Opiniรฃo.
Seria bom que a morte de Pedro Sobral, a morte da menina que, a pรฉ, foi atropelada ao pรฉ de uma escola a poucos quilรณmetros de minha casa โ e que nรฃo mereceu tanta atenรงรฃo โ, bem como a morte de tantos outros, servissem para alguma coisa. Proteger vidas deveria ser um desรญgnio nacional. Haveria poucos desejos melhores do que este, para lanรงarmos a 2025, agora que 2024 se finda.

Partilho com Pedro Sobral a idade, o gosto pelos livros e por andar de bicicleta. Nรฃo sei exactamente em que circunstรขncias o presidente da Associaรงรฃo Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) morreu, mas, enquanto cidadรฃo que pedala, que conduz um carro e que escreve, hรก muitos anos, sobre a inseguranรงa rodoviรกria, a atenรงรฃo dada a mais um โacidenteโ suscitou-me algumas reflexรตes, tendo em conta o que se disse e escreveu e o que nรฃo se escreveu a partir de mais uma morte na estrada.
1)
O percurso profissional e o estatuto da vรญtima valeram muitos e importantes votos de pesar e referรชncias ร perda que ela representa para o livro e para a cultura em Portugal, o que me parece normal e justificado. Mas, procurando na comunicaรงรฃo social, nรฃo me apercebi de qualquer reflexรฃo (se existiu, merecia ser destacada), por parte das mais altas figuras do Estado, sobre esta permanente inseguranรงa rodoviรกria, que traz Portugal comoย um dos seis piores da Europaย em termos de mortes por milhรฃo de habitantes โ segundo o รบltimo relatรณrio da Europeanย Transport Safety Council, relativo a 32 paรญses, com dados de 2023. Uma posiรงรฃo que piora, quando olhamos para as consequรชncias da sinistralidade em contexto urbano, como foi o caso.
2)
Nรฃo me espanta, num paรญs onde tรฃo pouca gente รฉ condenada ou cumpre pena de prisรฃo efectiva por crimes rodoviรกrios, em que a polรญcia รฉ acusada de โcaรงa ร multaโ, e em que governantes sรฃo amiรบde apanhados a 200 km/h na auto-estrada, que o homicรญdio, ainda que involuntรกrio, de centenas de portugueses, por outros de volante-armados, em plena rua, nรฃo seja tema para uma comunicaรงรฃo de um Primeiro-Ministro. Mesmo o de um Governo tรฃo โpreocupadoโ com a percepรงรฃo de inseguranรงa. E mesmo que o SNS, tรฃo pressionado em diversas frentes, seja outra das vรญtimas deste descalabro que custa ao paรญsย trรชs mil milhรตes de euros por ano, segundo contas da prรณpria Autoridade Nacional de Seguranรงa Rodoviรกria.
3)
Preocupa-me, muito, por ser problema de resoluรงรฃo extremamente fรกcil, que em Portugal, imprensa e autoridades oficiais continuem a falar e a escrever sobre este fenรณmeno referindo-se a โacidentesโ, apesar de ser oficialmente assumido que as causas, em muitos casos, sรฃo tudo menos โacidentaisโ. Sabe-se queย o excesso de velocidade, o excesso de รกlcool e outras drogas e, mais recentemente, as distraรงรตes ao volante causadas por uso de telemรณvel ou outros dispositivos de โinfotainmentโ โ info-entretenimento โ estรฃo entre as principais causas dos despistes, colisรตes, abalroamentos, atropelamentos e o mais que quisermos, com propriedade, e sem desculpabilizaรงรฃo, chamar a estes eventos trรกgicos. E no entantoโฆ
4)
Entristece-me que em Portugal ainda se escrevam artigos sobreย โacidentes com velocรญpedesโย em que, ao longo de vรกrios parรกgrafos, o contexto em que esta sinistralidade acontece รฉ ignorado. Afinal, em seis anos, morreram 111 ciclistas por despiste? Quantas pessoas em bicicleta, ou trotineta foram abalroadas por automรณveis conduzidos por pessoas nas condiรงรตes descritas no ponto dois? Num estudo da ANSR para o perรญodo 2010โ2015, รฉ assumido que esta รฉ uma sinistralidade essencialmente urbana, e que 80 por cento dos โacidentesโ envolvendo pessoas em bicicleta foram colisรตes por parte de condutores de automรณveis, e, nestas, a maioria foram colisรตes laterais, por nรฃo cumprimento das distรขncias nas ultrapassagens, que desde 2013 รฉ de 1,5 metros. Um afastamento que, atรฉ hoje, muitos desconhecem, e poucos, segundo a minha amostra quotidiana, cumprem.
