Why Lisbon needs a participatory mobility plan

Artigo de opiniรฃo de Joรฃo Bernardino.

As cidades que operam mudanรงas sustentadas na รกrea da mobilidade sรฃo aquelas que conseguem gerar consensos que perdurem alรฉm da espuma do ciclo eleitoral de quatro anos, e por isso Lisboa sรณ pode avanรงar consistentemente quando tiver um plano de mobilidade participado.

Lisbon Photography For People

Na semana das eleiรงรตes, que coincidiu com o regresso ร s aulas, que como รฉ bem sabido รฉ a semana do ano em que os utilizadores de automรณvel das grandes cidades mais sentem desespero no trรขnsito, estes rogavam pragas a quem estivesse a jeito, e em Lisboa quem estava a jeito era Fernando Medina, tรฃo a jeito que alguns indecisos poderรฃo ter canalizado o desgaste rodoviรกrio dessa semana para o boletim dos votos, quiรงรก um dos motivos misteriosos pelos quais o resultado das eleiรงรตes foi diferente do que diziam as sondagens.

A Avenida Almirante Reis foi um campo de batalha onde se esgrimiu a liberdade das pessoas poderem usar a bicicleta na cidade com a liberdade das pessoas nรฃo serem empatadas quando usam o automรณvel, entre outros flancos laterais da batalha como a capacidade das ambulรขncias fluรญrem para os hospitais da zona, das emissรตes provocadas pelos automรณveis congestionados e da seguranรงa proporcionada pela ciclovia ali desenhada.

Quem tenha tido a oportunidade de contactar com a evoluรงรฃo das polรญticas de mobilidade urbana noutros paรญses, sabe que esta guerra nรฃo รฉ uma particularidade nacional ou lisboeta. Tem acontecido em todas as cidades em que foi sendo feita a transiรงรฃo de um modelo de mobilidade urbana onde o automรณvel usa trรชs quartos do espaรงo pรบblico para outro em que parte desse espaรงo รฉ atribuรญdo a outros usos e formas de mobilidade. O problema fundamental causador dessas guerras รฉ a escassez do espaรงo urbano, que รฉ limitado, e por isso quando se dรก mais a uns รฉ impossรญvel nรฃo o retirar a outros, o que dรก sempre origem a batalhas.

Ora, politicamente esta guerra nรฃo รฉ fรกcil de travar. A tendรชncia natural dos polรญticos รฉ evitar zangar eleitores, o que ร  semelhanรงa do que aconteceu em Lisboa atรฉ 2017, leva ร  inaรงรฃo. Se forem um pouco mais ousados na mudanรงa, os polรญticos arriscam-se a perder as eleiรงรตes seguintes, como acabou por acontecer a Fernando Medina.

Ao contrรกrio do que se diz no senso comum, a saรญda para este imbrรณglio nรฃo passa apenas pela melhoria dos transportes pรบblicos, que em termos globais รฉ razoรกvel para uma cidade do tamanho de Lisboa, nem da falta de parques de estacionamento dissuasores ร  porta da cidade, que atรฉ jรก existem mas estรฃo semi-vazios apesar de custarem apenas cinquenta cรชntimos por dia. Estas soluรงรตes sรฃo insuficientes devido a um fenรณmeno simples de perceber, que acontece aqui e em qualquer lugar do mundo desenvolvido: enquanto for fรกcil e conveniente usar o automรณvel, a generalidade das pessoas irรก naturalmente continuar a fazรช-lo. Por isso, por mais que se procure, nรฃo รฉ possรญvel encontrar cidades estrangeiras que tenham diminuรญdo o uso automรณvel apenas ร  custa da melhoria das suas alternativas. Em Amsterdรฃo e Zurique, para dar dois exemplos com รกreas metropolitanas de tamanho semelhante a Lisboa, os residentes pagam perto de 300 euros por ano para poderem estacionar sรณ o primeiro carro da famรญlia na sua rua, uma medida que seria desnecessรกria se a excelente qualidade dos transportes pรบblicos nestas cidades fosse de facto suficiente para limitar o uso automรณvel. Retirar carros da cidade implica por isso necessariamente implementar medidas impopulares, com custos polรญticos, retirando espaรงo ao automรณvel e/ou aumentando os custos do seu uso dentro da cidade.

