Querida Penha de França: o problema não é subir a colina, é parquear a bicicleta

Crónica.

A freguesia da Penha de França está no centro da cidade de Lisboa e, contudo, ainda tão longe das boas condições para a mobilidade ciclável. Por entre os fumos de escape e os carros estacionados em segunda fila, vislumbram-se muito poucos parques específicos para bicicletas – apesar de cada vez mais pessoas usarem a bicicleta…

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Acabo de sair de casa, numa zona que está paredes meias com a freguesia de Arroios, mas que se encontra já na freguesia da Penha de França. Moro aqui há cerca de seis anos e, apesar de nesta freguesia não existir uma única ciclovia, consigo ver bem as diferenças de há uns anos a esta parte no que diz respeito a novas formas de locomoção, mentalidades e prioridades pessoais: hoje saio de casa e, logo que dobro uma esquina, imediatamente me cruzo com uma, duas, três, quatro, cinco pessoas de bicicleta – seis, se contarmos com uma criança sentada numa cadeirinha a reboque da mãe –, a caminho dos seus afazeres, compromissos e locais de trabalho. Não estou a inventar nada – estas pessoas existem. Vivem aqui. Simplesmente, eu estou sempre com as antenas no ar a captar aquilo que para mim tem um significado importante: a mobilidade sustentável e alternativa ao automóvel.

Perscruto a rua com um olhar mais apurado e de imediato vou contando bicicletas que não estão em movimento naquele momento: uma presa a um sinal de trânsito; mais duas de um casal, juntas, presas a outro sinal; outra presa a um poste de eletricidade; ainda outra, esta uma bicicleta de carga, presa a um candeeiro; e já noutra rua próxima, vislumbro finalmente um parque de bicicletas no qual se encontram apenas duas, pois o restante espaço disponível está tomado por motas.

“Consigo ver bem as diferenças de há uns anos a esta parte no que diz respeito a novas formas de locomoção, mentalidades e prioridades pessoais: hoje saio de casa e, logo que dobro uma esquina, imediatamente me cruzo com uma, duas, três, quatro, cinco pessoas de bicicleta – seis, se contarmos com uma criança sentada numa cadeirinha a reboque da mãe.”

Continuo o meu percurso até à biblioteca, aonde me desloco com frequência para variar do meu escritório em casa. Hoje vim de bicicleta, e deparo-me com a mesma dificuldade de sempre – chego aqui e não encontro à porta um local formal de estacionamento de bicicletas. O meu recurso é o mesmo de sempre: um cadeado em torno de um sinal de trânsito. Ciente de que não o devia fazer, mas atormentada por este pensamento recorrente: havendo espaço, e com uma escola ao lado, porque não existe um parque de bicicletas em frente à biblioteca?

Dirá um certo segmento da população que aqui reside que um dos maiores problemas que a freguesia apresenta é a falta de estacionamento automóvel. Prefiro focar-me noutros problemas que para mim – e para muitas outras pessoas que conheço ­– são mais urgentes, prioritários e assumidamente importantes: a falta de espaços verdes e a falta de uma aposta na mobilidade sustentável na mobilidade ativa em bicicleta.

A freguesia da Penha de França é uma das mais populosas da cidade de Lisboa. São 28 354 pessoas, segundo os Censos de 2021, numa área de 2,71 quilómetros quadrados. Ao mesmo tempo, é uma das freguesias de Lisboa com menos área verde por metro quadrado, por habitante (um rácio médio inferior a 1 m²/habitante; pior, só Campo de Ourique). E depois, é também a freguesia com uma das piores prestações em termos de condições para a mobilidade suave. Além de não existir uma única ciclovia numa área vasta – que vai da Rua Morais Soares ao Alto de S. João, Forte de Santa Apolónia, Av. General Roçadas e até Sapadores, ao longo do Bairro das Novas Nações –, ou pelo menos zonas de coexistência de tráfego automóvel e bicicletas, com limite de 30 km/h, é uma freguesia onde quem quer usar a bicicleta como meio de transporte encontra pouquíssimas soluções de estacionamento seguro. Senão, vejamos: na vizinha freguesia de Arroios, o rácio de lugares de estacionamento de bicicleta disponíveis é de 30 lugares por cada 1000 habitantes; na Penha de França, o rácio é de 7 lugares por cada 1000 habitantes.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Escadas, tormentos, postes e gradeamentos

