Reflexรฃo

The aspiration wall

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Chronicle.

In the parish of Penha de Franรงa, the area of green spaces is less than one square meter per inhabitant. The Jardim do Caracol da Penha, whose works are still in progress, may come to fill this deficit. But until then, how does one breathe in this populous parish? Barely, I would say.

Fotografia de Laura Alves/Lisboa Para Pessoas

Estou neste momento na Praรงa Paiva Couceiro. Sรฃo cerca das 10 horas da manhรฃ e, enquanto escrevo estas palavras, em meu redor multiplicam-se as buzinas de um lado e do outro da praรงa, motivadas quer pelos automรณveis estacionados em segunda fila a impedir a circulaรงรฃo, quer pela impaciรชncia quando alguรฉm nรฃo arranca imediatamente no milรฉsimo de segundo apรณs o semรกforo mudar para verde. Sรฃo cerca das 10 horas da manhรฃ e toda a envolvente desta praรงa รฉ uma ode ao nervosismo e ร  taquicardia. Nada de novo ยญโ€” resido na zona hรก uma meia dรบzia de anos e รฉ assim todos os dias.

Entretanto, do ponto de onde estou, o meu olhar dirige-se para um grande e fascinante muro, completamente revestido de hera. ร‰ o muro que separa a Rua do Sol a Chelas da Rua Antรณnio Gonรงalves, naquela zona onde hรก umas dรฉcadas se erguia o bairro da Curraleira โ€” e tenho para mim que este รฉ o maior espaรงo verde da freguesia da Penha de Franรงa.

Parques urbanos mais prรณximos, onde se possa andar uns quantos metros de forma despreocupada sem esbarrar num automรณvel? Temos o Parque Urbano do Vale da Montanha, na freguesia do Areeiro, que cola ao Parque da Bela Vista, este jรก na freguesia de Marvila; temos o jardim do Campo Mรกrtires da Pรกtria, na freguesia de Arroios; e o Parque Josรฉ Gomes Ferreira (vulgo Mata de Alvalade), na freguesia de Alvalade. E depois temos uns espaรงos pequeninos mas jeitosinhos, como o Jardim Constantino (Arroios), o Jardim Fernando Pessa (Areeiro), o Jardim da Cerca da Graรงa (Sรฃo Vicente), o Miradouro do Monte Agudo (Arroios), que tem รกrvores, mas sendo uma encosta รญngreme, nรฃo รฉ possรญvel passear por entre essas mesmas รกrvores, ou a Alameda (Areeiro), se bem que esta รบltima carece de sombras, รฉ apenas um grande relvado.

O que รฉ que todos estes espaรงos verdes que acabei de enumerar tรชm em comum? Nenhum deles fica na freguesia da Penha de Franรงa. Na Penha de Franรงa temos a Parada do Alto de Sรฃo Joรฃo, que na verdade รฉ um parque de estacionamento automรณvel com uns canteiros ร  volta, e claro, o cemitรฉrio, que รฉ realmente um sossego (e um bom sรญtio para passear e falar com os nossos botรตes, vรฃo por mim).

ร‰ algo que me intriga โ€“ aliรกs, mais do que intrigar, me aflige. Hรก ruas inteiras, uma atrรกs da outra, na freguesia da Penha de Franรงa, onde nรฃo se vislumbra uma รบnica รกrvore. Nem sequer um arbusto. Um pouco ร  semelhanรงa do chamado Bairro das Colรณnias (hoje Bairro das Novas Naรงรตes), existem nesta freguesia รกreas com uma tremenda densidade populacional โ€” fruto da urbanizaรงรฃo a que toda esta รกrea em torno da Avenida Almirante Reis (antiga Avenida D. Amรฉlia) foi sujeita nas primeiras dรฉcadas do sรฉculo XX โ€” e, talvez por esquecimento, talvez por simples desvalorizaรงรฃo do โ€œverdeโ€, a zona urbana foi crescendo, crescendo, crescendo, engolindo completamente os espaรงos verdes que antes aqui existiam.

Afinal, basta irmos ร  procura nos arquivos municipais para encontrarmos os vestรญgios do que foi em tempos toda esta encosta que hoje se chama Penha de Franรงa โ€” uma vasta extensรฃo de quintas e pastagens, da qual jรก praticamente nada resta senรฃo as memรณrias fotogrรกficas. Alguns dirรฃo que o progresso รฉ mesmo assim. Mas serรก mesmo este o progresso que queremos hoje em dia?

O campo รฉ o campo, a cidade รฉ a cidade?

