Cais do Ginjal encerrado: entre os despejos, a precariedade e a incerteza

No final da semana passada, a Câmara de Almada interditou parte do Cais do Ginjal por considerar que há um risco de segurança. Cerca de 50 moradores – vários a residir em barracas – foram retirados, apesar de alguma resistência inicial. A autarquia criou um alojamento temporário para todos eles numa escola, entretanto encerrado. O Ginjal espera há décadas por obras de requalificação. Para já, está a ser preparada uma intervenção de menor escala para voltar a permitir a circulação pedonal em todo o cais.

Neida vivia no Ginjal numa habitação auto-construída (fotografia LPP)

“Já chamei as televisões”, atira Sara em voz alta, inquieta com toda a situação. Não vive no Cais do Ginjal, mas o filho de oito vai passando tempo em casa do pai, Paulo, no número 46 da Rua do Ginjal. Naquela manhã de 10 de Abril, uma quinta-feira, Paulo iria desalojado pela Polícia Marítima e pela Câmara de Almada. O motivo: o um troço do Cais do Ginjal vai encerrar temporariamente mas é necessário desocupar os edifícios devolutos a título definitivo. A autarquia alega que o local já não é seguro e pede ao Porto de Lisboa uma solução.

“Já estou há 30 anos aqui. O meu pai já estava aqui primeiro do que eu, o meu avô e a minha avó também, entende? Dizem que isso tem dono, mas os donos nunca vieram reclamar o espaço deles. Nunca vieram pedir renda”, afirma Paulo, que agora vive com um primo e uma tia por detrás de uma das fachadas em ruína do Ginjal. “A minha morada fiscal é esta: Cais do Ginjal, 46”, garante. É aqui que recebe o correio. Tem água, luz e saneamento. “Vivo aqui há 30 anos já, não estou clandestino”, reafirma Paulo, que faz alpinismo de profissão e, nos tempos de lazer, pescador. “Vou para onde agora?”

O encerramento do Ginjal

O Cais do Ginjal está em risco de derrocada (fotografia LPP)

A Câmara de Almada anunciou a 3 de Abril o encerramento do Cais do Ginjal. Para tal, decretou Situação de Alerta, nos termos da Lei de Bases da Protecção Civil. Nesse dia, colocou gradeamentos com vista a interditar a circulação de pessoas no Cais do Ginjal, desde as proximidades do terminal fluvial de Cacilhas até aos estabelecimentos de restauração existentes no Olho de Boi. A Situação de Alerta vigora até ao próximo dia 1 de Maio, podendo ser renovada por mais tempo (é expectável que isso aconteça).

Mapa da zona interditada e do percurso pedonal alternativo (via CMA)

“O acelerar da degradação do Cais do Ginjal nos últimos tempos, potenciado pelos vários eventos meteorológicos e fenómenos naturais que se têm vivenciado, determina o encerramento da circulação naquele espaço, tendo em vista o restabelecimento das condições que possibilitem a sua utilização em plena segurança”, indicava a autarquia no comunicado emitido no dia 3. A Câmara anunciava a intenção de “encetar todos os esforços no sentido de ser reposta a normal circulação, com a maior brevidade possível”.

Anunciava também a realização de obras de requalificação da escadaria junto ao Elevador da Boca do Vento, bem como o assinalar os meios alternativos de acesso aos espaços que não ficarão condicionados, nomeadamente os restaurantes no Olho do Boi e o Jardim do Ginjal. No mesmo comunicado, a Câmara de Almada diz ter notificado os proprietários do edificado ribeirinho do Ginjal – que são privados –, bem como a Administração do Porto de Lisboa (APL), sob a qual recai a responsabilidade do espaço público do cais; e que apresentou ao Governo uma “proposta concreta” para se chegar “uma solução que possibilite a reabilitação daquele espaço”.

