Reflexรฃo

The city of the future is made up of people, not cars

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Opinion.

Estamos habituadas a pensar as ruas como infraestrutura de deslocaรงรฃo, mas as ruas sรฃo muito mais do que isso. Com menos carros, as ruas passam a ser para nos deslocarmos, para passearmos, para nos encontrarmos, para comermos, para as crianรงas brincarem, para namorar, para nos manifestarmos.

Repuxo na nova praรงa de Sete Rios (fotografia LPP)

E entรฃo, como รฉ a cidade do futuro?

Se experimentares procurar as cidades do futuro na internet vais ver que tรชm estradas e carros, atรฉ tรชm arranha-cรฉus verdes, mas nรฃo tรชm pessoas. O mesmo se passa na publicidade. Hรก um contraste desconcertante entre os anรบncios de automรณveis e andar de automรณvel na cidade. Nos anรบncios, os carros sรฃo liberdade, sรฃo independรชncia, nรฃo hรก ninguรฉm nas estradas, aquela estrada foi feita para ti, รฉ nova a estrear. Estradas vazias parecem ser sinรณnimo de liberdade. Na vida real o trรขnsito nรฃo pรกra de piorar e parece que hรก cada vez mais carros. Parece? Nรฃo, hรก mesmo. Em apenas trรชs anos passou a haver mais 450 mil carros em Portugal, e Lisboa tornou-se a segunda cidade europeia onde conduzir รฉ mais stressante. 

Mas, sejamos honestos, nรฃo รฉ sรณ em Portugal. Por todo o lado hรก cada vez mais carros e os carros ocupam cada vez mais espaรงo nas nossas cidades. O que nรฃo tem nenhum sentido, porque estรฃo estacionados 92% do tempo e ocupam mais de 50% do espaรงo pรบblico das cidades. Mais ainda, os carros sรฃo a principal causa de morte de crianรงas e jovens,  representam quase um terรงo do total das emissรตes de gases de efeito estufa, e quase a totalidade das emissรตes dos transportes. 

Apesar de tudo isto, nos รบltimos 70 anos sempre nos disseram que o carro era a soluรงรฃo e, quando havia trรขnsito, a resposta era sempre: sem stress, abrimos mais uma faixa. Sรณ mais uma faixa de rodagem. Mentiram-nos. A mentira foi tรฃo profunda que nem os jogos de computador escaparam: no SimCity nรฃo hรก parques de estacionamento. Porque se houvesse, as cidades no computador nรฃo funcionavam, como nรฃo funcionam as do mundo real.

Agora, imagina que mudรกvamos a mobilidade toda da cidade. Imagina que as deslocaรงรตes passavam a ser principalmente de transportes pรบblicos, bicicleta e a pรฉ, guardando os automรณveis para funรงรตes que nรฃo podem ser feitas de outra maneiraโ€ฆ isso queria dizer que poderรญamos recuperar uma fatia enorme do espaรงo pรบblico. Ou seja, podรญamos desenhar uma outra cidade, uma cidade do futuro.

Estamos habituadas a pensar as ruas como infraestrutura de deslocaรงรฃo, mas as ruas sรฃo muito mais do que isso. Com menos carros, as ruas passam a ser para nos deslocarmos, para passearmos, para nos encontrarmos, para comermos, para as crianรงas brincarem, para namorar, para nos manifestarmos. Em vez de serem espaรงos de afastamento, podem ser espaรงos de proximidade, de aproximaรงรฃo, onde as pessoas ganham espaรงo. Onde os vizinhos e vizinhas se encontram nos novos parques infantis, onde nos protegemos do calor das alteraรงรตes climรกticas nos novos jardins, onde ganhamos permeabilidade retirando o alcatrรฃo para nos protegermos das cheias, onde voltamos ao comรฉrcio de proximidade. Salvador Rueda, o inventor dos super quarteirรตes de Barcelona, fez as contas: com menos 15% de carros, conseguimos ter mais 70% de espaรงo pรบblico na cidade. 

Compreendendo tudo isto, precisamos de criar um mapa das nรฃo estradas, um mapa para guiar a mobilidade eliminando a dependรชncia desse artefato tรฃo recente e hegemรณnico: o carro. O primeiro passo para desenhar um mapa รฉ ter um plano, saber o que queremos. E o que queremos รฉ deixar de nos preocupar com a mobilidade dos carros e comeรงar a pensar em como podemos dar mobilidade ร s pessoas. Mudar a cรฉlula de anรกlise muda a nossa anรกlise por completo: queremos mover pessoas e nรฃo carros.

Depois, temos de criar uma mobilidade que responda a mais gente e nรฃo a uma minoria, como fazem os carros. No transportes pรบblicos viajam crianรงas, pessoas idosas, mais mulheres, pessoas que vivem do seu trabalho; nos carros tambรฉm, mas a proporรงรฃo de homens de classe mรฉdia, e acima, รฉ dominante. Porque haverรฃo deles de ficar com mais de metade do espaรงo pรบblico? Mover pessoas รฉ tambรฉm uma polรญtica de reduรงรฃo das desigualdades sociais e territoriais. 

E se temos uma polรญtica para as 99%, entรฃo temos de garantir que participam na sua construรงรฃo. Sรณ a participaรงรฃo de todas as pessoas nos processos de planeamento e gestรฃo do sistema de transportes garante um sistema vivo.

O mapa deve ainda tratar da velocidade, porque a velocidade abranda a cidade e mata, principalmente crianรงas. Precisamos de medidas fรญsicas de acalmia de trรขnsito e de zonas sem carros perto das escolas e hospitais. Ao invรฉs temos de criar maneiras de andar a pรฉ em seguranรงa, dando prioridade a esse modo de mobilidade, com passeios amplos, com รกrvores, com passadeiras seguras. A velocidade de atravessamento de uma passadeira tem de ser ditada pelas pessoas idosas e nunca pela velocidade de um carro. 

O mesmo se passa com a mobilidade em bicicleta. Precisamos de redes radicais para as bicicletas, que cheguem ร s escolas e serviรงos pรบblicos e sistemas de bicicletas partilhadas que funcionem. Para muitas pessoas รฉ mais rรกpido e fรกcil, se for seguro.

E nรฃo vale a pena ter sรณ cenouras, รฉ preciso desincentivar as deslocaรงรตes por automรณvel, reduzindo o nรบmero de lugares de estacionamento, dedicando os que hรก a residentes, tarifando o estacionamento ร  superfรญcie e criando zonas de emissรตes reduzidas e tarifas ร  entrada das cidades. Sรณ o podemos fazer com bons transportes pรบblicos? Sim, claro. Vamos a isso.

Com o custo social e ambiental da cidade feita para carros e com uma promessa tรฃo grande quando reduzimos a nossa dependรชncia do automรณvel, รฉ obrigatรณrio comeรงarmos esse caminho de retirar carros para ganhar espaรงo para estarmos juntas, usando o espaรงo pรบblico como lugar nรฃo sรณ de mobilidade, mas tambรฉm de encontro, de comรฉrcio, de saรบde, de defesa dos ecossistemas.

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