Em Amsterdรฃo e Zurique, para dar dois exemplos com รกreas metropolitanas de tamanho semelhante a Lisboa, os residentes pagam perto de 300 euros por ano para poderem estacionar sรณ o primeiro carro da famรญlia na sua rua.

Na sequรชncia desta difรญcil equaรงรฃo polรญtica, hรก alguns anos atrรกs um conhecido consultor de mobilidade urbana alemรฃo que ouvi numa conferรชncia dizia qualquer coisa como isto: โ€œDas muitas cidades que pude acompanhar ao longo das รบltimas dรฉcadas, aquelas que conseguiram operar uma transformaรงรฃo duradoura por uma mobilidade mais sustentรกvel foram aquelas em que foi possรญvel gerar um consenso polรญtico e civil sobre a visรฃo da mobilidade para a cidade. Algumas cidades conseguiram avanรงos muito rรกpidos em determinados perรญodos, mas sem esta visรฃo consensualizada tiveram depois recuos e nรฃo conseguiram progredir consistentemente ao longo dos anos.โ€

Pressionado por esta falta de consenso e insatisfaรงรฃo de parte da populaรงรฃo, Carlos Moedas comprometeu-se a reverter algumas medidas em princรญpio desejรกveis para o progresso de uma cidade com uma utilizaรงรฃo mais eficiente do espaรงo pรบblico, anulando a ciclovia pop-up da Almirante Reis e reduzindo em 50% as tarifas de estacionamento em parquรญmetros para residentes. O lado positivo รฉ que Carlos Moedas teve como principal mensagem de campanha fazer a mudanรงa โ€œcom as pessoasโ€, nรฃo negando que a mudanรงa รฉ necessรกria. Por mais que na cabeรงa de tรฉcnicos da CML, consultores e ativistas da mobilidade sustentรกvel como eu jรก esteja mais do que clara a necessidade de operar essa mudanรงa, o comum dos mortais que nรฃo pensa todos os dias em mobilidade estรก longe de compreender tanto os objetivos como os mรฉtodos necessรกrios para lรก chegar, quanto mais sentir que teve tempo e oportunidade para se ajustar a essa mudanรงa. Para esse desconhecimento tem contribuรญdo alguma incompetรชncia da CML em comunicar e envolver as pessoas, como se viu por exemplo no belรญssimo projeto para a envolvente do Mercado de Arroios, em que moradores e comerciantes nรฃo foram tidos nem achados, ou na apresentaรงรฃo da ZER para a baixa, cujo plano de desenvolvimento previa nรฃo mais do que um mรชs para receber e maturar contributos da populaรงรฃo, uma consulta pรบblica para inglรชs ver.

As cidades que operam mudanรงas sustentadas na รกrea da mobilidade sรฃo aquelas que conseguem gerar consensos que perdurem alรฉm da espuma do ciclo eleitoral de quatro anos, e por isso Lisboa sรณ pode avanรงar consistentemente quando tiver um plano de mobilidade participado.

Nรฃo basta um plano escrito no papel por tรฉcnicos. Ele tem mesmo de ser participado. Num processo participado รฉ necessรกrio em primeiro lugar chegar a um acordo geral sobre a visรฃo e os objetivos. Esta parte deverรก ser fรกcil: tirando uma percentagem pequena da populaรงรฃo, toda a gente hoje concorda que Lisboa tem carros a mais, e que รฉ necessรกrio retirar trรขnsito e melhorar as condiรงรตes para alternativas de mobilidade.

Nรฃo basta um plano escrito no papel por tรฉcnicos. Ele tem mesmo de ser participado.