Nas várias portas que se abrem para o Tejo, a Câmara de Almada afixou editais a dar conta do encerramento do cais. O aviso falava também de uma Zona de Concentração de Apoio à População (ZCAP) que estava a ser criada na Escola Secundária de Anselmo de Andrade, aproveitando as duas semanas de férias de Páscoa, para albergar a meia centena de moradores do Ginjal. A população do Ginjal recebeu visitas de diferentes serviços municipais, incluindo da Protecção Civil e da área social, para dar o apoio necessário. 

A resistência

Paulo é um dos moradores do Ginjal (fotografia LPP)

Dos cerca de 50 residentes do Ginjal, alguns saíram voluntariamente e aceitaram a solução temporária proposta pela Câmara; outros optaram por ficar. Foi o caso de Paulo. “Na minha opinião o perigo é para o público. Se vivemos aqui há tanto tempo, acho que não havia justificação para nos tirarem daqui. Fechavam os portões e os moradores ficavam com uma chave. Nós passávamos e o público nunca tinha acesso à muralha do Ginjal”, sugeria. Esta proposta era partilhada por outros vizinhos e pela associação Vida Justa, que se mobilizou para apoiar os moradores, artistas e pescadores do Ginjal, como tem feito noutras situações de despejo.

Para a Vida Justa, o problema não está na solução temporária oferecida pela Câmara mas na existência de uma resposta para as pessoas do Ginjal após as duas semanas de férias da Páscoa. “O que o Município não declara, de forma transparente, é o que vai acontecer aos habitantes relativamente a condições de realojamento a longo prazo”, diz a Vida Justa num comunicado sobre a situação. “Os moradores do Ginjal estão em risco de ser brutalmente retirados da sua rotina, sendo obrigados a faltar ao trabalho ou à escola, acumulando problemas pelos quais serão depois penalizadas.”

“Ficámos lá apenas 10 dias. Acha que, em 10 dias, vão resolver a nossa situação e encontrar uma casa para nós? Acha que é em 10 dias que vão arranjar casa para a gente?”, contesta Paulo, pouco esperançoso. “A Câmara não prometeu nada porque passa para o Porto de Lisboa, o Porto passa para a Polícia Marítima. E andam a arrastar uns para os outros”, regrets.

A casa de Paulo e da família no número 46 (fotografia LPP)

Sara segurava uma pasta com um conjunto de papéis – cópias de e-mails e de outros documentos – para mostrar aos técnicos da Câmara de Almada e à Polícia Marítima, que naquele 10 de Abril estavam no Ginjal para colocar fora as 30 pessoas que resistiram a ficar. “Eu limpo a porcaria deles”, diz Sara, funcionária de limpeza da Marinha, apontando para uma embarcação da Polícia Marítima que navegava ao largo do Ginjal. “Tenho um advogado a tratar disto. Estão aqui os papéis todos e tenho testemunhas para provar que vivo aqui há 30 anos”, diz Paulo, acompanhando de alguns amigos, que se juntaram naquela manhã para dar o apoio necessário.

“Há uns anos atrás deram isso ao meu pai para tomar conta. E assim ficou. O dono morreu”, explica Paulo. “Quando chove não consigo estar com o meu filho, estamos um bocadinho e depois ele vai à sua vida”, conta. A mãe confirma: “O meu filho só não dorme aqui. Mas faz a vida toda dele aqui, só quando chove é que não vem porque ele não tem condições para estar com o filho”, explica Sara, que tem uma habitação própria para si e para o filho de oito. De, pasta na mão está determinada a salvaguardar a permanência de Paulo e da família no Cais do Ginjal. “Eu já chamei a televisão”, repete. “Daqui desta barraca, trato eu. Eu resolvo o problema”, diz determinada.

