Medita-se melhor a caminhar

Deixarmo-nos ir no fluxo da cidade, perdermo-nos nos seus desvios, perceber e ser estimulado pelas suas dissonรขncias, desperta-nos, faz-nos estar mais aptos para dialogar com a realidade ร  volta. Com os outros.

Parque Urbano do Vale da Montanha (fotografia LPP)

Tinha um amigo dinamarquรชs, a viver em Lisboa hรก anos, que nunca marcava encontros em cafรฉs. Substitui-os por passeios a pรฉ. Dizia: encontramo-nos no sรญtio X ร s tantas horas e daรญ podemos caminhar atรฉ ao local Y.

Nรฃo compreendia porque รฉ que a sociabilizaรงรฃo em Portugal era quase sempre feita ร  volta da mesa, beber, comer, conversar. Alegava que constituรญa falta de imaginaรงรฃo passar-se tanto tempo ร  mesa, numa cidade que convidava ร  caminhada. ร€ mesa nรฃo รฉ apenas o corpo que se torna sedentรกrio, argumentava. ร‰ tambรฉm o pensamento, a capacidade de argumentar, de idealizar, de estabelecer ligaรงรตes nรฃo previstas.

Deixarmo-nos ir no fluxo da cidade, perdermo-nos nos seus desvios, perceber e ser estimulado pelas suas dissonรขncias, desperta-nos, faz-nos estar mais aptos para dialogar com a realidade ร  volta. Com os outros.

Desde que vim viver para a parte mais alta da cidade que, aos domingos de manhรฃ, gosto de ir atรฉ ร  Feira do Relรณgio a pรฉ, caminhando por uma miscelรขnea de verde, hortas, betรฃo, linhas de comboio, exclusรตes, divisรตes, vazios, vias rรกpidas, potencialidades, ร s vezes ovelhas ou imigrantes a jogar crรญquete. Encontrar companhia, por exemplo, para ir a Monsanto, passear ร  beira mar, ou a Sintra, รฉ relativamente fรกcil.

Para fazer uma caminhada simples como esta รฉ difรญcil. Ninguรฉm entende o fascรญnio. Para mim รฉ fรกcil de explicar. ร‰ como atravessar trรชs cidades numa sรณ, com traรงos de ruralidade, subรบrbio e urbe, com os elementos que vamos encontrando pondo-nos a pensar sobre o que este territรณrio jรก foi, o que รฉ, e o que poderรก vir a ser, porque o futuro vai passar por aqui.

Medita-se melhor a caminhar. ร‰ terapรชutico. Vive-se o corpo. E acima de tudo, transforma-se a relaรงรฃo com tempo e espaรงo. Caminhar, como procurar o silรชncio, num tempo dominado pela eficiรชncia econรณmica, a competitividade ou o ruรญdo, sรฃo prรกticas de resistรชncia.

Infelizmente, quando pensamos nestas noรงรตes, fazemo-lo sempre a partir de uma perspetiva individual โ€” รฉ por isso que os livros de autoajuda sรฃo um sucesso โ€” e nunca coletiva, cรญvica e polรญtica.

E isso รฉ que era essencial. Era importante que um estilo de vida mais humanizado fosse acessรญvel, nรฃo apenas a uma minoria, mas fosse algo integrado no prรณprio planeamento da cidade, ao serviรงo da maioria.


Article originally published here, tendo sido republicado com a devida autorizaรงรฃo do autor.

Gostaste deste artigo? Foi-te รบtil de alguma forma?

Considera fazer-nos um donativo pontual.

IBAN: PT50 0010 0000 5341 9550 0011 3

MB Way: 933 140 217 (indicar “LPP”)

Ou clica aqui.

Podes escrever-nos para mail@lisboaparapessoas.pt.

PUB