Para Sónia Lavadinho, antropóloga urbana, a cidade deve ser um espaço de encontros e de relações – e essa transformação deve começar logo à porta do automóvel. Nesta entrevista, falamos de cidades relacionais, do potencial dos cruzamentos, da importância da natureza de proximidade, e de como podemos transformar os espaços urbanos para deixarem de servir apenas a função circulatória.

Nasceu em Portugal mas não é comum encontrámo-la cá. Sónia Lavadinho começou o seu percurso académico e profissional na antropologia, uma área que continua a apaixoná-la no trabalho que hoje desenvolve enquanto especialista em mobilidade e planeamento urbano, na Suíça, onde se estabeleceu ainda em jovem. Propõe cidades mais relacionais, com espaço e tempo para encontros e vida comunitária, e diz que esse trabalho deve começar pelos cruzamentos pois é onde as pessoas abrandam – mesmo quem está dentro de um carro.
Fundadora da consultora Bfluid e autora de livros e palestras, Sónia Lavadinho esteve em Outubro de 2024 na conferência internacional Walk’21, dedicada à mobilidade pedonal, e que decorreu no ISCTE, em Lisboa. Foi durante esse encontro que nos sentarmos a conversar sobre cidades relacionais e como podemos alterar os espaços públicos para não serem exclusivamente virados para a função circulatória. Falámos também de ruas como “rios de frescura”, onde podemos ter uma natureza de proximidade, e da importância de as transformações urbanas começarem pelos automobilistas, dando-lhes conforto imediatamente à saída do carro.
Uma conversa inspiradora, que podes ler de seguida.
Na sua palestra, falou nas ideias de espaços fixos ou estáticos, de espaços relacionais, onde as pessoas podem estabelecer relações, convivendo, etc, e de espaços circulatórios. Para quem não assistiu, que espaços são estes?
Considero que existem três espécies de espaços numa cidade. Há os espaços circulatórios, onde as pessoas estão em trânsito, por onde passam. Há os espaços fixos ou estáticos, que são mais os espaços de contemplação, eventualmente têm um banco ou uma coisa assim. E depois há os espaços relacionais. Estes espaços são os mais difíceis de determinar, mas é onde as pessoas entram em relação. Pode ser, por exemplo, quando está uma pessoa sentada e outra em pé a conversarem. Esse espaço que se cria ali entre elas é um espaço relacional. Ou pode ser espaço onde as pessoas estão quando, sei lá, saem de um teatro ou de um concerto e ficam à porta a conversar. No fundo, se estivermos de alguma forma virados uns para os outros, isso cria espaços relacionais. Antigamente, havia também esses espaços ao pé das igrejas, por exemplo.
O que me interessa é multiplicar esses espaços relacionais na cidade, ou seja, pôr mais desses espaços à disposição. As pessoas estão nestes espaços mais receptivas ao que as outras pessoas estão a fazer à sua volta. Nota-se que há muito mais conversa, que as pessoas olham mais uns para os outros, que estão mais em interação…
Acha que a classe política não valoriza tanto o espaço público como lugar de convívio e de vida comunitária, mas apenas como espaço de circulação? E que por isso tende a ver o uso mais social da rua — com pessoas a conviver, a fazer barulho — como um problema?
Sim, a questão é como se dá espaço à função relacional e se gerem os equilíbrios e interesses com as outras funções. E muitas vezes a política tem dificuldade em reconhecer essa dimensão mais relacional do espaço público. Para criar um espaço relacional, só se tem de criar as condições. É um como um quadro que são as pessoas que pintam. As pessoas é que vão pintar a paisagem relacional. E você só tem que dar o quadro, tem que dar os limites, para a pessoa se exprimir. E é nessa liberdade de criação que as relações vão acontecer.