O anúncio do encerramento do Cais do Ginjal atinge os seus 50 moradores, mas também pescadores e artistas que, nos últimos anos, têm feito deste local a sua casa profissional e, em alguns casos, residencial também. Se a restauração do Ginjal não é afectada, o mesmo não se pode dizer do espaço Gira Ginjal, onde funcionam residências e ateliês de artistas, ou do armazém que alberga uma série de pescadores. Já vamos às suas histórias, mas importa esta nota agora para realçar que no Ginjal convivem diferentes realidades e que todas elas estão a ser afectadas por esta situação.

Ao longo do cais, há uma fileira de fachadas de antigos espaços industriais e comerciais, devolutos há muito tempo. É a chamada “muralha do Ginjal”, como é conhecida popularmente. Algumas dessas fachadas dão acesso a armazéns parcialmente intactos que foram transformados em espaços de trabalho; outras são apenas fachadas e, do lado de lá, não há nada além de habitações auto-construídas, vulgo barracas, que assinalam a crise habitacional que atinge a área metropolitana de Lisboa (e não só). Uma realidade que está escondida dos olhares dos turistas que diariamente visitam o Ginjal, que pela vista privilegiada sob Lisboa, o Tejo e a Ponte 25 de Abril se tornou um dos locais mais procurados da área metropolitana.

As barracas fora dos olhares

Atrás das ruínas do Ginjal, escondem-se habitações auto-construídas (fotografia LPP)

Ao lado da casa de Paulo e da sua família, também uma habitação auto-construída, uma porta entreaberta deixa adivinhar movimento. Neida, cabo-verdiana de 37 anos, está à entrada. Depois de lhe explicarmos que não somos da polícia nem da Câmara, convida-nos a entrar. Está em Portugal há menos de um ano, a viver no Ginjal. Sem trabalho e sem capacidade de pagar uma renda, restou-lhe construir uma casa. Diz que deu “5 mil euros” pela construção de uma “barraca” de tijolo e cimento; está agora a pagar essa dívida. Diz que foram “amigos e vizinhos” a ajudar na construção. 

A barraca onde Neida vive tem um frigorífico, uma mesa para comer, um colchão e pouco mais. Tem electricidade e a água vai buscar com cantis a chafarizes públicos ou onde houver. O lixo ou é deitado ali ou acumulado para ser deixado num contentor próximo. Ao lado da sua porta, há mais duas ou três idênticas: é um pequeno edifício nas traseiras do Ginjal. “Tenho três filhos, dois filhos menores e um com 19 anos. Estão na escola”, conta, explicando que, sem trabalho, não tem possibilidade de pagar uma renda.

É com o telemóvel e a ajuda da internet que Neida vai tentando encontrar trabalho – diz que não tem tido sorte. Curiosamente, naquele dia, recebeu uma chamada para fazer limpezas na zona do Pragal. A notícia trouxe-lhe algum alívio, mas Neida ainda não quer festejar: só no dia seguinte saberá se a proposta se concretiza e, mesmo que sim, trata-se apenas de algo temporário. Maria Isabel, 45 anos, também cabo-verdiana, despacha-se a pedir o contacto à vizinha Neida. Está há três anos em Portugal e há um no Ginjal – dividia casa com a mãe mas incompatibilidades familiares empurraram-na para fora desse lar. Tem trabalhado mas são sempre situações temporárias e pontuais, que não lhe dão estabilidade para arrendar uma casa para si. A solução foi construir uma habitação no Ginjal. Soube do local por intermédio de algum conhecido e foi também com ajuda que construiu a sua barraca.

A casa de Maria Isabel é mais precária que a de Neida. Não tem tijolo nem cimento, sendo feita de alumínio e contraplacado velho. Há paus a segurar um dos cantos da barraca. Maria diz que chove lá dentro. “Ninguém quer morar assim. Quem quer? Ninguém quer”, diz Maria, que trabalha nas limpezas cobrindo horas e férias de outros. “Nunca tive trabalho certo. Quem vai alugar uma casa assim, nestas condições a alguém?”, refere com tristeza.

