O Tribunal Constitucional rejeitou a proposta de referendo sobre o Alojamento Local em Lisboa, uma iniciativa popular que visava pรดr fim a esta actividade comercial em imรณveis destinados a habitaรงรฃo. O tribunal apontou trรชs falhas processuais e considerou que as perguntas do referendo seriam ilegais.

Era o รบltimo passo necessรกrio para a realizaรงรฃo do primeiro referendo local de iniciativa popular em Lisboa. Depois do sim da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), conseguido com uma votaรงรฃo favorรกvel ร esquerda, bastava o Tribunal Constitucional (TC) dar tambรฉm o seu OK. Mas a decisรฃo foi outra.
โDecide-se nรฃo dar por verificada a legalidade do referendo local, por iniciativa popular, cuja realizaรงรฃo foi deliberada pela Assembleia Municipal de Lisboa, na sua sessรฃo de 3 de Dezembro de 2024โ, pode ler-se naquele que รฉ o primeiro acรณrdรฃo do Tribunal Constitucional deste ano. O documento pode ser consultado aqui and the comunicado do colectivo de juรญzes sobre a decisรฃo aqui.
Em causa, estรก a proposta de um referendo em Lisboa sobre Alojamento Local. Uma iniciativa popular, organizada atravรฉs do Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo (MRH), recolheu milhares de assinaturas de cidadรฃos โ incluindo assinaturas a mais para cobrir eventuais invalidaรงรตes โ no sentido de colocar a cidade de Lisboa a duas questรตes: a primeira sobre se โconcorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Cรขmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imรณveis destinados a habitaรงรฃoโ; a segunda sobre se โconcorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imรณveis destinados a habitaรงรฃoโ.
Trรชs argumentos formais
O Tribunal Constitucional justifica o chumbo com trรชs argumentos relacionados com o incumprimento de formalidades no processo:
- nรฃo foi cumprido o nรบmero mรญnimo de assinaturas. Um referendo local de iniciativa local em Lisboa exige 5 mil assinaturas. Apesar de terem sido entregues 6 528 assinaturas, apenas 4 863 cumpriam todos os requisitos, como nรฃo estarem em duplicado ou tratarem-se de assinaturas de cidadรฃos recenseados no concelho de Lisboa. Face a esse situaรงรฃo, foi entregue ร AML um segundo lote de assinaturas, com mais 612 cidadรฃos eleitores recenseados no municรญpio de Lisboa, que seguiram para o TC sem verificaรงรฃo prรฉvia. O TC entendeu que o โum dos requisitos fundamentais da iniciativa popular referendรกria โ a subscriรงรฃo da proposta por 5000 eleitores recenseados no municรญpio de Lisboaโ nรฃo foi preenchido. Para o colectivo de juรญzes, a recolha do nรบmero mรญnimo de assinaturas exigido e a sua verificaรงรฃo, para afastar eventuais irregularidades, รฉ โuma formalidade essencial, cuja inobservรขncia compromete a prรณpria existรชncia de uma iniciativa popular vรกlida, dando origem a uma ilegalidade relevanteโ, acrescentando que, o segundo lote de assinaturas, deveria ter sido verificado porque โem abstrato, nรฃo se pode descartar, ร semelhanรงa do que aconteceu com o primeiro lote de assinaturas, a existรชncia de irregularidades, designadamente quanto ร duplicaรงรฃo de assinaturasโ, um trabalho da responsabilidade da Assembleia Municipal. O TC รฉ claro: โantes de suprido o vรญcio pela apresentaรงรฃo de novas assinaturas e do seu controlo, nรฃo estaria a Assembleia Municipal de Lisboa autorizada a proceder ร conversรฃo da iniciativa popular em deliberaรงรฃoโ;
- nรฃo foram identificados os mandatรกrios do processo referendรกrio. โA figura dos mandatรกrios รฉ extremamente relevante, sobretudo porque lhes cabe designar a comissรฃo executiva, enquanto representante dos subscritores. ร ร comissรฃo executiva que compete, em caso de decisรฃo negativa do Tribunal Constitucional, apresentar uma proposta de reformulaรงรฃo da deliberaรงรฃoโ, pode ler-se no acรณrdรฃo. โOra, no caso em apreรงo, nรฃo consta das folhas de assinaturas qualquer referรชncia ร identificaรงรฃo dos mandatรกrios, pelo que nรฃo รฉ possรญvel determinar que a vontade de cada subscritor foi a de ser representado pelos mandatรกrios indicados na iniciativa referendรกriaโ, pode ler-se ainda;
- nรฃo houve um parecer vinculativo por parte do Presidente da Cรขmara de Lisboa, Carlos Moedas. O TC indica que, ร luz do actual regime jurรญdico, โcompete ao Presidente da Cรขmara Municipal determinar o cancelamento do registo do estabelecimento do alojamento local nas condiรงรตes previstas na leiโ. Ora, como โa primeira pergunta do referendo diz respeito, precisamente, ao cancelamento dos registos, acto que, de acordo com aquele preceito legal, รฉ da competรชncia do Presidente da Cรขmaraโ, o Constitucional entende que deveria ter sido pedido um parecer a Moedas. Mas, escrevem, โa Assembleia Municipal nรฃo solicitouโ esse parecer.