A solução para a maioria das pessoas que já usa ou que pretende vir a usar a bicicleta como meio de locomoção, quer se desloque na freguesia, quer se desloque para dentro e fora dela, é portanto recorrer na maior parte das vezes aos omnipresentes sinais de trânsito e postes (situações que além de não garantirem segurança, não são propriamente legais); ou, para prevenir situações de roubos ou vandalismo, levar a bicicleta para casa. Sendo que esta última, que é por norma a solução mais segura, não é de todo a mais prática ou fácil para muitas pessoas – falamos de casas e apartamentos de dimensões modestas, geralmente sem elevador, e onde nem sempre a convivência com os vizinhos é propícia a permitir a ocupação das zonas comuns dos prédios (se as houver com espaço suficiente) com estacionamento de bicicletas.

Mas vou dar-vos exemplos concretos, porque estas pessoas, para quem a dificuldade de estacionar uma simples bicicleta é um entrave às suas aspirações de mobilidade, existem, têm nomes e rostos.

Leonor Nobre Alves vive perto da Praça Paiva Couceiro. Trabalha na área dos fitofarmacêuticos e há muito que faz planos para se deslocar de bicicleta na cidade, mas tal ainda não aconteceu. O principal entrave? O facto de ainda não ter descortinado a melhor forma de guardar a bicicleta em segurança. “Foi com muito agrado que vi a rede de ciclovias a nascer e as bicicletas comunitárias a aparecer. Infelizmente ainda não há postos da GIRA na Penha de França. Já por várias vezes pensei que queria comprar uma bicicleta, e acabei sempre demovida por não ter onde a guardar. A opção de subir e descer escadas com a bicicleta não lhe agrada por não ser prática. “Fora de casa não há onde a guardar, e quando nos deslocamos de bicicleta também ainda não abunda onde a estacionar. Com pena, tenho mantido este plano em suspenso…”

Dinis Correia, web designer e developer, que se desloca há já vários anos diariamente de bicicleta, conseguiu superar essa dificuldade. Mas não como gostaria, já que com um apartamento pequeno, a opção é deixar a bicicleta na rua. A residir no topo da colina, na zona da Praça António Sardinha, foi com inveja que foi “assistindo à instalação de parques para bicicleta na freguesia vizinha, Arroios. Aqui ainda assisti à aparição de uma estrutura, no topo da Rua Heliodoro Salgado, mas foi retirada para abrir caminho para a garagem de um prédio (hoje ainda são visíveis as pinturas no chão que sinalizavam o parque, tendo sido retiradas as estruturas)”. Nas redondezas existe apenas um parque, contudo, está permanentemente ocupado por motas, o que à partida deixa pouco espaço e confiança aos utilizadores de bicicleta ­— com a entrada e saída de veículos motorizados aumenta a possibilidade de danos causados às bicicletas. “Sem parques, vejo-me obrigado a prender a bicicleta ao corrimão de umas escadas na rua. Teria como opção os sinais de trânsito, mas, tendo a rua lugares de estacionamento em paralelo, acabaria provavelmente a bloquear a entrada dos carros.”

Ana Matias, bióloga e residente na zona do Alto de São João, vê-se a braços com uma situação mais bicuda. Vinda há uns meses do bairro da Mouraria, onde guardava a bicicleta elétrica num BiciPark da EMEL (no mercado do Chão do Loureiro), com a mudança de casa vê-se impedida de usar o veículo que adquiriu, dado que é mais pesado do que uma bicicleta convencional, logo, difícil de levar para casa. E não se atreve a deixar a bicicleta na rua, presa a um poste; em caso de roubo, seria um prejuízo considerável. Assim, enquanto não encontra uma solução, ou enquanto a Junta de Freguesia e a autarquia não investem a sério nas condições e infraestruturas para quem quer usar a bicicleta, resta a Ana manter a bicicleta parqueada muito longe de onde mora e, dessa forma, acabar por não a usar. Mas Ana não se conforma. Tem-se desdobrado em contactos e lançou uma petição com o objetivo de conseguir um hangar de bicicletas, para parqueamento seguro de longa duração no Alto de S. João. Esforços que esbarram, no entanto, em inúmeras barreiras e dificuldades.

