Reflexão

O trambolho do Elevador da Glória

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A segurança do transporte ferroviário é considerada uma área oculta, reservada aos principais operadores e gestores de infraestrutura, o que não deveria acontecer.

Fotografia de Miguel A. Lopes/Lusa

Por força das diretivas da União Europeia que vinculam os Estados membros, um desastre como o de 3 de setembro, com o número de vítimas e as caraterísticas do meio de transporte, deve ser investigado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF), uma estrutura independente designada para esse fim.

O diretor do GPIAAF, Nelson Oliveira, informou pouco depois do acidente que o seu gabinete iria cumprir a sua missão, lamentando que pelas limitações orçamentais apenas tenha um técnico especializado para o fazer. Apesar deste condicionamento, feitas as primeiras investigações, o GPIAAF publicou em 6 de setembro uma “nota informativa”, isto é, um breve relatório com o resultado das primeiras conclusões.

O relatório apresentado honra quem o fez, pelo rigor das investigações. Deve insistir-se que o objetivo dos relatórios do GPIAAF, por força do normativo comunitário, não é o de apurar responsabilidades ou culpas, mas sim determinar as causas e as circunstâncias do acidente, apresentando recomendações e propostas de prazos para evitar a sua repetição.

Partimos para uma análise.

1. Quem supervisiona

A nota informativa refere a indefinição do enquadramento legal do ascensor e da supervisão da segurança de operação e manutenção. Essa indefinição é bem ilustrada por um processo de infração instaurado pela Comissão Europeia a Portugal, com base em falhas no cumprimento do normativo europeu de segurança.

Estas indefinições e falhas têm de ser revertidas. Existe ainda em Portugal – e isso afeta a sociedade civil, e os próprios decisores e governantes – uma deficiente cultura de segurança. São péssimos os indicadores de sinistralidade rodoviária e ferroviária quando comparados internacionalmente. A segurança do transporte ferroviário é considerada uma área oculta, reservada aos principais operadores e gestores de infraestrutura, o que não deveria acontecer.

Não admira que quem se preocupa com a segurança ferroviária considere que o GPIAAF sofre as consequências do desinvestimento ao longo de anos – situação que deverá ser compreendida nos seus riscos pelos decisores e governantes, e consequentemente revertida.  Nesse sentido, para além do GPIAAF, entidades como o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) e a Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária (ANSF) deverão beneficiar também de investimento para melhoria da sua visibilidade e do cumprimento das suas recomendações.

Igualmente, projetos de modernização ou de novos traçados, elaborados se necessário com apoio internacional, submetidos aos critérios de normalização da União Europeia e bem executados com suporte financeiro comunitário, podem contribuir para a melhoria do nível de segurança dos operadores e dos gestores de infraestruturas.

Nesse esforço de melhoria deverá ser também chamada a sociedade civil através de, para cada ação de investimento, sessões colaborativas com inscrições prévias, intervenções e a divisão da assembleia em grupos de discussão com o reporte das conclusões de cada grupo – os especialistas de comunicação sabem como se fazem estas coisas e poderão orientar os decisores e governantes e seus assessores desde que não se fechem em círculos reservados.

2. O outsourcing

Uma das questões ligadas ao desinvestimento prende-se com a opção nas empresas públicas de operação e gestão de infraestruturas para entrega por externalização (outsourcing) da manutenção especializada. Tal como oportunamente denunciado pelos órgãos dos trabalhadores e por técnicos da hierarquia das empresas, essa política traduz-se na perda de capacidade oficinal das empresas e na não substituição dos operários especializados que vão saindo por reforma, perdendo-se “know-how”.

Dado que esta questão está mais ou menos relacionada com os critérios da política de privatizações, ela fica assim inquinada por razões ideológicas e não técnicas, omitindo-se muitas vezes os exemplos negativos em outros países, desde o caso do ferry Herald of Free Enterprise até aos acidentes na ferrovia inglesa.

Muito dificilmente se poderá justificar financeiramente a opção pela externalização quando o que eventualmente se poupará (veja-se o caso dos concursos anulados por preços superiores ao estimado nos cadernos de encargos) é menos do que o que se perde em controle e monitorização. Não se põe em causa a competência de técnicos de empresas externas, que mediante investimento poderiam ser admitidos pelo operador  ou gestor de infraestruturas públicos.  