A migraรงรฃo das zonas rurais para a urbe no inรญcio do sรฉculo XX ditou a necessidade de mais construรงรฃo. Construรงรฃo essa que, seguindo os ditames da โ€œmodernidadeโ€, fugia ร  โ€œfalta de limpezaโ€ do campo. Ervas, arbustos, รกrvores a largar folhas, terra, lama, tudo isso fazia seguramente parte do mundo rural do qual se estava a fugir em busca de melhores condiรงรตes de vida.

E ainda que, por essa altura, tantas pessoas fizessem das actividades โ€œruraisโ€ o seu ganha-pรฃo (a venda de hortรญcolas, galinhas e patos nas praรงas da cidade era muito comum no inรญcio do sรฉculo XX), progressivamente a cidade foi sendo moldada mais pela circulaรงรฃo automรณvel do que pela criaรงรฃo de espaรงos verdes, que iam sendo cada vez menos valorizados por uma populaรงรฃo de rendimentos modestos. O tempo disponรญvel era para trabalhar, havia lรก agora vagar para o lazer? Basta ver que noutros bairros construรญdos da dรฉcada de 1940 em diante, habitados por populaรงรตes de rendimentos superiores, como รฉ o caso de Alvalade, a criaรงรฃo de espaรงos verdes e quintais foi mais valorizada. Nas freguesias urbanizadas umas dรฉcadas antes, o conforto de um pequeno apartamento com luz elรฉtrica e รกgua canalizada estaria, para muita gente, nos antรญpodas das condiรงรตes de vida miserรกveis e insalubres que haviam largado na sua aldeia natal. Entre o betรฃo e a erva, para muitos, a opรงรฃo lรณgica foi o betรฃo.

Nรฃo tenho ilusรตes romรขnticas quanto a isto, pois tambรฉm eu vivi a minha infรขncia e adolescรชncia numa aldeia. Quando se cresceu no verde, achamos que ele vai estar sempre lรก, porque faz parte de quem somos โ€“ e talvez sรณ quando รฉ tarde demais รฉ que percebemos que ele deixou de existir. E terรก sido desta forma que ninguรฉm terรก estranhado que, prรฉdio apรณs prรฉdio, rua apรณs rua, bairros inteiros tenham sido construรญdos e habitados sem que se vislumbre hoje uma รบnica รกrvore num qualquer interstรญcio, quanto mais um jardim ou um parque urbano.

Sabiam, por exemplo, que a Rua Morais Soares, essa meca dos automรณveis estacionados em segunda fila, jรก teve um separador central com รกrvores em toda a sua extensรฃo? Pois. Foram arrancadas porque o progresso queria passar. E hoje, perante as evidรชncias das alteraรงรตes climรกticas, perguntamo-nos que cidade teremos daqui a umas dรฉcadas se nรฃo contarmos com a sombra e tudo o mais que as รกrvores nos oferecerem. O que รฉ, hoje, ter melhores condiรงรตes de vida?

Quantas รกrvores vรชs da tua janela?

According to um artigo do Lisboa para Pessoas, um estudo que analisou mais de mil cidades europeias com mais de 100 mil residentes chegou ร  conclusรฃo que โ€œmais de 60 por cento da populaรงรฃo tem acesso insuficiente a espaรงos verdesโ€. Neste mesmo artigo, indica-se a recomendaรงรฃo da Organizaรงรฃo Mundial de Saรบde: deve haver um espaรงo verde de pelo menos 0,5 hectares a uma distรขncia linear de no mรกximo 300 metros de cada casa.

Oh, como seriam belas as cidades seguindo esse ideal. Contudo, a realidade รฉ outra. E a agravar a inexistรชncia desses espaรงos verdes, estรก outra questรฃo bem real, e que observo nas conversas dos vizinhos na freguesia onde moro: mais facilmente se exigem aos poderes locais silos de estacionamento automรณvel do que parques e jardins. Como li em tempos num desses grupos de vizinhos nas redes sociais, de alguรฉm que seguia precisamente esse racional, โ€œse eu quiser ir a um parque urbano com os meus filhos pego no carro e vou ร  Quinta das Conchas e ao Parque da Bela Vista. Isso sim, sรฃo espaรงos verdes…โ€

Eu diria: mas nรฃo deverรญamos almejar mais para os bairros onde moramos? Ambicionar e lutar por espaรงos verdes onde qualquer pessoa, famรญlias, crianรงas e idosos possam ir a pรฉ a qualquer momento, sem que isso represente 1) um dispรชndio econรณmico por ir de carro ou de transportes pรบblicos; e 2) sem que o usufruto desse espaรงo verde seja mais uma tarefa, uma actividade encaixada onde for possรญvel durante a semana de trabalho.