O caminho para as habitações auto-construídas de Neida e Maria Isabel é feito pelo meio de mato – quando chove, é lama; à noite, não há luz. Pelo terreno, vemos mais uma série de barracas que as pessoas foram erguendo como conseguiam. Umas são construções mais precárias que outras.

“A ideia é a sobrevivência”

No Ginjal encontrámos vários cães (fotografia LPP)

Neida e Maria Isabel estão há pouquíssimo tempo no Ginjal; história diferente têm Paulo, como já vimos, e também Abel, de 22 anos. Vive com o pai numa casa que atravessou três gerações, também auto-construída. “Passou pelo meu avô, pelo meu pai, e agora vivo eu e o meu pai”he says. “Isto estava tudo desocupado. Havia aqui um senhor que morava nesta casa, que esta é a casa mais antiga. Isso aí há uns 30 anos. Ele arranjou este espaço ao meu avô, entendes?” Abel diz que “a Câmara sabe” onde ele e o pai está a viver. “Sabe os nossos nomes, tem os nossos documentos. A nossa morada está aqui. Se não pudéssemos estar aqui, porque é que que nos deixaram ficar nestes 20, 30 anos?”, argumenta o jovem. “Construímos tudo. Os nossos quartos, tudo. Nós criamos as nossas próprias condições, entendes o que eu estou a dizer?” 

“E eles” – ou seja, os residentes mais recentes do Ginjal – “construíram as coisas deles, com as próprias mãos. Porque a ideia é a sobrevivência, mano”, refere Abel, para quem a chegada de novos moradores não é uma questão. “Estão ali, não estão a incomodar ninguém. Ninguém passa ali, só eles.” A mesma leitura não têm Paulo e alguns amigos, para quem as novas barracas podem ter empurrado a autarquia a agir.

Abel alega que têm recebido da autarquia pouca informação e informação confusa. “Cada dia é uma razão diferente. Primeiro foi porque havia buraco – e é um facto que há um grande buraco ali, enorme, há um ano e tal –, depois disseram-me que as rochas aqui em cima estão em perigo de derrocada por causa da chuva e do mau tempo, e que podem cair a qualquer momento”, afirma. “Mas eu acho que a razão para quererem tirar-nos daqui é para fazerem algo novo.” O que, para Abel, “está certo”, mas é precisa clareza. “Chegam aqui e é para sair. Ficamos na escola duas semanas, mas e depois? Como vão ser as nossas vidas? A única coisa que nos disseram é: logo se vê como vai ser. Há falta de informação. Está a ser mal feito.”

“Era justo haver tempo para sairmos daqui e termos as coisas todas tratadas. Há pessoas que estão aqui a viver e que não têm documentos. Se saírem daqui, vão para uma escola, e se forem para a rua, não têm como… Vai ser mais difícil para terem documentos, trabalho…”, explica o jovem.

Enquanto conversamos com os moradores do Ginjal, o movimento mediático vai crescendo naquela manhã de 10 de abril. Jornalistas da RTP, SIC, Lusa e SAPO 24 vão chegando ao local, onde já estão vários oficiais da Polícia Marítima e técnicos da Câmara de Almada. No entanto, os despejos anunciados para esse momento ainda não começaram. A Polícia mantém-se presente, atenta mas em compasso de espera; e os técnicos municipais parecem focados sobretudo no bem-estar dos animais de companhia dos residentes. A sensação é de que queriam ganhar tempo – pareciam estar à espera de que, perante a ausência de acção, os jornalistas se afastassem, permitindo que as pessoas pudessem ser retiradas longe das objectivas.