No planeamento urbano, é difícil muitas vezes estarmos a desenhar algo que ainda não existe, que é uma página em branco. Só depois é que as pessoas vão apropriar-se do espaço e dar-lhe vida. Mas também é verdade que se você não der o quadro, não há espaço para as pessoas exprimirem. O que me interessa é poder fazer da rua esse espaço relacional. Não pode ser algo só limitado a duas ou três praças principais. Tem de ser algo que se expanda no ADN da cidade, então tem que entrar nas ruas, nos cruzamentos… nos metros quadrados mais banais – vamos dizer isso assim.
“Muitas vezes a política tem dificuldade em reconhecer essa dimensão mais relacional do espaço público.”
Como é que podemos fazer isso?
O que conta para fazer uma cidade relacional é a presença das pessoas – é o ingrediente mais importante. E a presença das pessoas tem que ser cá fora, no espaço público. Não pode ser dentro do escritório ou de uma casa. A cidade de dentro não nos serve, o que nos serve é a cidade cá de fora.
Para essa outdoor city, a grande questão é que se vai potenciar essa presença humana no espaço público, para o espaço público ser simplesmente ser essa vitrine das relações entre nós. E essa questão implica que você tem que fazer uma espécie de espaço público, que neste momento não existe muito, que é espaço público que acolhe o que eu chamei de ‘micro-permanência’, porque na verdade, o que sabemos bem fazer são praças e parques onde as pessoas vão ficar uma hora, duas, três ou uma tarde inteira – isso sabe-se fazer bem. e faz-se bem simplesmente, são só algumas. Mas esses espaços exigem que a pessoa se disponibilize a ir lá, a ficar lá e a voltar; e tudo isso exige tempo na nossa agenda, que em geral não temos.
O que temos sempre na nossa agenda são cinco, 10, 15, 20 minutos, meia hora… Até meia hora, as pessoas têm muitos ‘bilhetes de tempo’, como eu lhe chamo. As nossas carteiras estão cheias desses pequenos bilhetes. Não estão cheias de bilhetes de duas horas, três horas… para oferecer à cidade e animá-la.. De uma certa forma é isso que fazemos todos quando escolhemos sentarmos num terraço, brincar com as nossas crianças na rua. Tudo isso são escolhas de cada um que faz que colectivamente isso vai animar a cidade, vai dar vida à cidade. É a presença das pessoas.
Então, a questão para mim é: como é que nós vamos criar esses sítios que eu lhe chamo ‘sítios com mel’, são sítios melosos que criam essa vontade de ficar esses cinco, 10, 15 minutos. O grande segredo da maneira como poderíamos criar essa cidade relacional é realmente multiplicar, esses lugares nos quais podemos ficar entre um quarto de hora até meia hora.
Esses encontros e relações podem acontecer nos cruzamentos entre ruas, como nos dizia na palestra, não é verdade?
Justamente, os cruzamentos são lugares óptimos para fazer isso. São lugares onde você não vai forçosamente para ficar uma tarde inteira, mas ficar só ali dois minutos a atravessar. A ideia é a pessoa sentir-se bem no cruzamento e querer ficar um bocado. Barcelona começou a fazer isto com os cruzamentos, criaram lugares muito mais de convívio, nos quais as pessoas do bairro, e também as pessoas que estão a passar, vão passar esses 5, 10, 15 minutos. Bebem café, falam bocadinho, jogam ali bocadinho com as crianças, ou dão dois dedos de conversa com as pessoas mais idosas que por ali andam a passear cão e depois vão à sua vida.
A ideia não é ficarmos ali para sempre, mas termos muito mais espaços e nós, nas nossas pesquisas, conseguimos perceber que as pessoas, se tiverem bons espaços públicos conectados em rede, vão usar até quatro, cinco, seis espaços públicos no mesmo dia. De manhã usam um, depois vão usar outro para a pausa do meio dia, à tarde vão usar outro quando forem buscar as crianças, à noite vão usar outro antes do jantar ou quando vão ao supermercado… Portanto, acaba por ser uma prática de espaços públicos em constelação.