Porque รฉ que tenho de me deslocar trรชs ou quatro quilรณmetros (que numa zona rural parece pouco, mas numa cidade densamente povoada como Lisboa parece o triplo da distรขncia) para ir simplesmente passear num jardim e abstrair-me uns minutos que seja da lufa-lufa citadina, sem que isso tenha de ser programado ou encaixado na agenda? Os jardins e parques urbanos na proximidade tambรฉm servem esse nobre propรณsito que รฉ a espontaneidade, diria eu. O respirarmos e garantirmos alguma tranquilidade mental, sรณ pelo facto de os atravessarmos, mesmo sem nos apercebermos do bem que isso nos faz.

Fotografia de Laura Alves/Lisboa Para Pessoas

Jardins imaginรกrios de Lisboa

Na altura em que foi apresentado o projecto do Jardim do Caracol da Penha (vencedor do Orรงamento Participativo em 2016, e que muito tarda em estar concluรญdo…) falava-se do rรกcio entre o nรบmero de habitantes e a รกrea de espaรงos verdes que, nesta freguesia tรฃo populosa, รฉ inferior a 1 m2 de verde por habitante.

Na pรกgina do Movimento pelo Jardim do Caracol da Penha โ€” um espaรงo que, recorde-se, esteve para ser um parque de estacionamento, atรฉ a mobilizaรงรฃo pรบblica ter mudado o curso da histรณria โ€” pode ler-se que โ€œa opรงรฃo entre um parque de estacionamento e um jardim delineia a fronteira entre duas noรงรตes de espaรงo pรบblico de sinal oposto. A primeira subordina as ruas ao transporte privado e pressupรตe que os moradores desejam apenas circular o mais depressa possรญvel entre o seu trabalho e a sua casa. A segunda convida-nos a encarar cada pedaรงo da cidade como se fosse a nossa casa, fazendo das ruas um local de encontro e da sombra das รกrvores um bem preciosoโ€.

Quando este jardim estiver concluรญdo e puder, por fim, ser aberto ao pรบblico, se de facto o verde tiver sido privilegiado e for devidamente cuidado, aposto que nรฃo tardarรก muito atรฉ que uma grande parte da populaรงรฃo se pergunte, com espanto, como รฉ que ninguรฉm se tinha lembrado daquilo antes? E entรฃo, porque รฉ que nรฃo hรก mais jardins e parques nesta freguesia?

Nรฃo รฉ que na Penha de Franรงa nรฃo exista espaรงo para haver ainda mais espaรงos verdes. Afinal, a grande extensรฃo do Alto da Eira e do Vale Escuro, entre a Avenida General Roรงadas e a Avenida Mouzinho de Albuquerque, estรก ali para quem a quiser ver com bons olhos. ร‰ aรญ, precisamente, que reside um dos รบltimos vestรญgios daquilo que foi esta parte da cidade โ€” quintas e pastagens onde vivia gente como se vivera no campo.

Enquanto ninguรฉm vรช realmente essa zona como ela poderia ser, um grande parque, sem muitas invenรงรตes ou devaneios urbanรญsticos, com muito verde e uma vista esplรชndida sobre o rio (sei que hรก projectos da Cรขmara Municipal de Lisboa, que implicam tambรฉm urbanizar uma parte daquela รกrea, mas desconheรงo em que fase se encontra o processo), resta-me olhar para esta parede de hera, fazer dela nรฃo um muro das lamentaรงรตes, mas um muro de aspiraรงรตes.

E, enquanto na minha mente ecoa uma mรบsica dos Talking Heads (โ€œThis used to be real estate / Now it’s only fields and trees / Where, where is the town / Now, it’s nothing but flowersโ€), agradeรงo a quem um dia terรก plantado a primeira haste daquela hera, e vou virando a cabeรงa para imaginar que, em vez de um muro, estou perante um grande caminho verde e folhoso, sem tubos de escape nem buzinas nervosas, em direcรงรฃo a uma cidade cada vez mais para as pessoas.

ร‰ que este muro de hera ainda รฉ, pasme-se, o maior espaรงo verde de que se pode usufruir na freguesia da Penha de Franรงa.


Laura Alves is co-author of the book The Glorious Bicycle and the documentary project Maria Bicycle. Write according to the latest Orthographic Agreement.

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