O despejo inevitável

Nuno e a o seu cão (fotografia LPP)

“O meu nome é Nuno Miguel e estou disponível para dar entrevista”, ouve-se de rompante. Um homem de blazer por cima de uma t-shirt, com barba aparada e o seu cão, Bart, passa pela multidão, e pelas câmaras de televisão. “Se não querem entrevista, peço à concorrência”, completa. Confiante, Nuno avança até à porta a seguir à de Nuno. Será a número 47, a sua. Fomos ao seu encontro. “Esta é a minha casa. Não é só de agora. Já é a minha casa desde 2019”tells us. “Estou registado e a casa também”, acrescenta para afastar qualquer dúvida. “Portanto, eu não estou aqui às escuras. Sempre tive o cuidado de regularizar a minha situação. “Sou da zona, cresci aqui na zona.”

Nuno abre a porta aos técnicos da Câmara antes de falar connosco – querem saber sobre do seu cão. Depois coloca uma cadeira à porta e acende um cigarro. Lá dentro vemos várias garrafas de vidro vazias amontoadas num pequeno corredor. “Eu não ocupei casa nenhuma. Isto estava tudo destruído, estava abandonado, cheio de lixo, cheio de contaminação. Isto era um antro de droga aqui. E eu é que limpei isto tudo”, assegura. Ou seja, era entre ficar na rua e ficar entre paredes. Não vive sozinho, mas com “adolescentes, jovens adultos que estão na rua”, a quem – diz – decidiu dar abrigo “para não andarem na rua” e “se endireitaram”. “Depois de se endireitarem, tem que seguir o rumo deles”, alega Nuno, sem dar muitos detalhes.

Diz que ganha dinheiro com o que a vida lhe oferece. “Tenho as minhas responsabilidades a cumprir, tenho o meu animal para cuidar, tenho que me cuidar de mim. Não é fácil. Nada. Não tenho subsídios de fonte alguma. Não tenho nenhuma ajuda do Estado. Mas tenho que sobreviver”, afirma.

Quanto ao Ginjal, lamenta: “Medidas concretas. Nada. Zero. Vão-nos pôr onde? Todos juntos a dormir num polidesportivo. Eu vou dormir ao lado de uma mulher com filhos. Não vou, não vou”guarantees. “Agora eu vou para a escola provisório. Quanto tempo? E depois? Daqui a duas semanas, quando começarem as aulas, vou continuar lá? O que é que vai ser de mim depois? Vou para onde? E as minhas coisas?” Atento ao que “se tem passado no nosso país, noutros concelhos” , Nuno mostra apreensão com soluções provisórias.

A resistência de todas estas pessoas no Ginjal parecia ser em vão. Aos nossos olhos, pelo menos, que já tinhamos ouvido da parte da Câmara de Almada – numa conferência de imprensa que detalharemos mais à frente – que as pessoas do Ginjal seriam todas retiradas naquele dia 10 de Abril. E assim aconteceu, da parte da tarde, sem a presença de jornalistas que, por volta das 13 horas, foram postos fora do espaço pela assessoria de comunicação da Câmara de Almada. Todavia, apesar da inevitabilidade, alguma esperança parecia pairar entre as três dezenas de pessoas que ainda resistiam. 

Os despejos contaram com o apoio da Polícia Marítima (fotografia LPP)

Por nós passa, de repente, uma jovem mulher, apressada, sem tempo de se apresentar. Está num grupo de pessoas, também moradoras. “Vamos à escola, senhor. Temos uma casa, cinco quartos, temos crianças e casais”, diz, meio ofegante e a mostrar, sem desacelerar o passo, a sua identificação e d do seu companheiro. “Já houve sismos, e não caiu nada. Não é agora que também deve-te cair”, argumenta, contando de forma muito breve que está a viver na casa “de um proprietário, que morreu”. ”Depois veio outro senhor que comprou o espaço e deu autorização para nós ficarmos lá”he claims.

“A gente já gastou muito dinheiro, na luz, na água e a pôr tudo bem. Agora vem a Câmara e a Polícia Marítima dizer que temos que sair, porque isto pode ruir a qualquer momento. Querem dar-nos duas semanas numa escola, num espaço com 50 homens e mulheres a dormir no mesmo sítio. Acho isso uma falta de respeito”he contests. “Eu trabalho, o meu marido trabalha e muita gente que vive aqui trabalha. Só não temos dinheiro para alugar uma casa.” 