โSรณ por si, estes vรญcios obstariam ao sucesso da iniciativa, mas, ainda assim, proceder-se-รก a uma anรกlise no que toca ao plano substantivoโ, escreve o TC.
Perguntas ilegais
Mas os juรญzes avanรงam com outra justificaรงรฃo: referem que as duas perguntas propostas para referendar โsรฃo inequivocamente desconformes com o quadro legalโ. Para o Constitucional, o Regulamento Municipal de Alojamento LocaL (RMAL) de Lisboa nรฃo pode proibir unidades de Alojamento Local em imรณveis destinados a habitaรงรฃo, como sugere a primeira pergunta da proposta de referendo, โnem por via da definiรงรฃo de โutilizaรงรฃo vรกlidaโ do imรณvel nem pelo estabelecimento de zonas de contenรงรฃo e de crescimento sustentรกvelโ.
Por um lado, fazendo a leitura do Regime Jurรญdico da Exploraรงรฃo Dos Estabelecimentos de Alojamento Local (RJEEAL), que estabelece as regras a nรญvel nacional, os juรญzes entendem que โa remissรฃo para regulamento municipal relativa a โutilizaรงรตes vรกlidas e compatรญveis com alojamento localโ nรฃo concede aos municรญpios competรชncia para proibir, nos termos pretendidos, โalojamentos locais em imรณveis destinados a habitaรงรฃoโโ. Por outro, apontam que, โmesmo nestas รกreas de contenรงรฃo e de crescimento sustentรกvel, nรฃo hรก uma proibiรงรฃo total de novos registos de estabelecimentos de alojamento local em imรณveis destinados a habitaรงรฃo, como pretendem os proponentes da iniciativaโ.
O Constitucional considera ainda que o referendo pretende levar a alteraรงรตes ilegais no regulamento municipal de Lisboa, uma vez que poria em causa o RJEEAL. No acรณrdรฃo pode ler-se que โa admitirem-se as alteraรงรตes ao Regulamento a que se pretende abrir caminho por via de procedimento referendรกrio local, estarรญamos perante um regulamento ilegal. Isto sem prejuรญzo de se poder discutir a prรณpria desconformidade em termos constitucionais, incluindo de um ponto de vista material ou substantivo, da soluรงรฃo de exclusรฃo total de alojamento local em imรณveis destinados a habitaรงรฃo, tรณpico sobre o qual, por desnecessรกrio neste contexto, nรฃo se versarรกโ.
Em conclusรฃo, o TC afirmou que existe โum vรญcio insanรกvel da deliberaรงรฃo de referendo, o que impede definitivamente a sua realizaรงรฃo, tornando-se desnecessรกrio proceder ร apreciaรงรฃo de outras questรตesโ.
A decisรฃo do Constitucional contou com o voto favorรกvel de todos os juรญzes. No entanto, parte da fundamentaรงรฃo do acรณrdรฃo foi contestada por dois conselheiros, Mariana Canotilho e Afonso Patrรฃo, que apresentaram declaraรงรตes de voto. Ambos dizem que nรฃo cabe ao TC encontrar irregularidades no processo administrativo havendo uma deliberaรงรฃo da Assembleia Municipal. Concordam apenas com a fundamentaรงรฃo apresentada no plano substantivo.
Afonso Patrรฃo deixa isso escrito de forma muito clara: โEm meu juรญzo, a ilegalidade do referendo reside na formulaรงรฃo das perguntas, que induzem nos eleitores a ideia de que o regulamento municipal pode proibir todos os registos de alojamento local em prรฉdios destinados a habitaรงรฃo, quando nem todos podem ser limitados pelo municรญpio.โ Jรก Mariana Canotilho diz mesmo: โainda que se admitisse o escrutรญnio de tais elementos formais, com a intensidade com que a presente decisรฃo o faz, nรฃo creio que o efeito necessรกrio das irregularidades verificadas seja a nulidade da deliberaรงรฃo de realizaรงรฃo do referendoโ.
