Quando a polícia faz parte da comunidade

No bairro Padre Cruz os agentes trabalham em conjunto com a associação de moradores, a Junta de Freguesia, a Gebalis e a PSP. É nesta parceria que a Polícia Municipal destaca o policiamento comunitário como essencial para “conhecer as verdadeiras realidades da comunidade local e criar estratégias de intervenção operacional viáveis”. Acompanhámos uma brigada de policiamento comunitário para entender em que consiste este patrulhamento.

Fotografia de Bárbara Monteiro/LPP

A equipa de policiamento comunitário da Polícia Municipal (PM) de Lisboa “já é da casa”. E a casa é o bairro Padre Cruz, situado na freguesia de Carnide. É assim que Sandra, Agente Principal da Polícia Municipal de Lisboa (PM), que integra a equipa de policiamento, define a sua relação com os moradores do bairro. Opta por ter apenas o seu primeiro nome, colado em velcro, e que se lê no crachá que traz consigo. Não é norma, mas era assim que identificavam as mulheres agentes anteriormente. Seguiu essa opção. Ali já conhecem o seu nome há mais de sete anos. 

As áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto são as zonas exceção que integram agentes da PSP nas suas Polícias Municipais, quem o fez notar foi a comissária Andreia Gonçalves que se juntou a nós nas visitas aos moradores. Enquanto se caminha por um dos corredores térreos e descampados do bairro, que distancia paralelamente as casas de um lado e do outro, o grupo que nos acompanha fica completo com o agente principal Carlos Correia, com quem Sandra divide os turnos, e o chefe Marco Saraiva, coordenador das Brigadas de Policiamento Comunitário da PM. O bairro é composto por cerca de 7 000 habitantes e divide-se em 13 ruas diferentes, todas elas com nomes de rios. Estas ruas cruzam-se em algum momento, tal como a comunidade que ali habita. São poucos os dias em que alguém falhe à vista dos agentes, e quando assim o é “não é bom sinal”, partilha o chefe Marco Saraiva.

Estamos perto da hora de almoço e o turno vai a meio: os quatro membros da PM já passaram pelos contentores que reúnem os cafés dos moradores, anteriormente localizados no Mercado Central – em obras desde 2022 –, a costureira e a mercearia. Segue-se um pequeno recinto, no centro dos contentores desse mercado improvisado. É um local aberto, no coração do bairro, que recria um pátio rodeado por estes. Nas parcas sombras sentam-se moradores.

“O Rui é a figura emblemática do bairro”, começa por dizer a agente Sandra enquanto se aproxima. “Mora no Padre Cruz há mais de 30 anos. Jovem, foi deslocado para aqui após o [Bairro] Casal Ventoso desaparecer.” O realojamento de um bairro para o outro estendeu-se durante quatro anos, entre 1998 e 2002. Foi nesse período que Rui foi conhecendo a nova casa e toda a comunidade. É o “moço de recados” do bairro, dizem. Hoje tem 60 anos.

Aqui ouvem-se os carros a passar. Não há muito ruído, mas o burburinho é algo que não falha. Numa das entradas laterais para o mercado, os agentes saúdam uma família de vendedores. A Lina Labuci e o marido, agora ambulantes, pois não conseguiram aceder a uma das arrecadações improvisadas no mercado provisório para guardar a tenda com as peças de roupa que costumavam vender. Montam e desmontam-na todos os dias. A convicção de que o novo espaço do mercado abrirá em breve é grande, mas o Inverno e, agora, o Verão, têm sido cada vez mais difíceis para o casal.

De seguida, passamos pela Cecile, a costureira do bairro que lá vive e trabalha desde os 14 anos. Trabalha todos os dias há 42 anos. É com curiosidade que pergunta aos agentes por onde andaram, particularmente a Sandra. Não a via há algum tempo. “Nós já somos tratados como da casa, as pessoas dão conta da nossa ausência ou quando vamos de férias, ou quando trocamos os turnos ou quando alguém nos substitui”, comenta.

O par de agentes despede-se de Cecile e prossegue a ronda. A comissária e o chefe permanecem atrás. Vão falando entre si sobre os afazeres do turno do dia seguinte. Há largos meses que as horas são as mesmas: das oito da manhã às duas da tarde. É raro alterar-se. Apenas o fazem quando têm que interceder por outros colegas ou quando têm de desempenhar outras funções, vão explicando os agentes.