Contas fáceis: no lugar de 1 carro cabem 10 bicicletas

Também eu, que optei há muitos anos por não usar carro em Lisboa, me deparo constantemente com o entrave da falta de estacionamento para bicicletas. Basta-me percorrer a Rua Morais Soares, que calcorreio inúmeras vezes, quer de bicicleta, quer a pé, para me aperceber de que em toda esta rua — que é uma das mais movimentadas da cidade — não existe um único sítio para parquear uma bicicleta. Não estou a contar, obviamente, com postes ou corrimãos. Quando se ouvir alguém a falar dos gastos com a mobilidade, explique-se isto: não há um único parque nesta movimentadíssima rua para estacionar uma bicicleta e ir, por exemplo, fazer uma compra ou beber um café. Em todo o caso, é perfeitamente possível fazê-lo de carro, seja parqueando legalmente, seja estacionando em segunda fila, para prejuízo da fluidez dos transportes públicos.

“Quando se ouvir alguém a falar dos gastos com a mobilidade, explique-se isto: não há um único parque nesta movimentadíssima rua para estacionar uma bicicleta e ir, por exemplo, fazer uma compra ou beber um café. Em todo o caso, é perfeitamente possível fazê-lo de carro, seja parqueando legalmente, seja estacionando em segunda fila, para prejuízo da fluidez dos transportes públicos.”

Outro exemplo: há dias juntei em minha casa várias pessoas que têm em comum o facto de utilizarem a bicicleta como modo de transporte. Tal como, noutras ocasiões, juntei amigos que se deslocam habitualmente de carro ou de transportes públicos. Desta vez, dei por mim muito preocupada em articular soluções de estacionamento. O estacionamento automóvel na freguesia da Penha de França é difícil, mas quando os convivas vêm de carro, sei que basta darem uma volta ou duas nas ruas em redor e em breve encontrarão um lugar para parquear o carro. Posso até dar uma dica ou outra para quem não conhece bem a zona. Não é um drama. Mas com os amigos que vinham de bicicleta, senti-me quase na obrigação de desfazer em desculpas, como se fosse responsabilidade minha garantir que lhes proporcionava estacionamento seguro para os seus veículos. Na minha cabeça começava já desenvolver-se o drama: e se eles deixassem de gostar de mim ou de me visitar porque não tenho um parque de bicicletas ao pé de casa?

É que, reparem, a grande e preciosa vantagem da bicicleta é que nos leva exatamente à porta do nosso destino. Mais eficaz do que qualquer transporte público, do qual só com muita sorte teremos uma paragem ou estação em frente ao local onde moramos, com a bicicleta podemos, a qualquer hora do dia ou da noite, chegar precisamente onde queremos. E, dado que no espaço ocupado por um automóvel cabem cerca de 10 bicicletas, praticamente em qualquer recanto é possível ter um parque que garanta pelos menos meia dúzia de lugares para bicicletas – e sem prejuízo para os peões.

“Enquanto cidadã, contribuinte, sei que posso estacionar um carro numa rua perto de casa. Enquanto cidadã, contribuinte, se quero parquear a bicicleta, é melhor pensar duas vezes e comprar um modelo leve que consiga carregar escada acima.”

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Neste ponto, muitos poderão perguntar: mas se quem conduz um automóvel não tem direito a ter lugar à porta, porque é que as bicicletas precisam de ter lugar à porta? Bem, para já, não podemos colocar em pé de igualdade veículos que têm externalidades diferentes: uma bicicleta não é um veículo poluente e não ocupa o mesmo espaço que um automóvel. E segundo, cá em casa temos um automóvel com dístico de residente que sim, nos garante um lugar perto de casa sem pagar um cêntimo que seja, quando existem lugares vagos (e quando não existem lugares vagos temos de perceber que eles não existem porque o parque automóvel é desproporcional em relação ao espaço disponível, logo, há mais automóveis do que as ruas conseguem comportar). Enquanto cidadã, contribuinte, sei que posso estacionar um carro numa rua perto de casa. Enquanto cidadã, contribuinte, se quero parquear a bicicleta, é melhor pensar duas vezes e comprar um modelo leve que consiga carregar escada acima.