A conversa acelerada com esta senhora contrasta com a aparente calma do armazém de pescadores. À porta, dois reformados ajudam a “esticar o fio” da pesca. Quando bem estendido, chega praticamente ao portão que a Câmara de Almada instalou para bloquear o acesso ao Ginjal – portão que vai ficar fechado naquele dia 10 de Abril, com a chave a cargo da Protecção Civil. Zé, um dos reformados, explica-nos: “Temos de esticar o fio se não enrola depois na pesca.” Zé e o amigo, que também já encerrou a vida profissional activa mas que não nos deixou o nome, não são do Ginjal mas aparecem aqui para “passar o tempo” – e ajudar os pescadores, claro. Sobre os despejos, pouco ou nada sabem. “Não sei nada disso”, diz Zé num tom despreocupado.

Quem também não está preocupado é um dos pescadores daquele espaço, que ficou em terra. “Isto não é nada com a gente. Vão fechar ali mas têm de dar acesso a quem cá está”, começa por afirmar. “Eu sou pescador, mas só eu estou aqui a ajudá-los, está a perceber? O mestre, os donos dos barcos, esse é que tem que resolver o problema. Eles é que saem sempre prejudicados.”

“Venha lá aqui”, diz-nos, levando-nos para um dos pontões e apontando para a arriba que está por cima do Ginjal e que também é uma das preocupações da autarquia. “Agora diga-me lá daqueles prédios ali em cima”, começa, assinalando uma fileira de edifícios sob a arriba aparentemente instável. “Estão tão preocupados com o cais, que está assim há sete ou oito anos…”, desabafa, sem terminar a frase. “Passam aqui centenas de milhares de pessoas todos os dias. Isto é o melhor sunset do mundo. E a Câmara está preocupada agora com um buraco de que não assume a responsabilidade pela reparação. E depois isto é o jogo do empurra. O Porto de Lisboa tem grande responsabilidade nisto também.”

Os esclarecimentos da Câmara

O acesso ao Ginjal por Cacilhas (fotografia LPP)

“Como sabem, não foi de ânimo leve que a Câmara Municipal de Almada se viu obrigada a decretar a situação de alerta no âmbito da Lei de Bases de Proteção Civil e que, a partir de hoje, será interditada a circulação de pessoas no Cais do Ginjal.” Foi assim que Inês de Medeiros, presidente da câmara, iniciou a conferência de imprensa marcada para o mesmo dia e à mesma hora em que estavam previstos os despejos. “Sabemos como este espaço é querido de todos os almadenses e de todos aqueles que nos visitam. Esperamos que seja pelo período mais curto possível”

Aos jornalistas, a autarca afirmou que, dado “o estado de degradação extrema desta zona do domínio público hídrico”, não houve outra alternativa que não a interdição de circulação. “Quero deixar bem claro que a interdição do caso de Ginjal é uma decisão tomada com base exclusivamente por motivos de segurança sobre proposta técnica dos serviços competentes”, disse. Medeiros explicou que o risco na zona foi agravado pelos “dias consecutivos de chuva” e “fenómenos naturais de intensidade excepcional”, como a tempestade Martinho. “A arriba, que é muito sensível, está neste momento encharcada, pelo que ela própria é um fator de risco”he explained. “O estado dos edifícios e da arriba agravou-se de tal maneira que, face ao parecer dos serviços de Protecção Civil, a Câmara Municipal de Almada  viu-se obrigada a retirar daquele espaço as pessoas que os ocupavam. Volto a sublinhar, o que está em causa é uma situação de risco extremo para todos os que ali se encontram”, acrescentou, referindo que “os edifícios devolutos e em risco de derrocada são propriedade privada, pelo que os proprietários têm sido reiteradamente notificados para a consolidação dos mesmos”.