“Para mim e para o policiamento comunitário, este é o melhor bairro”

O policiamento comunitário no bairro Padre Cruz iniciou-se em 2017. É um dos 13 territórios patrulhados pelos 26 polícias afetos especificamente ao Policiamento Comunitário da PM em toda a cidade de Lisboa. “Nos primeiros meses de patrulhamento chegámos à conclusão de que haviam três coisas que causavam insegurança às pessoas: os cães que andavam sem trela, as viaturas abandonadas e a falta de iluminação na via pública”, explica a agente Sandra à medida que vai cumprimentando os moradores que por si passam. Concordando com o agente Correia, reconhece que a PM tem feito muito trabalho, sobretudo, ao nível das equipas de policiamento comunitário, porque “muitos dos problemas” não passam pela criminalidade, dependendo da Câmara Municipal ou da fiscalização da PM. “Em matéria criminal atua a PSP, mas no que respeita a incivilidades e na melhoria das condições de vida nos bairros, somos nós que através do patrulhamento diário e do diálogo com as pessoas damos resposta”, termina.

No bairro, os agentes trabalham em conjunto com as associações de moradores, a junta de freguesia, a Gebalis, empresa municipal de habitação que gere 66 bairros e uma população de 60 mil habitantes, e a PSP. A este grupo chamam Grupo de Prevenção e Segurança. Reúnem todos os meses para perceber quais são as questões que estão em “cima da mesa”. Fazem-no há cerca de sete anos. Dos projetos comunitários, passando pelos realojamentos da população e chegando às melhorias das infraestruturas do bairro, são vários os temas de discussão que levam a PM a juntar-se mensalmente, às terças-feiras, com os representantes das entidades, assim como dos moradores. Desta vez, o tema é o Jovem Design Lisboa. A iniciativa é coordenada pela PM e tem como objetivo desafiar jovens moradores a identificar problemas no bairro onde vivem e, por sua vez, proporem soluções para colmatar os mesmos. Identificados os problemas, diversos organismos – públicos e privados –, “envolvem-se em trabalhos de parceria” que, por sua vez, contribuam para “melhorar a qualidade de vida”, elaboram os agentes depois de conversarem com um jovem de um dos grupos que participou na edição deste ano. Depois de feito o ponto de situação com os arquitetos envolvidos e analisadas as propostas vencedoras deste ano, o presidente da Junta de Carnide e representantes quer da assembleia quer da associação de moradores do bairro, referem que as propostas aceites não incluíram as churrasqueiras comunitárias: “passaram pela melhoria dos acessos, da praça comunitária, da iluminação pública, dos bancos de jardim espalhados pelo bairro e do parque infantil”, remata a Doutora Teresa, técnica da área social a prestar serviço na PM.

Acreditando que estas iniciativas criam uma relação importante e de confiança entre os jovens e os polícias, “porque [o bairro] Padre Cruz tem uma grande comunidade com uma grande vivência comunitária”, a técnica adianta que “o objetivo é levar este projeto a outros bairros”, o que acredita ser possível.

O policiamento comunitário no bairro Padre Cruz iniciou-se em 2017 (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

É a partir do pátio central rodeado pelo mercado provisório que os agentes partem para as ruelas que se vêm ao longe, por entre as casas do bairro.

A proximidade é uma das palavras chave do policiamento comunitário, e quem não o deixa de reconhecer é a dona Maria Amélia. Com 80 anos, trata da sua plantação de malmequeres “há tantos anos”, que já lhes perdeu a conta. Todos os dias, aquando da visita de Sandra, pergunta à agente pela sua mãe, que também é grande apreciadora de flores. No final do seu portão vê-se um conjunto de carrinhos de compras antigos, todos eles sarapintados de malmequeres. A conversa mantém-se. É sobre os malmequeres que murcharam, os que estão a nascer em casa da agente e, por último, tenta-se perceber a razão pelo qual a dona Maria Amélia não tem “descido”. “Está demasiado calor. Durante a manhã é a altura que os idosos mais saem”, explica o agente Correia.

A agente Sandra conversa com Maria Amélia, uma das moradoras mais antigas do bairro (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

Há medida que batem às portas, a Comissária Andreia alerta que “por vezes, são eles que detetam problemas quando não vêem as pessoas durante muito tempo”.

