Há mais de 30 anos que o antigo Cinema Império funciona como local de culto. Mas a Câmara de Lisboa aprovou, no início deste mês, a alteração do uso do equipamento de cultural para religioso, levando a uma petição pública com mais de 13 mil assinaturas. Agora, a autarquia decidiu reverter a decisão – mas apenas em parte.

O edifício do Cinema Império, localizado na Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa, foi o centro de uma controvérsia recente, depois de a Câmara liderada por Carlos Moedas ter aprovado, no início do mês, a alteração do uso do equipamento de cultural para religioso, oficializando, dessa forma, a utilização do imóvel como local de culto.
Inaugurado em 1952, o Cinema Império foi uma das mais prestigiadas salas de cinema na capital. Projecto inicial de Cassiano Branco, conta com mais de 1600 lugares, distribuídos por uma plateia e dois balcões. Poderia ser um espaço de cultura e espectáculo, semelhante ao Cinema São Jorge, por exemplo. Mas, desde 1983, que o Cinema deixou de existir e que o edifício – classificado desde 1996 como Imóvel de Interesse Público – está transformado num local de culto. Está cedido à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).
Nos últimos anos, a IURD fez algumas alterações no edifício, erguido durante o Estado Novo – daí ter sido baptizado com a pesada designação de “Império”, apresentando, à época, este nome no topo da volumosa estrutura, juntamente com um conjunto de esferas armilares. Hoje, nenhum desses elementos existe. Pode ler-se, na fachada virada para a Alameda, em letras grandes, tanto “Jesus Cristo é senhor” como “Igreja Universal do Reino de Deus”. Na fachada que dá para a Avenida Almirante Reis, encontramos o Café Império, um ícone da cidade.
Ainda há, no edifício, vários elementos no espaço que remetem para o antigo cinema, mas, seja no exterior, ou principalmente interior, serão vários os pormenores alterados, fruto de pequenas obras e intervenções, e do uso diferente que o espaço tem há 30 anos.



A polémica
Apesar de o Cinema Império ser da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) há três décadas, o imóvel continuava a ser considerado um equipamento cultural. Contudo, no início de Dezembro, a Câmara de Lisboa aprovou, em reunião, uma alteração do uso do antigo cinema, de cultural para religioso, e abriu a porta a alterações mais profundas da parte da IURD ao edifício. Após esta decisão, várias vozes da sociedade civil – e, em particular, do panorama cultural português – levantaram-se em protesto, levando a autarquia a ponderar uma reversão da decisão. Esta reversão foi aprovada esta quarta-feira, dia 18 de Dezembro.
Resultado: volta tudo ao que estava. Com uma ressalva: é mantida a classificação do antigo Cinema Império como equipamento de uso cultural, mas mantém-se a autorização de uma série de alterações. Por isso mesmo, a proposta passou apenas com os votos a favor da liderança PSD/CDS, tendo o PCP e BE votado contra, e o PS, CPL e Livre abstido. Mas já lá vamos.

A decisão anterior, do início do mês, gerou uma onda de indignação, com cidadãos e entidades culturais a denunciarem a perda de um espaço com grande valor histórico e arquitectónico para fins religiosos, em detrimento do seu potencial cultural – ainda que esse uso não esteja a ser dado. Não só as críticas foram feitas à alteração de uso como a uma série de mudanças que a Câmara de Lisboa aprovou paralelamente. Entre as alterações previstas destacavam-se a ampliação do edifício, mudanças na fachada e volumetria, bem como modificações internas que descaracterizariam elementos históricos e decorativos. Além disso, intervenções realizadas irregularmente nos anos 1990, sem aprovação, estariam agora a ser regularizadas, o que levantava sérias preocupações sobre as políticas de proteção do património na cidade.
Uma petição lançada na plataforma Petição Pública rapidamente recolheu milhares de assinaturas, estando já encerrada com mais de 13 mil assinaturas. Intitulada “SALVEMOS O CINEMA IMPÉRIO”, a iniciativa, lançada pela Academia Portuguesa de Cinema, defende que o antigo Cinema deve ser reabilitado e utilizado para fins que sirvam a comunidade artística e cultural da cidade. Segundo o texto da petição, “este edifício emblemático, concebido pelo arquiteto Cassiano Branco, é um testemunho vivo do modernismo português e um espaço onde a arte, a memória e a cultura convergiram durante décadas”, pode ler-se. “Ao longo da sua existência, o Cinema Império não foi apenas um local de exibição de filmes, mas também um palco de momentos históricos e artísticos”, refere ainda o texto da petição, dirigido à Assembleia da República, ao Governo e também à Câmara de Lisboa.