Você não está a ir a um só espaço público para ficar nele durante muito tempo, está a partilhar o seu tempo com a cidade em muitos espaços públicos diferentes. E isso anima muito mais a cidade. Não podemos ter, como temos hoje, só 5%, 10%, 15% dos nossos espaços públicos verdadeiramente relacionais, e o resto, a grande maioria dos nossos espaços públicos – mais de 80%, muitas vezes 90% – serem espaços unicamente funcionais, unicamente feitos para a função circulatória, que prima muito mais do que todas as outras funções.
“O que temos sempre na nossa agenda são cinco, 10, 15, 20 minutos, meia hora… Até meia hora, as pessoas têm muitos ‘bilhetes de tempo’ (…) para oferecer à cidade e animá-la.”
Disse na sua palestra também que, se fosse política e tivesse limitações de orçamento, só fazia os cruzamentos e depois logo se via quanto às ruas. Porque é que os cruzamentos são tão interessantes para si?
Por duas razões. É o sítio onde naturalmente os fluxos vão convergir, as pessoas convergem ali. Portanto, já estão ali. Há mais pessoas ali – é tal e qual como uma foz de um rio que tem vários afluentes. As ruas são afluentes e chegam finalmente àquela foz. Ali está a foz de peões vindos de vários sítios. Os cruzamentos são lugares que já estão a ferver de diversidade, simplesmente pelo facto de as pessoas virem de várias ruas e sítios diferentes. Também acho interessante os cruzamentos porque é onde a pessoa está um bocadinho a hesitar. É um sítio onde você vai naturalmente abrandar a velocidade, porque está a tentar decidir se há de virar à esquerda ou à direita, se se continua ou se não continua…. Então, podemos dar mais motivos à pessoa para parar ali.

Nós temos de pensar como é que a gente vai fazer ligações entre os centros dos bairros e como é que vai, sobretudo, trabalhar as fronteiras entre os bairros. Muitas vezes, são os sítios mais negligenciados e, justamente por não terem tanta atenção, são espaços com muitas opções, com muitas potencialidades. Para mim, é muito mais interessante trabalhar um cruzamento que esteja a ligar quatro bairros. Como é que esse cruzamento pode beneficiar as pessoas dos quatro bairros? É muito diferente isso do que estar a trabalhar no centro de um bairro, em que tudo o que for potenciado vai ser para as pessoas desse bairro. Portanto, se eu fosse política, trabalharia muito mais nas fronteiras entre os bairros, porque aí é que está a riqueza da cidade.
Falou em trazer os parques para o meio da cidade e nesta ideia de transformar as ruas em “rios de frescura”, Em vez de criar rios para os carros e bicicletas fluírem, ruas onde a natureza também possa fluir: água, árvores, pássaros. Que conceito é este?
Durante todo o século XX, e mesmo agora no início deste século, é a função circulatória que prima. Demos muito espaço aos carros, mas hoje também continuamos com esse paradigma da função circulatória. É certo que também estamos a dar mais espaço aos peões para andarem e até para se sentarem (há mais bancos…) e estamos a dar também mais espaço às bicicletas. Mas tudo isso continua a ser visto pelo prisma da função circulatória, antes que tudo. Portanto, a partilha de espaços está a ser mais para aí – entre veículos. E o que eu gostaria de ver mais a aparecer nas cidades é uma partilha de espaços que seja para a relação com a natureza de proximidade, que é muito diferente da grande natureza. A natureza de proximidade é uma natureza em que você pode tocar, da qual se pode aproximar-se todos os dias, numa relação de proximidade. A ideia é que onde quer que você esteja na cidade pode encontrar essa natureza de proximidade, mas é também dar mais espaço para a convivência com os outros, para então fortalecer essa relação com os outros e também a relação consigo mesmo.