Depois de definidos a visรฃo e objetivos, o desenvolvimento participativo do plano deve abrir uma discussรฃo alargada acerca das melhores medidas para os atingir, o alvo da discรณrdia atual. Este processo tem que ser iterativo e dar oportunidade para ponderar propostas alternativas e respostas tรฉcnicas que expliquem os seus impactos e eficรกcia. Por exemplo, uma proposta de desenvolvimento de parques dissuasores serรก importante, mas a anรกlise tรฉcnica baseada em estudos empรญricos e modelaรงรฃo terรก que explicar que a medida รฉ insuficiente pelos motivos que descrevi acima. Este envolvimento iterativo, com a participaรงรฃo dos cidadรฃos e organizaรงรตes relevantes, terรก o efeito de aumentar a literacia dos participantes sobre o tema, contribuindo para a compreensรฃo das causas da necessidade de implementar medidas difรญceis e da ineficรกcia de algumas mais fรกceis. Mas nรฃo se pense que sรณ estes รฉ que aprendem no processo. Qualquer gestor de produto sabe hoje que a sua melhor aprendizagem estรก em ouvir os utilizadores, e nas polรญticas de mobilidade nรฃo รฉ diferente. Sempre que se ouve os cidadรฃos afetados, aprende-se e ganham-se novas perspectivas que valorizam as soluรงรตes desenvolvidas. Alรฉm destes dois benefรญcios essenciais da participaรงรฃo pรบblica, existe um terceiro que รฉ o facto da populaรงรฃo se sentir genuinamente ouvida. Com um processo transparente e comunicaรงรฃo eficaz ao longo do desenvolvimento participativo do plano, as pessoas compreenderรฃo que a sua opiniรฃo foi tida em conta, mesmo que por motivos justificados nรฃo tenha sido acolhida. Isto faz toda a diferenรงa na aceitabilidade pรบblica das medidas implementadas.

Sempre que se ouve os cidadรฃos afetados, aprende-se e ganham-se novas perspectivas que valorizam as soluรงรตes desenvolvidas.

Existem ainda outras duas vantagens relacionadas com a elaboraรงรฃo de um plano, sendo a primeira รณbvia. Um plano serve para priorizar, calendarizar e coordenar medidas, fazendo com que a sua aรงรฃo global integrada seja o mais eficiente possรญvel. Na envolvente do Mercado de Arroios, a CML criou estacionamento adicional numa rua prรณxima deste para compensar a reduรงรฃo de estacionamento junto ao mercado, mas as duas medidas aconteceram com tal desfasamento no tempo e tal ausรชncia de comunicaรงรฃo com a populaรงรฃo local que o efeito conjunto que pretendiam ter nunca chegou a ser entendido pelos comerciantes e residentes.

A segunda vantagem fundamental de um plano de mobilidade รฉ que quaisquer medidas restritivas para o uso do automรณvel, sejam fรญsicas ou de preรงo do estacionamento, podem assim ser planeadas com antecedรชncia e conhecimento dos cidadรฃos, permitindo-lhes ter previsibilidade sobre o que vai acontecer e tempo suficiente para se preparar para a mudanรงa. Quando um dia os residentes eventualmente vierem a ter que pagar pelo seu lugar de estacionamento na rua, como em Amsterdรฃo e Zurique, รฉ bom que sejam avisados disso com pelo menos dois anos de antecedรชncia, dando-lhes um tempo para se ajustarem.

Esta previsibilidade e capacidade para implementar medidas impopulares pode ser conseguida com um plano de mobilidade sustentรกvel participado, que se afirme como uma referรชncia respeitada para a execuรงรฃo das mudanรงas que sรฃo necessรกrias mas politicamente difรญceis, e que tรชm que perdurar alรฉm da espuma do ciclo eleitoral.

O momento presente รฉ uma oportunidade รบnica. O facto do executivo dos New Times estar em minoria na Cรขmara, bem como a sua mensagem principal de envolvimento das pessoas, nรฃo parece deixar alternativa a que se procurem criar pactos mais vastos, e na mobilidade urbana isso รฉ uma oportunidade รบnica para construir um plano de mobilidade sustentรกvel feito com as pessoas que viabilize uma mudanรงa positiva sustentada em Lisboa. Um plano de mobilidade que nรฃo pode ser da New Times, mas de todos os partidos que quiserem ser parte do processo e da sociedade civil. Esta รฉ uma responsabilidade de todos.


Joรฃo Bernardino รฉ hรก 16 anos consultor, empreendedor e activista em mobilidade urbana. ร€ medida que vai percebendo que a mudanรงa รฉ complexa, difรญcil e de caminhos dรบbios, fica cada vez mais fascinado de como a navegar e influenciar. Ajuda a levar a bom porto desafios difรญceis e gosta de conversar sobre eles. Sempre disponรญvel para apoiar um novo utilizador de bicicleta urbano ou viajante de longo curso a encontrar o seu caminho.

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