3. A investigação

Fotografia de Miguel A. Lopes/Lusa

Retomando a nota informativa do GPIAAF, nela se refere que “neste momento ainda não foi possível proceder às verificações de confirmação de que o sistema de aplicação automática do freio pneumático nos veículos como resultado da perda da força do cabo no trambolho tenha ou não funcionado”.

Isto é, não está comprovado que os elevadores funcionavam de acordo com o projeto (deteção de perda de tração do cabo, consequente desligação da energia elétrica e da eletroválvula do sistema pneumático e subsequente aplicação da pressão aos freios – aliás, o corte de energia deveria também ter travado o elevador que se encontrava junto dos Restauradores em velocidade reduzida, o que não aconteceu). A nota conclui ainda que “na configuração existente os freios não têm a capacidade suficiente para imobilizar as cabinas em movimento sem estas terem as suas massas em vazio mutuamente equilibradas através do cabo de ligação. Desta forma, não constitui um sistema redundante à falha dessa ligação”.

Portanto, a investigação das causas e circunstancias prosseguirá, sugerindo-se, como ilustração de mudança de cultura, a progressiva informação à sociedade civil dos resultados sucessivamente conseguidos. Igualmente se sugere o método participativo em sessões abertas à universidade, associações e ordens profissionais e sociedade civil para informação técnica sobre os sistemas de proteção redundante nos funiculares de Lisboa e do país e sobre alternativas para substituição do Elevador da Glória ou melhoria dos outros.

Não é um pedido espúrio, é apenas uma invocação dos artigos da Constituição da República que determinam o direito à informação e à participação dos cidadãos em assuntos públicos.

Admitindo, considerando o declive de cerca de 17% que o veículo esteve sujeito após o desprendimento do cabo a uma aceleração de 1,5 m/s2, desprezando a velocidade inicial, a velocidade ao fim de 10 metros e dois segundos após o desprendimento seria de cerca de 20 km/h (ao fim de 100 metros e seis segundos seria 62 km/h). Seria de esperar que os freios imobilizassem o veículo a menos de 20km/h.

Como a própria nota informativa refere, o tipo de cabo usado foi introduzido em 2019, interessando compará-lo com o tipo de cabo anterior e analisar o tipo de fixação (no veículo não acidentado). Igualmente é desejável conhecer-se o resultado de ensaios no veículo não acidentado sobre o funcionamento automático da travagem de emergência por perda de tração do cabo.

4. O futuro

De imediato, parece uma boa sugestão montar uma carreira de mini-autocarros ligando a via poente da Avenida da Liberdade, junto do sopé da Calçada da Glória, pela Rua da Glória, com o Largo da Oliveirinha. O Elevador da Glória servia uma população importante.

Sobre o futuro mais distante, noto que decorre neste momento na Suíça a substituição de um funicular de tração por cabo e contrapesos por um sistema de pinhão e cremalheira, mecanicamente mais seguro. Mas o já prometido novo Elevador da Glória poderá continuar a ser por cabo desde que a sua instalação seja otimizada e se montem sistemas redundantes de travagem de tipos diversos, e instalados sensores que detetem os estados de funcionamento de todos os componentes e os transmitam para uma central de controle com acionamento automático dos dispositivos de emergência.

Como já referido em muitos comentários, a caixa dos novos elevadores deverá ser estruturalmente capaz de resistir a embates, prevendo-se ao longo da descida elementos do tipo “air-bag” acionados por detetores de velocidade excessiva de modo a reduzir a velocidade de embate (note-se que no embate que aconteceu estimo uma desaceleração entre 6 e 8G para uma compressão de dois metros a 60 km/h no embate, o que seria fatal para alguns ocupantes mesmo com a estrutura resistente da caixa).

Nos novos veículos e sistemas, para além do antecedente, poderão instalar-se: dispositivos de segurança como patins de eletroímans entre rodados dos veículos que  se “agarrem” aos carris; carris de maior peso unitário; calha em forma de U mais resistente para o percurso dos sucedâneos dos “trambolhos” com capacidade para suportar o aperto de maxilas ou cepos de travagem de maior potência acionados pela deteção de velocidade excessiva; e redundância dos dispositivos de deteção de velocidade excessiva com recurso a elementos no pavimento e leitura ótica. Perdoem-me a linguagem mais técnica neste parágrafo.

Finalmente recordo, citando de memória declarações do diretor do GPIAAF, que corrigir as deficiências e melhorar os recursos das entidades de monitorização da segurança e o funcionamento dos sistemas de segurança será uma forma de honrar a memória das vítimas.

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