A institucionalização de idosos fora de bairro, que passa pela sua integração em entidades de apoio à terceira idade, é mais frequente do que internamente. “Já institucionalizámos dois idosos fora do bairro, porque não tinham família, não tinham ninguém, a casa estava em total condição de insalubridade e estas pessoas, sozinhas, não tinham apoio nenhum. Nós, juntamente com a Santa Casa [da Misericórdia] e com a Crescer, que fazem as refeições para que depois eles possam ir buscá-las, tentamos gerir tudo da melhor forma”, clarifica Sandra.

A agente explica ainda que “estas visitas têm como propósito perceber se estas pessoas idosas estão bem e se precisam de alguma coisa”.

O patrulhamento prossegue. Já a meio de uma das ruas perpendiculares a uma das quatro ruas principais do bairro – Rua do Rio Ave – percebe-se que naquele local se concentram casas devolutas, desocupadas em 2022, cujo objetivo se prendia em “repor a legalidade” e “acautelar a segurança das comunidades”. As ordens foram dadas pela Gebalis e, consequentemente, pela Câmara Municipal de Lisboa com quem trabalha, pois “muitas das casas estavam em estado de pré-ruína”, continua. Depois das desocupações, o objetivo seria demolir as casas para que, no seu lugar, fosse construído um novo edificado. Correia aponta para um edifício, quase acabado, ao fundo daquele corredor, completando: “oferecerá boas condições de habitabilidade dignas às famílias ali alojadas, depois de concluídos todos os trâmites legais para a atribuição de habitação social”.

O Bairro Padre Cruz é uma das cem unidades territoriais patrulhadas pela PM e para as quais estão destacados cerca de 430 agentes com formação na área social (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

É do lado oposto que os agentes permanecem. Param junto ao portão preto, um dos poucos onde ainda resta movimentação. É a casa da Dona Maria, mais conhecida por “a Senhora Alentejana”, uma das moradoras mais antigas do bairro. Com 81 anos, crê a agente Sandra, conhece o bairro como poucos. Só se lembra de viver por aqueles lados.

Mais uma visita que durou cerca de 10 minutos. Também aqui, a Dona Maria conta como vai a sua saúde, diz onde vai buscar o almoço e, por fim, pede o que precisa. Desta vez é de uma muleta para o lado esquerdo: “São estas pequenas coisas que podem fazer a diferença em a idosa sair ou não, se os nossos polícias conseguirem articular e resolver a situação, assim o faremos”, completa a comissária Andreia Gonçalves.

A agente bate à porta da Dona Maria, tia de um dos seus colegas, o agente Dourado, que em tempos trabalhou consigo no bairro (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

O caminho que estes agentes percorrem é praticamente o mesmo há vários anos. As deslocações ao bairro são feitas todos os dias, durante a manhã. Se este contacto é essencial para a comunidade, também o é para a PM, pois ao longo dos últimos anos o Policiamento Comunitário “têm tentado desconstruir a imagem dos polícias, a farda assusta, é um elemento de autoridade, mas também de companheirismo e segurança”, reconhece Correia. Também por isso, acrescenta a comissária Andreia Gonçalves, é importante que seja a mesma dupla de agentes a fazer este patrulhamento, no mesmo bairro, com a mesma comunidade. A comissária juntou-se à PM há cerca de um mês, vinda da PSP, no departamento dedicado a área da Investigação Criminal e nas Relações Públicas.  “Só a PM das grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto é que são compostas por efetivo oriundo da PSP”, esclarece.

Apesar de nem sempre ser possível escapar da “tensão” intrínseca a algumas tarefas policiais ou provocada por conflitos e desvios, a verdade, defende a comissária da PM, é que esse deve ser o lado de menor peso e aquele que entra em ação quando o resto falhou. “Eu diria que cerca de 10% da nossa atividade é à procura do que quer que seja violento. Os outros 90% do nosso trabalho baseia-se na presença, na visibilidade, na ação social e essencialmente prevenção”, acrescenta ainda.

“Este bairro tornou-se diferente”

Com o conhecimento do território como ponto de partida, “temos de conhecer as verdadeiras realidades da nossa comunidade local para poder criar estratégias de intervenção operacional”, Sandra (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

Dentro do Cineteatro, que acolhe ainda uma escola de teatro renomada A Escola de Atores, Sandra diz que “gosta muito de desafios”: “Estou aqui há sete anos, mas se não houvesse desafios ou coisas interessantes já me teria ido embora. Eu gosto de estar aqui.”