A Academia Portuguesa de Cinema (APC) alertava, nessa petição, que as alterações aprovadas pela autarquia desvirtuavam o espírito original do Cinema Império. Elementos icónicos, como o painel cerâmico de João Fragoso e as pinturas murais no interior, corriam o risco de serem alterados ou destruídos. Por outro lado, também entendiam que a mudança de uso para equipamento religioso colocava em causa a preservação da memória cultural do espaço. Para a APC, não havia clareza sobre se os processos legais obrigatórios para a desafectação de uma sala de espetáculos foram cumpridos, uma condição essencial para garantir a continuidade da função cultural do edifício. Esta falta de transparência e salvaguarda aumentava os receios de que Lisboa poderia perder de forma permanente mais um espaço cultural em nome de interesses privados.
Os peticionários pedem a “implementação de medidas que garantam a preservação integral do edifício, assegurando que não se façam intervenções que desrespeitem o seu valor histórico e arquitectónico”, querem “proibir intervenções que descaracterizem imóveis classificados, mesmo que aprovadas previamente”, e ainda propõem “preservar o Cinema Império enquanto imóvel de Interesse Público, mantendo a sua integridade arquitectónica e função cultural”, bem como “reavaliar o processo de aprovação do projecto actual”.
O resultado
Ora, parte do objecto da petição acabou por ficar actualizado com a reversão da decisão por parte da Câmara de Lisboa. À comunicação social, Carlos Moedas, o Presidente da autarquia, já tinha garantido que ia “garantir que fique escrito que aquilo está ali para poder ser reconvertido, quando assim o proprietário o fizer ou alguém que compre este imóvel, de voltar a ser o Cinema Império”, disse, citado pela SIC Notícias.

A IURD, por seu lado, afirmou que tem mantido e defendido o imóvel há mais de 30 anos e que nada de negativo aconteceu ou acontecerá ao Cinema Império. “Se o imóvel está hoje em muito melhor estado de conservação e ainda hoje é visto como ‘emblemático’ é precisamente porque a IURD dele cuida há mais de 30 anos, mantendo e defendendo a genuína traça do mesmo, tendo aí investido as verbas necessárias à sua conservação. Ontem, hoje e sempre”, afirmou a direcção da Igreja em declarações ao Diário de Notícias (DN).
Ao DN, a Igreja Universal referiu que as obras vão melhorar “o desempenho ambiental do edifício (preocupação que a IURD tem nos seus imóveis), incorporando tecnologias modernas de eficiência energética e sustentabilidade, restabelecendo as características originais, como a fachada em Art Déco, os detalhes interiores e os elementos decorativos que representam uma época histórica”. A intervenção, cujo projecto foi desenvolvido por “um atelier de arquitectura vencedor de um prémio de reabilitação urbana”, prevê as “melhores soluções” e tem em conta uma eventual “reversibilidade”.
Para a IURD, o Cinema Império difere-se de outras salas de cinema que desapareceram em Lisboa. “São precisamente de edifícios que já não existem e cujos proprietários não honraram a sua arquitectura e história. É essa a diferença. A Igreja Universal manteve o edifício, sempre cuidou do mesmo, por isso, passados 40 anos do seu encerramento enquanto sala de cinema, o Cinema Império mantém-se como relevante e importante para a cidade. Vai agora merecer uma melhoria com as melhores práticas”, referiu ao mesmo jornal.

A IURD irá poder avançar com uma série de obras, de forma totalmente legal, segundo um projecto que, diz a Igreja, salvaguarda o edifício. A Vereadora Ana Jara, do PCP, criticou nas suas redes sociais a proposta aprovada nesta quarta-feira. “A deliberação da Câmara foi feita com graves consequências para o edifício classificado, e agora Moedas correu a conter os danos que uma reacção veemente da cidade traz à sua imagem”, diz a Jara. “Foram as 13.000 assinaturas lúcidas que o abalaram, mas não a intervenção intrusiva sobre o Império. Aliás a emenda não reverte nenhuma acção nefasta sobre o edifício: as demolições de uma boa parte do interior, as construções sobre o palco, a ampliação do último piso.”
A vereadora comunista, também arquitecta, observa que a Câmara de Lisboa vai colocar a Inspeção Geral das Actividades Culturais (IGAC) “a validar o licenciamento de um ‘equipamento cultural’ que será uma igreja” e considera isso “uma hipocrisia”. E conclui: “o problema é que neste mandato o património, e até o classificado, estará cada vez mais em risco. Haja uma cidade de gente bem acordada.”
A controvérsia voltou a colocar o tema da preservação do património cultural no centro do debate público. Com a mobilização popular e a revisão por parte da Câmara de Lisboa da primeira decisão, o destino deste icónico espaço fica na mesma.