Segundo Inês de Medeiros, a autarquia tem feito o acompanhamento da população do Ginjal, referindo que “estamos perante realidades muito diversas e uma população muito flutuante”, “entre a qual se encontravam crianças”; e referiu a activação da Zona de Concentração de Apoio à População (ZCAP) na Escola Secundária de Anselmo de Andrade, onde as pessoas poderão pernoitar e onde “terão alimentação, instalações sanitárias, apoio psicológico e todo o apoio social possível”. “Nos últimos dias, os serviços da autarquia têm mantido contacto com estas pessoas com o objectivo de as ajudar a encontrar, desde já, uma solução definitiva”, acrescentou a responsável, referindo que esse trabalho será feito “durante as próximas duas semanas”

Inês de Medeiros esclareceu ainda: “Nós já tínhamos identificado espaços para acolher quatro famílias com crianças que já tinham aceite e tinham concordado serem retiradas ainda ontem [9 de Abril] para não irem para um pavilhão.” Segundo a Presidente da Câmara afirmou que algumas pessoas “foram dissuadidas” de aceitar a resposta temporária dada pelo Município. “Infelizmente, quando os nossos serviços sociais lá foram, as pessoas disseram que tinham sido convencidas por associações a não aceitarem esta retirada enquanto não houvesse garantias de realojamento. Eu devo dizer que, ao não aceitarem, as próprias pessoas e as suas crianças estão a expôr-se a uma situação de risco”, reforçou, clarificado que “sempre houve alguém a pôr em causa a segurança – nomeadamente pela concentração de pessoas, em especial menores, como sucedeu – tomaremos todas as medidas necessárias, incluindo apresentar queixa às entidades competentes”

Oficiais da Polícia Marítima e técnicos da Câmara de Almada no contacto com a população no dia 10 de Abril (fotografia LPP)

Inês de Medeiros referiu que foi marcada para 14 de Abril, esta passada segunda-feira, uma reunião com a Administração do Porto de Lisboa (APL), que tem a jurisdição do espaço público e portuário do do Cais do Ginjal mas que, numa declaração à Lusa, parecia estar a esquivar-se de responsabilidade. Confrontada pela agência noticiosa sobre a degradação em que se encontrava o Ginjal, a APL respondeu que “apesar de a área em questão se encontrar sob jurisdição portuária, não se trata de domínio público marítimo”, indicava à Lusa, esclarecendo que apenas lhe compete “administrar, licenciar e fiscalizar os bens do domínio público que lhe estão afectos”. No esclarecimento da APL, “o Cais do Ginjal, incluindo o arruamento a sul e a muralha, constituem propriedade privada, embora limitada pela existência de uma servidão de uso público, pelo que a intervenção que será necessária efectuar não integra o âmbito das competências desta Administração Portuária”, podia ler-se, dizendo, no entanto que assumiu o compromisso de “prestar toda a colaboração técnica à Câmara Municipal de Almada” and “apresentar uma solução técnica para intervenção no local”.

“Eu devo dizer que até agora a APL não rejeita que tem jurisdição sobre aquela questão O comunicado apenas rejeita que tenha que pagar qualquer factura, mas isso é outra matéria e é isso que nós iremos clarificar com a APL”, dizia Medeiros, referindo-se à reunião que terá decorrido nesta segunda.

Na conferência de imprensa, que durou cerca de 20 minutos, a Presidente da Câmara destacou que a prioridade é “garantir as condições de segurança daquele local e abri-lo tão breve quanto possível” e referiu que, para tal, vai ser encontrada “uma alternativa a curto prazo”, pois o projecto definitivo de reabilitação do Cais, que é conhecido e que destacamos mais à frente, seria incomportável de realizar em curto espaço de tempo. 