E isso tem a ver com dar espaço à relação com o nosso corpo em movimento. Não é só podermos sentar, é também podermos nos mexer, podermos andar, podemos deitar, podemos saltar, enfim, fazer vários movimentos com o nosso corpo. Isso é muito importante para as crianças, mas diria que também é muito importante para os adultos – ter uma atividade física mais espontânea, mais livre em termos de postura. E uma das coisas que nós queremos mais criar com estes espaços relacionais é realmente espaços nos quais as pessoas estejam lá de todas as maneiras possíveis, até deitados, a correr, saltar, mexer, e tudo isso exige mais espaço, mais metros quadrados, não é?
“A natureza de proximidade é uma natureza em que você pode tocar, da qual se pode aproximar-se todos os dias, numa relação de proximidade.”
Em que sentido?
Estar lá juntos – essa expressão que nós usamos muito – não é a mesma coisa que estar sozinho. E isso já o Jan Gehl dizia nos seus livros: que é claro que quando você tem espaço que é mesmo agradável, as pessoas frequentam-no opcionalmente com mais pessoas que conhecem, como amigos, família, colegas de trabalho, e então isso exige realmente mais espaço. Se você cruza uma família de quatro pessoas e se você já é um casal ou está com três ou quatro colegas de trabalho, então já estamos a falar de 8 metros quadrados – cada pessoa ocupa mais ou menos 1 metro quadrado. Não é a mesma coisa que duas pessoas sozinhas que se estão a cruzar. Então, para mim, a grande questão também é essa: é potenciar o togethering, potenciar espaços onde possamos estar juntos em interação. Esses espaços relacionais, por definição, são maiores porque há o espaço que os nossos corpos ocupam, e depois há o espaço da relação, pois ela também ocupa espaço.
Temos que escolher muito bem a nossa geometria da rede; hoje em dia, cada cidade tem, sei lá, de três a seis mil quilómetros, depende do tamanho das cidades. Há muito quilómetro. Não é isso que nos falta. O que nos falta é uma melhor hierarquia da rede para tentar dizer: desses quilómetros todos, quais é que são mesmo indispensáveis à função circulatória? E a partir daí você pode decidir que há alguns quilómetros da cidade que podemos alocar a outras funções, à função relacional, por exemplo. Por exemplo, em Buenos Aires retirámos 8% da rede. Não é nada, você pode viver sem isso. Mas esses 8% potenciamos para poder ligar os parques às grandes estações de comboio, que são cinco em Buenos Aires, criando criar corredores verdes na lógica do que estávamos a falar dos ‘rios de frescura’. Mas o interessante nem é tanto criar o corredor, mas estas constelações de espaços e fazer isso de tal maneira que depois, na carta mental, a pessoa consegue lembrar-se que este parque está conectado com aquele outro parque, ou está conectado com aquela praça, ou está conectado com esta estação ou hub intermodal.
E aí começa a tornar-se interessante essa constelação: você começa então a disponibilizar o seu tempo para investir esses espaços. Mas são os espaços de ligação os mais interessantes para mim. Esses espaços dependem sempre do tipo de rua – há ruas que são avenidas, que são largas e que permitem investir trocando a natureza da rua; e há outras ruas que são mais estreitas, em que não se pode cortar aquilo aos pedaços para que toda a gente entre lá, mas em que se pode antes sacar essa rua então da rede e torná-la inteiramente relacional. Um bocado como vocês aqui em Lisboa fizeram com a Rua Cor-de-Rosa ou a “rua azul” [Rua dos Bacalhoeiros] – o problema é que quando uma cidade tem poucos lugares relacionais, eles ficam com muita gente, e isso acaba por ser às vezes desagradável. Para mim, deveriam ser tão abundantes esses lugares ou ruas relacionais como são as ruas normais. Nenhum político, técnico ou profissional de desenho urbanístico fica espantado pelo facto que temos três mil quilómetros de ruas… Isso não causa problema a ninguém. Ninguém acha que temos ruas a mais… De certa forma, acho que temos. Porque é que estamos nesta… diria mesmo, penúria relacional, no sentido que só temos duas ou três ruas cor-de-rosa, quando poderíamos ter 100, 200, 300?
