Crónica.
Os sanitários de Lisboa foram sendo destruídos. Erguidos em sítios estratégicos como praças, jardins e estações de transporte público com a comercialização do espaço público, normalizámos o seu desaparecimento.

Os sanitários de Lisboa foram sendo destruídos. Erguidos em sítios estratégicos como praças, jardins e estações de transporte público, com a comercialização do espaço público, normalizámos o seu desaparecimento. Alguns dos que ainda sobrevivem é como se não já existissem. Porque estão com más condições, com portas fechadas, com horários reduzidos (à hora a que saímos do trabalho e podemos ir para a rua conviver, já estão fechados). Outros dos sanitários que também resistiram são obras públicas do século XX. São de de tijolo, pedra e cimento. Não são contentores. Esses sanitários foram construídos como uma preocupação e não como uma despreocupação. Eram gratuitos e não pagos (ninguém deve ter que pagar para ir à casa-de-banho, é uma necessidade básica).
Lisboa cheira a mijo. E culpam-nos por isso.
Uma cidade ter sanitários para os seus cidadãos não é menos importante do que ter recolha de lixo a funcionar, iluminação na via pública em condições, parques infantis, esgotos, chafarizes, reparação de calçada, bibliotecas… Dar sanitários públicos não pode ser visto como um luxo nem como caridade, mas como uma necessidade e obrigação. Todas as casas-de-banho públicas e gratuitas que ainda existem, e que resistiram ao fecho, representa o reconhecimento da cidade no dever de disponibilizar esta infraestrutura aos seus cidadãos. Os WCs também servem para lavarmos as mãos ou para bebermos água. E é saudável beber a água que queremos sem nos auto-policiarmos com medo de não encontrarmos, depois, um outro WC (segurar a urina pode aumentar o risco de uma infeção urinária e problemas nos rins, visto que a urina é responsável por expelir baterias e impurezas do nosso organismo).
Existe uma disparidade da quantidade de WC entre freguesias. Por exemplo, mesmo contanto com número de habitantes e área quadrada, a freguesia de Arroios tem muitos mais sanitários públicos que a freguesia da Penha de França. Quem trabalha em alguns desses sanitários não é valorizado e respeitado. Há empregados de limpeza a trabalhar há mais de 10 anos para as Juntas de Freguesia a recibos verdes (sem segurança social, sem seguro acidente trabalho, sem subsídio férias). Na verdade, estas pessoas são muito importantes para a cidade funcionar.

O caso das inaugurações
As inaugurações de casas-de-banho públicas acabaram. Já lá vai o tempo em que eram edificadas como obras públicas, como preocupação, como bem comum. Hoje, para além de neglegenciarmos as que o século XX nos deixou – não lhes dando manutenção ou destruindo-as –, construímos muito poucas e as que construímos são contentores pagos, quase sempre avariados e pequenos e, por isso, não inclusivos. Antes eram de tijolo, pedra e cimento e não contentores. Antes eram feitas para durar e não para serem coisas temporárias. Antes eram gratuitas e não pagas. Temos de inaugurar mais WCs no espaço público e, antes disso, talvez, tratar bem das que ainda cá temos.
Dois exemplos de sanitários públicos feitos como obras a sério, de tijolo e cimento, construídos como uma casa – uma casa-de banho – e não um contentor:

WC num jardim em Belém, Lisboa

Placa de inauguração de um balneário em São João da Praça, na Sé, Lisboa, em 1987

Um WC/paragem de autocarro em Sintra

Placa de inauguração de um balneário na Mouraria, em 1989
O caso dos taxistas

Na foto da esquerda, está um taxista no Martim Moniz a mostrar o seu cartão de plástico, branco, que lhe dá acesso gratuito aos WCs em contentores pagas.
O Martim Moniz, uma praça que também é praça de táxis, não tem WC. Vários taxistas têm uma garrafa de plástico no carro para urinarem. Vários taxistas têm este cartão. Vários taxistas não sabem que podem ter este cartão. Vários taxistas sabem que podem ter este cartão mas não querem porque dizem preferir usar os sanitários dos cafés por as públicas estarem muitas vezes sujas. O exemplo dos taxistas serve para falar de algo muito maior: onde vão à casas-de-banho todos os outros trabalhadores sem escritório fixo, como os carteiros, os cantoneiros da noite das juntas de freguesia, os trabalhadores estafetas de entrega de comida, etc. Este cartão branco – uma luta dos taxistas pelo direito a sanitários gratuitos – continua a ser a luta de nós todos. É uma tragédia este cartão. porque normaliza como sendo só de uns um direito de todos.
O caso das não-soluções