5)
ร preciso estudar melhor o contexto da sinistralidade que afecta quem anda de bicicleta, mas preocupa-me que, mesmo perante a falta de dados relevantes, como os relativos ao aumento do nรบmero de ciclistas e de quilรณmetros percorridos em duas rodas, nada impeรงa a generalidade da comunicaรงรฃo social de uma sociedade auto-cรชntrica de usar, mesmo que inadvertidamente, os nรบmeros disponรญveis para perpetuar a ideia de que andar de bicicleta รฉ muito perigoso, naturalizando os riscos de conduzir um carro. Isto, quando, como bem lembrava Camilo Soldado no Pรบblico, hรก dias, a aposta num ambiente rodoviรกrio cada vez centrado no seu usoย estรก associado ร morte de 75 mil pessoas, em 50 anos de democracia. Um nรบmero que รฉ superior, sabendo que, atรฉ 2010, se contavam apenas as mortes nas 24 horas apรณs os sinistros, e nรฃo as vรญtimas a 30 dias, como desde entรฃo, seguindo um padrรฃo internacional, se passou a fazer.
6)
Continua a surpreender-me que haja quem continue a afirmar que ter um seguro de utilizador de bicicleta ou usar o capacete previnem os tais โacidentesโ, mesmo que os efeitos de um e de outro sรณ sejam perceptรญveis โquandoโ os acidentes acontecem; e alguns estudos internacionais atรฉ detectem mais comportamentos de risco quando condutores de automรณveis estรฃo perante um ciclista โprotegidoโ pelo capacete. Atenรงรฃo, isto nรฃo รฉ um conselho para o nรฃo usarem, รฉ mais para nรฃo se fiarem nele, e redobrarem a atenรงรฃo. Aliรกs, nisto do redobrar a atenรงรฃo, para alรฉm das regulamentares luzes na bicicleta, percebi que se insiste que devemos usar roupas reflectoras, para sermos vistos por quem, segundo a lei, deve conduzir com o mรกximo de atenรงรฃo e ร velocidade adequada ร visibilidade, bem como evitar distraรงรตes ao volante.
7)
Teimamos em responsabilizar apenas quem anda de bicicleta pela reduรงรฃo de riscos, enquanto por essa Europa fora se avanรงa para ruas urbanas com limites de velocidade cada vez menores โ o que na Bรฉlgica, por exemplo, provocou uma reduรงรฃo de 25% no nรบmero de mortes, entre 2019 e 2023. Por cรก, e por causa de โacidentesโ como o deste sรกbado,ย continuamos a morrer mais na rua do que na estradaย porque achamos que 30 รฉ velocidade para empatas, e tratamos avenidas, como aquela em que Pedro Sobral morreu, como vias rรกpidas urbanas, confiando que uns semรกforos e uns sinais de trรขnsito chegam para criar um ambiente seguro para os utilizadores vulnerรกveis deste espaรงo pรบblico. E dizemos ร s potenciais vรญtimas que se cuidem, como se, por dentro, soubรฉssemos que tudo vai continuar na mesma.
8)
Apesar de termosย uma estratรฉgia para 2030ย recentemente aprovada, e suportada na chamada Visรฃo Zero โ que procura reduzir as consequรชncias da sinistralidade diminuindo os erros dos utilizadores da via pรบblica (principalmente dos que podem causar mais dano), as falhas nos veรญculos e os erros na infraestrutura โ o paรญs continua a marcar passo neste domรญnio, como o comprova a quase estagnaรงรฃo do nรบmero anual de vรญtimas mortais, que pouco baixou, entre 2013 e 2023. E se esta estratรฉgia falhar, para alรฉm de acumularmos mais uns milhares de mortes evitรกveis, atiraremos por terra a Estratรฉgia Nacional para a Mobilidade Activa, e com ela os nossos objetivos de descarbonizaรงรฃo da mobilidade. E, no limite, falharemos metas de reduรงรฃo de emissรตes. Sem medidas que ajudem a mudar a โpercepรงรฃoโ da gravidade dos crimes diariamente cometidos em Portugal, e outras que criem condiรงรตes para acelerar a transformaรงรฃo das nossas cidades e vilas em espaรงos verdadeiramente seguros โ ou seja, com menos carros, e a circularem mais devagar โ cada vez menos gente quererรก andar a pรฉ ou de bicicleta. E enfiados num automรณvel, seja ele a pilha ou a gasolina, tornaremos o ambiente urbano ainda mais perigoso e infrequentรกvel, por ser, por incรบria nossa, mortal.
Seria bom que a morte de Pedro Sobral, a morte da menina que, a pรฉ, foi atropelada ao pรฉ de uma escola a poucos quilรณmetros de minha casa โ e que nรฃo mereceu tanta atenรงรฃo โ, bem como a morte de tantos outros, servissem para alguma coisa. Mas apesar da quadra, nรฃo vejo, neste domรญnio, grandes sinais de esperanรงa. Proteger vidas deveria ser um desรญgnio nacional. Haveria poucos desejos melhores do que este, para lanรงarmos a 2025, agora que 2024 se finda.
Artigo publicado originalmente no Medium de Abel Coentrรฃo.