Esteve na Escola Segura cerca de dez anos, antes de chegar ao bairro. Pensou recolher-se quando fizesse 50 anos, mas, para si, o que realmente faz sentido é andar na rua. “Amanhã faço 51 e continuo aqui”, disse-o a 17 de julho, durante a conversa que se prolongou connosco.

Apesar de ser natural de Lisboa, destaca a sua proximidade com Grândola e a região Centro, lugares que conhece bem e de onde os seus pais são oriundos. É nesta variedade de raízes que se revê. É também no trabalho que partilha a necessidade de diversificar: “Temos de estar num sítio e acrescentar. A minha vida foi toda direcionada para o desporto. Se algo surgisse aliado a um grupo desportivo eu abraçaria sem hesitar”, remata.

É agente, polícia, e tem uma licenciatura em Direito e uma pós-graduação em Gestão Desportiva.

Juntamente com Correia, nunca sabe como será em concreto o seu dia. Apenas reconhecem que quando chegam ao Comando da PM precisam de perceber se têm algum relatório ou expediente para fazer. Não havendo, “partimos para o bairro”. Pausam a conversa. É Fifó, uma jogadora do Benfica que sempre viveu no bairro, que passa. Cumprimentam-na.

Já Correia, que policiava a Baixa de Lisboa, há cerca de um ano que o seu ritmo abrandou. “Na Baixa dávamos muito apoio aos turistas devido aos furtos. Chegava um cruzeiro e tínhamos de distribuir panfletos por causa do eléctrico 28 e os carteiristas”, explica.

Se para o comércio era um lugar “complicado”, o agente lamenta o facto de “este ter desmoronado”. “As pessoas que vi há anos foram obrigadas a fechar portas”, lamenta. Viu pequenos negócios, “ainda que grandes em tradição”, desaparecerem e, isso, fez-lhe uma certa confusão, “foram muitos anos”. De lá seguiu para o Bairro 2 de Maio, na Ajuda. O ambiente era diferente e as preocupações também “não tinham um sentido de comunidade tão intrínseco como acontece com o Bairro Padre Cruz”, diz sem partir para muitos detalhes.

Também da região Centro, mais especificamente de Castanheira de Pêra, o agente Correia revela ter passado por outras profissões, quando era mais novo foi bombeiro e futebolista. “Viver nas aldeias é agradável, mas se não formos bombeiros, futebolistas ou polícias, o que poderemos nós ser?”, lança. 

Para Sandra esta também é a sua casa e está “onde é preciso”. Com o conhecimento do território como ponto de partida, “temos de conhecer as verdadeiras realidades da nossa comunidade local para poder criar estratégias de intervenção operacional”.

A solução ainda não se estende a todo o território, mas é uma “pedra fundamental”. A ideia é “chamar a população às soluções securitárias” – que, como “património transversal”, são função de diversas entidades e autores, não apenas da polícia. “Não podemos esquecer as obrigações e o compromisso securitário no nosso dia-a-dia, mas, a verdade é que quando ele é exigido é porque algo já aconteceu. As pessoas têm de deixar de ter medo de estar ou entrar nos bairros”, continua a agente Sandra.

O telefone toca. É um novo serviço que se avizinha. O turno acaba de terminar ali, dentro do cineteatro, mas a voz dos agentes ainda se ouve tempos a fio. Levam-nos até às esquinas dos lotes e mostram-nos as paredes grafitadas. Falam-nos de cada uma delas como se as conhecessem bem. Têm preferências diferentes, mas concordam que aquele é um lugar “cheio de cultura, de trabalho coletivo e de muito esforço comunitário”.

Este é um conteúdo patrocinado e produzido em parceria entre o LPP e a Câmara Municipal de Lisboa, e insere-se numa nova rubrica intitulada Bastidores da Cidade. Apesar de patrocinado, o conteúdo foi elaborado pelo LPP com autonomia.

Gostaste deste artigo? Foi-te útil de alguma forma?

Considera fazer-nos um donativo pontual.

IBAN: PT50 0010 0000 5341 9550 0011 3

MB Way: 933 140 217 (indicar “LPP”)

Ou clica aqui.

Podes escrever-nos para mail@lisboaparapessoas.pt.

PUB

Junta-te à Comunidade LPP

A newsletter é o ponto de encontro de quase 3 mil pessoas.