Não só nos roubaram o direito a ir à casa-de-banho como também nos proibiram o usar a rua como casa-de-banho. Quando as WC públicas começaram a desaparecer claro que a necessidade de as pessoas irem à casa de banho não desapareceu. Os cafés, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais começaram a fechar as suas WCs à chave ou a instalar códigos de acesso, como o McDonald’s e Starbucks, ou a colar papéis à porta a dizer “só para clientes”.
Quando as juntas de freguesia deixam de nos fornecer este serviço e os estabelecimentos comerciais se tornam também uma barreira só nos resta uma opção, que é a rua, mas mesmo esta foi hostilizada – em 2016, a Junta de Freguesia da Misericórdia começou a colocar em paredes de Lisboa uma tinta, cara, que projeta a urina a quem urina. Outras juntas fizeram igual. É triste quando uma autarquia acha que resolve este problema dificultando o urinar em paredes e não criando uma rede de sanitários públicos para os seus residentes e visitantes. Às vezes, sanitários até existem mas com horários. Quando estão fechados, onde podemos ir à casa-de-banho? O direito a fazer xixi está ameaçado.
O caso das condições
Não é só abrir um sanitário público. Os sanitários públicos precisam de manutenção e, quando esta não é feita, as coisas estragam-se, servindo de desculpa para fechar tudo.
Para onde vão de facto as verbas para sanitários que a Câmara de Lisboa dá às juntas de freguesia, no âmbito da descentralização de competências, se essas infraestruturas em tão más condições? Com autoclismos avariados, secadores e bancadas partidas, tetos caídos, luzes estragadas, paredes com bolor, cheiro a esgoto, chuvas que entram, cadeiras-elevador de escadas que não funcionam. Como vimos tantas vezes em visitas que fizemos. E muitas vezes achamos que as casas-de-banho não estão limpas quando, na verdade, estão mais do que limpas. O que é preciso são obras que não dependem dos empregados de limpeza. Partilhamos algumas imagens feitas por nós.

Bolor


















O caso das cancelas
Antes não era assim.
Não deveríamos ter de pagar para ir à casa-de-banho. É uma necessidade básica. Faz parte do direito à cidadania. Já somos contribuintes. Não podemos normalizar que se pague quando estas mesmas casas-de-banho nunca foram pagas.
A estação de comboios do Cais do Sodré sempre teve sanitários gratuitos mas há poucos anos começaram a ser pagas. O sanitário público do Largo do Carmo sempre foi gratuito mas há dois meses instalaram cancelas. No site da Junta de Freguesia da Penha de França, em 2021, foi anunciada uma WC gratuita mas agora é paga. O sanitário do terminal fluvial do Cais do Sodré é gratuito para crianças até aos seis anos mas se o teu filho tiver sete anos já paga.
Porque é que há umas freguesias que dentro da sua própria freguesia têm uns sanitários públicos que são pagos e outros que são gratuitos? Ou porque é que há freguesias com sanitários públicos gratuitos e outras freguesias onde já são pagos? As casas-de-banho públicas que são pagas e geridas pelas juntas de freguesia não dão recibo; por isso, a pergunta é: para onde vai este dinheiro não declarado? Neste momento, as juntas de freguesia têm total liberdade para decidir o que querem em relação aos seus sanitários públicos, mas isto deveria ser regularizado.

Gratuito para crianças até 6 anos




Isto são alguns exemplos, mas há muitos mais. O que importa percebermos é que isto não era assim. Por isso, não podemos normalizar o termos de pagar para ir à casa-de-banho – um direito. Cancelas são um elemento muito agressivo, já para não falar no facto de cadeiras de rodas não passarem.
Em 1963, uma lei no Reino Unido declarou que o uso de cancelas em sanitários públicos passaria a ser ilegal e que todas as autoridades locais tinham seis meses para proceder à sua remoção: “Todos os torniquetes existentes em qualquer parte de uma casa-de-banho pública ou de uma instalação sanitária pública controlada ou gerida por uma autoridade local, ou em qualquer entrada ou saída de uma casa-de-banho pública ou de uma instalação sanitária pública, devem ser removidos o mais tardar seis meses após a aprovação da presente lei; e após a aprovação da presente lei, não deve ser instalado qualquer torniquete em qualquer entrada ou saída de uma casa-de-banho pública ou de uma instalação sanitária pública.” Com legislação, podemos conseguir mudar a situação de como as juntas e Câmara lidam com os sanitários públicos de Lisboa.
O caso do desaparecerem
As casas-de-banho públicas que temos têm vindo, com o tempo e de forma silenciosa, a desaparecer. Quem as conheceu reconhece a sua falta. Quem já não as apanhou abertas pode achar que a cidade nunca garantiu este serviço aos seus cidadãos e que é normal o que está a acontecer.
O que está a acontecer não é, de todo, normal.
O WC da Praça do Rossio já não existe. O da Praça do Comércio também já não existe.


