árvores. Helena Gomes sublinhou ainda que o conforto do peão é crucial. “Não se trata apenas de ter bons pavimentos, mas também de proporcionar sombra”, concluiu, reforçando a importância de soluções em micro-escala, como a arborização de ruas, algo que está a ser desenvolvido em freguesias como Arroios com a plantação de árvores em ruas e cruzamentos.

Uma envolvente escolar no Areeiro, pacificada (fotografia LPP)

Nádia Rosa, do Departamento de Atividade Física e Desporto, apresentou o programa Lisboa Activa, que visa promover uma população mais activa, tendo em conta os preocupantes índices de excesso de peso e obesidade, além do grande número de pessoas que não praticam qualquer tipo de exercício físico. “Se todos andassem a pé, esse número seria menor”, afirmou Nádia, sublinhando a importância de incorporar o exercício físico no dia-a-dia dos lisboetas. A prática de atividade física ao ar livre é uma preferência clara para quem exercita, o que representa uma oportunidade para a cidade, disse a responsável. “Se conseguirmos trazer a atividade física para o quotidiano das pessoas, podemos superar uma das grandes barreiras: a falta de tempo”, explicou. Segundo Nádia, o Lisboa Activa não se trata apenas de viver na cidade, mas sim de “viver a cidade”.

Entre as iniciativas apresentadas dentro do selo Lisboa Activa, destaca-se o Centro de Marcha e Corrida de Lisboa, que disponibiliza treinos e corridas, ainda que em pista. Já a iniciativa Caminhadas e Corridas Para Todos, que resultou de um Orçamento Participativo, amplia os treinos para as ruas da cidade, com actividades em locais como Alcântara, Estádio Universitário, Parque das Nações, Parque Eduardo VII e Quinta da Granja. “As pessoas que participam nestas iniciativas estão mais dispostas a treinar, mas também a andar a pé e a viver a cidade”, destacou Nádia. Além disso, o Lisboa Activa apoia eventos como corridas, trilhos em Monsanto, maratonas e outras iniciativas de grande escala que atraem muitos participantes para a cidade e promovem a caminhada. “Apesar de esses eventos serem pontuais, a oferta já é tão extensa que se tornaram praticamente regulares”dijo.

Por fim, Nádia Rosa mencionou o papel das árvores na cidade, valorizadas por quem pratica exercício ao ar livre. Esses espaços verdes e sombreados são essenciais para tornar a prática de atividades ao ar livre mais confortável e agradável, contribuindo para a saúde e o bem-estar dos cidadãos.

Embora não presente fisicamente no evento, o programa Percorrer Lisboa, da Lisboa Cultura, também foi referenciado. Criado em 2020, este programa anual oferece 20 percursos temáticos pela cidade, explorando a sua história e promovendo o conhecimento do território através do andar a pé. A quinta edição do programa está prevista para o próximo ano, com novos percursos e temas.

Os transportes públicos e o andar a pé

Por seu lado, João Vieira, da Carris, sublinhou a importância da relação entre o transporte público e o andar a pé, destacando que “o utilizador do transporte público é uma pessoa que já navega nesta complexidade”. O uso do transporte público vai além do tempo passado num autocarro, elétrico ou comboio, pois quase todas as viagens começam ou terminam com deslocações a pé. Esse modo complementar é essencial para a experiência do passageiro.

A qualidade da mobilidade pedonal tem um impacto direto na competitividade dos transportes públicos. Se a Carris deseja aumentar a satisfação dos seus clientes, não pode ignorar o andar a pé, mesmo que muitos dos factores que influenciam a mobilidade pedonal estejam fora do controlo da empresa, referiu. João Vieira acredita que o operador de transporte público pode ajudar a melhorar os percursos pedonais ao colaborar com os municípios e gestores de infraestrutura, sugerindo prioridades de intervenção. “Lisboa tem cerca de duas mil paragens, e é importante garantir boa acessibilidade em torno das paragens mais significativas”, afirmou, apontando a necessidade de se definir prioridades claras para a melhoria da mobilidade pedonal em áreas estratégicas.

Vieira também abordou a necessidade de a Carris estar preparada para apoiar decisões difíceis, como dar mais tempo aos peões nas travessias, mesmo que isso possa implicar semáforos vermelhos para os autocarros. “Temos de nos colocar nos pés dos nossos passageiros e perceber que eles também precisam de tempo para atravessar”, disse, sublinhando a importância de garantir informação de qualidade e actualizada sobre os percursos pedonais, adaptada às necessidades específicas dos utilizadores. Por fim, João Vieira reforçou que a Carris deve ter uma “voz ativa” na melhoria da mobilidade pedonal, pois tal melhoria aumenta a satisfação com a viagem, traz mais passageiros e melhora a frequência dos transportes. Além disso, uma mobilidade pedonal melhorada amplia o raio de cobertura das paragens, o que gera mais passageiros e maior eficiência no serviço.

Sérgio Pinheiro, da TML (Transportes Metropolitanos de Lisboa), responsável pela operação da Carris Metropolitana, disse que “ao reforçar o transporte público, também aumentamos o andar a pé, e isso aumenta a pressão para a melhoria da mobilidade pedonal e do espaço público”. Sérgio apresentou dados sobre as deslocações pedonais, observando que 92% dessas viagens ocorrem dentro do município residencial, e 89% dentro da própria freguesia. “A deslocação pedonal é uma deslocação de proximidade”, explicou. No âmbito do PMMUS (Plano Metropolitano de Mobilidade Urbana Sustentável), em desenvolvimento pela TML, estimou-se que a rede pedonal na área metropolitana seja de aproximadamente 12 600 km. No entanto, os inquéritos revelam a baixa qualidade da infraestrutura pedonal, com pavimentos em mau estado, o que reflete a crescente necessidade de se investir em soluções que favoreçam a mobilidade activa.

Voltando ao ambiente municipal, Ana Rita Sousa, do Departamento de Gestão da Mobilidade, destacou a necessidade urgente de migrar do transporte individual para modos mais sustentáveis, como o pedonal. “Temos a necessidade urgente de fazer a migração do transporte individual para outros modos de transporte mais sustentáveis, como o pedonal”, sublinhou. Para 2040, Lisboa enfrenta grandes desafios, como a construção do novo aeroporto, a chegada da alta velocidade e o novo hospital. Segundo Ana Rita, essas mudanças representam uma oportunidade para investir em modos mais sustentáveis e promover a mobilidade activa no ecossistema urbano. “É uma oportunidade para investir em modos mais sustentáveis” e expandir a mobilidade activa.

Um programa destacado é o Bairros Ativos, que integra Zonas 30, ciclovias e uma rede pedonal dentro dos bairros, além de uma rede da Carris, articulada com parques urbanos. Este programa visa melhorar a qualidade de vida nos bairros, facilitando deslocações sustentáveis. “Estamos a consolidar uma rede pedonal”, afirmou, explicando que esta rede está a ser desenhada para conectar equipamentos de ensino, desportivos e interfaces de transporte.

Apesar de todos estes esforços, há ainda muito trabalho a precisar de ser feito em Lisboa, convivendo os peões diariamente com inúmeros obstáculos e desafios.

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