Now what?
A proposta de referendo tinha sido aprovada a 3 de Dezembro na Assembleia Municipal de Lisboa (AML) com os votos favorรกveis do PS, BE, Livre, PAN, PEV e dos deputados Daniela Serralha e Miguel Graรงa, do CPL. O PCP e o MPT abstiveram-se. O PSD, CDS, Iniciativa Liberal, Chega, PPM, Alianรงa e a deputada nรฃo inscrita Margarida Penedo votaram contra.
Com o referendo aprovado na (AML, a Presidente deste รณrgรฃo, Rosรกrio Farmhouse (PS), submeteu um pedido ao Tribunal Constitucional para a validaรงรฃo final de toda a legalidade do processo, com o envio da deliberaรงรฃo quanto ร realizaรงรฃo do referendo local e as listas de assinaturas dos cidadรฃos subscritores, que acabaram por incluir os jรก referidos dois lotes.
O acรณrdรฃo do TC foi publicado nesta sexta-feira do ano. O Movimento Referendo Pela Habitaรงรฃo (MRH) poderรก recorrer da decisรฃo. Por agora, em comunicado, diz apenas estar โa analisar melhor a decisรฃo do TCโ e promete: โnรฃo baixaremos os braรงos! A luta continuarรก!โ. โSempre estivemos cientes da dificuldade desta luta, mas quisemos testar a capacidade do sistema para admitir uma proposta de referendo local por iniciativa popular, que seria a primeira em 50 anos de democracia. Nรฃo nos foi permitidoโ, acrescentam, lanรงando um apelo: โPrecisamos de todas as cabeรงas e todas as mรฃos para recuperar Lisboa. Novidades muito em breve!โ
Moedas considera uma “derrota para a esquerda radical”
Numa nota escrita enviada ร agรชncia Lusa, o Presidente da Cรขmara de Lisboa disse que a decisรฃo do TC de inviabilizar a realizaรงรฃo deste referendo local “รฉ uma grande derrota para a esquerda radical apoiada pelo PS”, referindo que o actual Executivo tem feito uma regulaรงรฃo do AL “com moderaรงรฃo e de forma equilibrada, que protege os lisboetas”.
Carlos Moedas diz que รฉ uma derrota para “os mesmos que expulsaram lisboetas da cidade nos รบltimos 14 anos”. “Sรฃo os que agora criticam o actual Executivo por estar a regular o mercado, com regras claras, protegendo zonas da cidade que jรก nรฃo precisam de mais AL, mas dando liberdade e oportunidades para que outras zonas e mais famรญlias possam crescer e viver tambรฉm deste negรณcio”, declarou o autarca, indicando que o AL “passou de 500 unidades em 2011 para 18 mil em 2018” e que foram canceladas 250 licenรงas nos รบltimos trรชs anos.
Ao contrรกrio da รบltima decisรฃo de suspender novas licenรงas de AL, em Outubro de 2024, apresentada pelo PS e aprovada por unanimidade na Cรขmara de Lisboa, a lideranรงa PSD/CDS da Cรขmara de Lisboa sempre votou contra as propostas da oposiรงรฃo para suspender novos registos nas freguesias mais afectadas.
A proposta aprovada pela Cรขmara em Outubro mantรฉm suspenso o registo de novas unidades de AL em toda a cidade, isto porque actualmente estรฃo registadas mais de 19 mil unidades, cerca de 7,5% do total das casas da cidade. Segundo a decisรฃo, enquanto o rรกcio entre alojamentos familiares clรกssicos e alojamentos locais nรฃo descer abaixo de 5% em todo o municรญpio โ ou atรฉ ร entrada em vigor do novo regulamento โ , esta suspensรฃo vai manter-se em vigor. Ou seja, toda a cidade de Lisboa vai manter-se numa zona de contenรงรฃo, de acordo com a medida aprovada.
Ao nรญvel das freguesias, estรก previsto que estes territรณrios sejam considerados zonas de contenรงรฃo se o rรกcio referido for igual ou superior a 2,5%. Actualmente, este รฉ o caso de 20 das 24 freguesias da cidade.ย Sรณ Carnide, Lumiar, Santa Clara e Benfica apresentam um rรกcio entre casas familiares e casas ocupadas com negรณcios de AL inferior a 2,5%, mas como a situaรงรฃo ao nรญvel municipal supera os 5% estipulados tambรฉm nestas freguesias nรฃo podem ser criados ALs.