O WC do Jardim Camilo Castelo Branco, na freguesia de Santo António, deixou de ser um sanitário para ser uma sala de eventos. O sanitário do jardim da Alameda existia dos dois lados mas agora é só num porque o outro passou a ser usado como armazém da Junta de Freguesia da Penha de França. O WC da Antero Quental está fechado. A casa-de-banho do Jardim Cesário Verde, em Arroios, foi tapado. O WC/quiosque projetado no Jardim Roque Gameiro, no Cais do Sodré, não é usada como sanitário mas como venda de bilhetes da Carris (o projecto “Quiosques WC” foi apresentado à Câmara de Lisboa em 1913, pelo arquiteto José Alexandre Soares; na planta de arquitetura, escreve: “projeto de retretes com anexos para venda de flores e jornais, destinadas às praças e jardins públicos”).


E, infelizmente, há muitos outros exemplos.
O caso do Metro
As estações de Metro de Lisboa já tiveram sanitários. Muitos dos que eram públicos são agora só para funcionários e lojistas (um dos vários exemplos pode ser a estação do Martim Moniz).

WC estação São Sebastião

‘‘Instalações sanitárias temporariamente encerradas’’

WC estação Aeroporto

Sistema pagamento fora de serviç

WC estação Marquês Pombal

WC só para funcionários/lojistas

WC estação Campo Grande

‘‘Instalações sanitárias temporariamente encerradas’’
Somos clientes do Metro de Lisboa. São eles – a empresa – que nos chamam desta forma. Somos clientes porque pagamos o transporte mas, mesmo assim, não nos dão acesso ao serviço de sanitário. Quando vamos comer sardinhas à tasca como clientes temos direito a usar o WC e não pagamos mais 30 cêntimos por isso, mas com o Metro é diferente. Na verdade, no Metro nem isso pagamos agora porque todos os WCs que o Metro disse ter aberto estão agora fechados.
Em 2018, dois comunicados de imprensa do Metro de Lisboa emitiu um documento a dizer:
‘‘Após a abertura das instalações sanitárias da estação do Campo Grande, que cumpriu as expectativas de procura, encontra-se agora em implementação a fase seguinte do projeto que abrange mais catorze estações, destacando-se as intervenções e as obras de adaptação que se encontram em curso nas estações Aeroporto, Alameda, Marquês de Pombal e Saldanha, com abertura prevista já durante o primeiro semestre de 2018, prevendo-se a disponibilização progressiva das restantes instalações até final de 2018, num total de 15 novas instalações.”
“Após a abertura das instalações sanitárias nas estações Campo Grande, Aeroporto e Marquês de Pombal, segue-se, agora, mais um WC na estação São Sebastião da Linha Azul.“

Todas estes sanitários estão fechados com um papel à porta a dizer “instalações sanitárias temporariamente encerradas”. E, claro, o “temporariamente” é muito relativo, porque já lá vão pelo menos dois anos que as vemos fechadas. A história da falta de sanitários nas estações de Metro serve também para outros tipos de estação: de autocarro, de barco, de comboio.
O caso do protesto
Somos o @infraestruturapublica, um grupo de pessoas em protesto por mais infraestrutura pública. No final de Janeiro, fomos para a rua durante uma semana com uma casa-de-banho portátil, um sanitário público construído por nós. cidadãos. Em praças, jardins e até estações fizemos serviço público voluntário – o serviço público que as juntas e a Câmara não estão a fazer.
No dia 23, fomos para a Praça Paiva Couceiro, na Penha de França. O sanitário desta praça pertence à Junta de Freguesia da Penha de França, que, em 2021, escreveu tratar-se de um WC gratuito. Estamos agora em 2024 e é a pago. A Paiva Couceiro é uma praça cheia de mesas e cadeiras onde a malta lê jornais, joga cartas, almoça, conversa, descansa. Etc. Muitas pessoas que usam a praça contaram-nos que a casa-de-banho, um contentor, está lá mas que muitas vezes está avariada; que não dá troco; que inseres a moeda mas que a máquina a come sem abrir a porta; que já têm alguma idade e, por isso, problemas de bexiga que obrigam a ir mais vezes à casa-de-banho; que os amigos que jogam cartas na Alameda não pagam para ir à casa-de-banho mas que eles ali, na Paiva Couceiro, sim; que bebem menos água ao longo do dia para não terem de ir ao WC tantas vezes; que uns amigos já lá ficaram presos e a freguesia demorou horas a conseguir arranjar um técnico para os tirar de lá; que por causa disto tudo têm de fazer muitas vezes xixi e cocó atrás das árvores da praça.
No dia 24, fomos para o jardim da Alameda. A nossa casa-de-banho ficou em frente ao sanitário público oficial deste jardim. Chegámos às três da tarde e o WC já estava fechado. A folha de horários dizia estar aberto com horário de fecho às 16. Uma senhora veio dizer-nos que até tinham fechado duas horas antes disso. Estas casas-de-banho das juntas não fecham às horas que dizem fechar. Oficialmente já fecham cedo, mas na realidade fecham muito mais cedo. Muitos dias nem abrem. Estava um dia de sol e a fonte luminosa e o jardim estava cheio de pessoas. A malta quando percebeu que o WC da junta já estava fechada veio então usar a nossa. Muitas pessoas vieram.