“Uma obra estrutural não se faz em curto espaço de tempo e está dependendo, como sabem, de um Plano de Pormenor aprovado. Uma obra que seja mais pontual e que permita restabelecer uma circulação em segurança, é isso que também está a ser analisado e tem que ser articulado com o Porto de Lisboa”, deixou bem claro. Segundo a autarca, já não há mais remendos que se podem fazer no cais. Até lá, o Ginjal estará encerrado, mais concretamente no troço entre o cais de Cacilhas e a zona de restauração, onde está o conhecido Ponto de Encontro. Duas barreiras de chapa metálica com uma porta vão garantir que ninguém passa para o local temporariamente interdito. “A porta estará fechada e a chave estará a cargo da Proteção Civil”, referiu Medeiros, lamentando que as barreiras e sinalização previamente colocadas não tenham surtido efeito. “As pessoas não são muito respeitadoras das vaias; teve de se tomar uma medida mais eficaz.”

Uma zona à espera de respostas

O Cais do Ginjal aguarda há décadas por reabilitação. Desde 2008, pelo menos. Foi nesse ano que se iniciou a elaboração de um Plano de Pormenor que definiria o futuro do local e que só ficaria pronto em 2018, tendo, nesse ano, sido apresentado à população no Fórum Romeu Correia com um período aberto de discussão; depois dessa consulta pública, o plano foi concluído e aprovado definitivamente em 2020/21. Desde então, nada mudou no Ginjal.

O Plano de Pormenor prevê a transformação da zona com habitação, comércio, serviços e um hotel. As obras ficaram quase todas a cargo de um grupo imobiliário madeirense, a AFA, proprietário da maioria dos terrenos e edifícios do Ginjal, adquiridos entre o final dos anos 1990 e o início deste século. As obras de reabilitação do Ginjal, estimadas em 300 milhões de euros e com uma duração de cerca de 10 anos, criariam  um hotel com 160 quartos, cerca de 300 habitações, comércio, serviços, equipamentos culturais e sociais e um silo automóvel para 500 carros numa área bruta de construção de 90 mil metros quadrados. O projecto, detalhado num artigo de 2023 do jornal Mensagem de Lisboa, alargaria o espaço público, permitindo que o espaço pudesse ser apropriado também pela população não residente.

Excerto do Plano de Pormenor do Cais do Ginjal (via CMA)

Segundo a Câmara de Almada, o Plano de Pormenor do Cais do Ginjal, que abrange uma superfície de aproximadamente 8,44 hectares, prevê não só a “requalificação, recuperação e revitalização” do espaço, “assente na manutenção do caráter e das particularidades espaciais existentes, nomeadamente as proporções volumétricas da primeira linha de fachada”, como também a “estabilização sustentável da arriba, mantendo o espaço o mais naturalizado possível”, e salvaguardando “a segurança das pessoas e bens e as acessibilidades ao local”. Previa ainda a “dinamização cultural, patrimonial e turística” do Ginjal, nomeadamente com a “criação de condições favoráveis à atração de indústrias criativas”.

O Plano de Pormenor do Cais do Ginjal pode ser consultado here.

A desactivação da ZCAP

A Zona de Concentração e Apoio à População (ZCAP) estabelecida na Escola Secundária de Anselmo de Andrade foi desactivada no final de dia desta terça-feira, 15 de Abril. O anúncio foi feito pela Câmara de Almada, indicando que were “encontradas respostas temporárias de emergência mais adequadas para 18 pessoas que ainda precisam de apoio”

“A autarquia continuará a fornecer refeições e a apoiar estas pessoas no seu processo de autonomização, enquanto durar a Situação de Alerta”, indica a mesma nota, acrescentando que o serviço de apoio e atendimento social da Câmara vai continuar “activo e em articulação”. “Recorde-se que a CMA referiu, desde a primeira hora, que a ZCAP era uma solução de emergência temporária que, sublinhe-se, cumpriu na íntegra os critérios definidos na Lei de Bases de Proteção Civil”, termina assim o comunicado.

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