Em termos do espaço dedicado ao estacionamento automóvel e ao estacionamento de bicicletas há, claramente, um gigantesco fator de desequilíbrio. E isto acontece sobretudo pela imposição do tamanho: um automóvel ocupa orgulhosamente espaço e reclama sempre mais. As bicicletas, essas, vão-se enfiando onde possível, vistas como veículo recreativo quando são cada vez mais, para tantas pessoas, a forma de fazer deslocações mais ou menos curtas de forma rápida e barata. Está mais do que na altura de mudar o chip, por todas as razões e mais algumas: de saúde, ambientais, e, nestes tempos de turbulência económica que já estamos a viver, e que se irão certamente agravar, financeiras.

Melhorar a comunidade em que vivemos

Mas tudo aquilo que eu possa aqui escrever, por muito interessante que possa ser, de pouco vale se não houver ações subsequentes. Se não se traduzir em esforço para melhorar as políticas de mobilidade na freguesia e, por inerência, em toda a cidade.

“As bicicletas, essas, vão-se enfiando onde possível, vistas como veículo recreativo quando são cada vez mais, para tantas pessoas, a forma de fazer deslocações mais ou menos curtas de forma rápida e barata.”

Unido em torno da vontade de melhorar a freguesia, no último ano, um grupo informal de moradores/as da Penha de França tem-se dedicado a fazer um levantamento exaustivo das necessidades de parqueamento, além de uma avaliação daquilo que já existe (“Está situado num local acessível e adequado? Que problemas/desafios apresenta e que fazem com que a estrutura seja ou não usada?”), com sugestões de: i) criação de novos parques onde estes sejam necessários, com espelhamento da informação na plataforma Cidade Ciclável; e ii) melhoramento dos parques já existentes.

Faço parte desse grupo voluntário, sem qualquer motivação extra que não seja o poder parquear a minha bicicleta perto de casa, sem ter de subir e descer escadas, carregando-a, de cada vez que preciso de sair. E possibilitar essa mesma facilidade a todas as pessoas que se deslocam de bicicleta na freguesia.

Temos vindo a comunicar com a Junta de Freguesia para que a mobilidade seja uma prioridade por estes lados, e para que seja dada particular atenção a um tema que é cada vez mais caro a um segmento da população – jovens e menos jovens –, sob pena de a Penha de França ficar emaranhada numa forma de cidade desadequada a quem aqui procura viver e trabalhar. Nos últimos anos, esta freguesia tem assistido à fixação de novas populações, incluindo muitos jovens vindos de outros pontos da cidade, coletivos culturais e artísticos, espaços comerciais e de restauração, para quem a mobilidade sustentável faz absolutamente parte da equação para ter qualidade de vida. É preciso que a nível autárquico e local haja um sprint para acompanhar essas movimentações sociais.

“Não me canso de o repetir: por cada pessoa a usar a bicicleta há menos um carro a circular ou a ocupar espaço de estacionamento. Ganhamos todos.”

Porque todos ganhamos quanto mais condições houver para usar a bicicleta de forma segura: todos! Ganham as pessoas que querem usar a bicicleta como meio de transporte, porque têm parqueamento prático, bem localizado e seguro; ganham as pessoas que querem andar a pé, porque deixam de ter bicicletas em cima dos passeios presas em postes e sinais, que eventualmente podem bloquear ou piorar a acessibilidade; e ganha quem, por uma razão ou por outra, quer/precisa de usar o automóvel nas suas deslocações, porque, não me canso de o repetir: por cada pessoa a usar a bicicleta há menos um carro a circular ou a ocupar espaço de estacionamento. Ganhamos todos.

A assinatura que geralmente acompanha a freguesia da Penha de França é “do rio à colina”. Pois o nosso desafio – deste grupo de moradores empenhados na mobilidade sustentável – para o poder local, é que seja, cada vez mais, “de bicicleta, do rio à colina”. Se depender de nós, será.


Laura Alves é co-autora do livro A Gloriosa Bicicleta e do projecto documental Maria Bicicleta. Integra actualmente a direcção da MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta. Laura escreve de acordo com o mais recente Acordo Ortográfico.

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