No dia 25, fomos para a Praça do Martim Moniz que não tem um sanitário público. Antes, a estação de Metro do Martim Moniz tinha uma casa-de-banho pública mas agora é só para lojistas e funcionários do Metro. Muitas pessoas vieram usar o nosso sanitário. Muitas pessoas vieram também só lavar as mãos ou só beber água porque o bebedouro do Martim Moniz não estava a funcionar (há algum tempo que já está sem água). Um taxista veio da praça de táxis para usar a casa-de-banho rápido e voltar para o trabalho (todos os seus colegas estão irritados com a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior por não lhes dar um WC). Vimos também uma cova grande feita na terra dos canteiros da praça – que é a casa de banho “‘oficial” de todos os dias de quem usa esta praça. É quase criminoso a Junta não instalar ali um sanitário. Uma zona tão central, tão usada e tão cada vez mais cheia de pessoas em situação sem abrigo. É um atentado à higiene pública e aos nossos direitos mais básicos.
No dia 26, fomos para a Praça do Comércio. A nossa casa-de-banho ficou por cima do sanitário público que lá existia e fechou já há muitos anos. Os polícias municipais disseram que têm sempre de ir ao WC de um Pingo Doce, pois ali naquela praça não têm nenhuma solução.
No dia 27, fomos para a praça do Rossio. A nossa casa-de-banho ficou também por cima do sanitário público subterrâneo que lá existia e fechou já há muitos anos. Algumas pessoas que passaram por nós lembravam-se ainda do que lá estava antes. As floristas da praça mostraram-nos o balde onde fazem xixi, encostando a porta do quiosque, e que depois deitam na sarjeta da frente. Estão chateadas por não terem um sanitário ali na praça, a servir as suas necessidades fisiológicas.
No dia 28, fomos para a frente do sanitário público do Largo de Santa Bárbara. É uma casa-de-banho boa, gratuita e limpa, mas com um horário em que aos fins-de-semana termina às 17. Fomos a um domingo e estivemos lá das 17 às 22 horas. Os horários desta infraestrutura têm de ser mais alargados.
No dia 29, fomos para a estação do Cais do Sodré. A nossa casa de banho ficou em frente aos WCs que são pagos e que têm cancelas. Não foi assim há tanto tempo que se começou a pagar para ir à casa-de-banho. Agora são 50 cêntimos. Muitas pessoas não colocaram moeda e foram então ao nosso sanitário por zero euros – tal como eras antes. Muitas estavam chateadas por já pagarem bilhetes e passes de transportes públicos e, mesmo assim, ainda terem de pagar para ir à casa-de-banho. Deveria ser obrigação das estações de comboio, metro, barco darem-nos este serviço.

Com este protesto, quisemos pedir casas-de-banho que não estejam associadas a espaços de consumo. Os WCs dos cafés, que não as trancam à chave, fazem de serviço público. São o serviço que as juntas, as responsáveis pelos sanitários públicos, não nos dão. A falha desta infraestrutura no nosso dia-a dia é um problema de saúde, igualdade, circulação. Os sanitários fazem os espaços públicos serem não apenas de passagem, mas de estar. São equipamentos urbanos democráticos.
Os sanitários públicos são também uma questão de género. Uma história para terminar: no final do século XXI, logo a seguir à invenção do autoclismo, a Associação Sanitária Feminina de Londres começou a fazer campanha com palestras e panfletos sobre o assunto sanitários públicos. Só mais tarde, já depois de acabar a Primeira Guerra Mundial, é que os WC para mulheres começaram a tornar-se comuns. Nas ruas eram instalados mais urinóis do que sanitas para mulheres. Homens eram corpos que se movimentavam na rua, como para ir para o trabalho, enquanto mulheres estarem no espaço público era considerado impróprio. Esta sociedade patriarcal tentou controlar os movimentos das mulheres não lhes fornecendo sanitários públicos. O aparecer destes WCs representou a abertura gradual de novas oportunidades de lazer e trabalho antes indisponíveis para as mulheres. O assunto casas de banho tornou-se uma causa feminista – “as mulheres sentiam-se restritas nos seus movimentos por causa da falta de sanitários. Amarradas por esta trela urinária”. Esta “trela urinária” está, infelizmente, ainda presente no nosso dia a dia – no dia a dia de todos nós.