“Nenhum político, técnico ou profissional de desenho urbanístico fica espantado pelo facto que temos três mil quilómetros de ruas… Isso não causa problema a ninguém. Ninguém acha que temos ruas a mais… De certa forma, acho que temos.”
As ruas relacionais são boas para as crianças, como dizia há bocado… As crianças são postas dentro de cercas, protegidas do resto da cidade. E quando andam nas ruas, os pais e mães seguram-nas para as proteger dos carros. Mas a Sónia fala em colocar as crianças junto dos carros. Porque é que é importante esta proximidade?
A maneira como uma rua foi desenhada tem que indicar claramente quais são os rituais que fazemos nessa rua. É para andar ali de carro ou é para brincar? E essa parte tem que ser clara simbolicamente, ou seja, é a parte simbólica que se tem que trabalhar. As pessoas ficam com medo com os seus filhos, isso é muito verdade. Ficam com medo também por causa das velocidades. Um dos princípios da cidade relacional é que você vai andar a uma velocidade reduzida… voluntariamente – e é isso que eu acho que é importante. É o design da rua que o vai definir. Muitas vezes pela complexidade, por haver muita coisa a assimilar pelos condutores, eles abrandam. Não é preciso um painel a dizer. Muita gente na rua faz que o carro se acalme.
Mas a pergunta maior que é realmente complicada nessas ruas residenciais que estamos a falar, e é por isso que eu não sou forçosamente a favor de fazer uma rua para brincar de uma rua residencial com pouca densidade de crianças e também pouca densidade de carros, porque aí os encontros tornam-se raros e aí as pessoas ficam surpreendidas. O que eu preconizo mais é você justamente usar os lugares de convergência. Já lá está uma lojinha, já lá está o supermercado, já lá está os correios, já lá está sítio para brincar então. E aí há gente que chegue para que durante o tempo inteiro a natureza daquele lugar seja uma natureza relacional. Eu acho que é mais fácil quando temos uma certa massa crítica de pessoas. Podem não ser muitas até, pode ser, estamos a falar talvez de estar lá 20 pessoas à vez ou 10 pessoas à vez.
Mas a partir do momento – e eu queria sublinhar isso – em que estão lá duas ou três pessoas sentadas a conversar, aquele cantinho ali já se torna relacional. Não é preciso serem 300 pessoas, nem 3000. Isso é importante também para entender que não é preciso ser muita gente, mas o que é preciso é que essas pessoas estejam numa atitude relacional, estejam com calma, com tempo. É também essa mensagem e acho que aí os automobilistas, quando entram num espaço relacional desse género, vão querer eles próprios abrandar e ver o que está a passar à sua volta; e diga: ‘está-se tão bem aqui, vou parar, quero estacionar, onde é que está aqui o próximo estacionamento?’. Essa é a atitude, não é uma atitude de: ‘deixa-me passar aqui a correr’. Não, justamente, a atitude é ir mais devagar.

No seu discurso, diz muitas vezes que é preciso agradar aos automobilistas. Começar por eles, convencê-los primeiro...
Sim, é muito importante. Porque quando você tem repartições modais, como em Lisboa, de 66%… quer dizer, duas em cada três pessoas são automobilistas; você não pode estar a trabalhar só para a minoria. Tem que trabalhar para a maioria e se a maioria é automobilista…. Então, na minha opinião, tem de ir tocar os automobilistas onde eles estão, ou seja, no carro. Mas é evidente também que você não pode ir tocar os automobilistas quando eles estão a 50 ou 80 ou assim à hora. Não é aí que a pessoa vai querer… Mesmo que ela quisesse parar ou só para travar, já ia parar, sei lá, 300 metros mais à frente ou um quilómetro mais à frente. Tem que ser quando a pessoa já está parada ou que já está quase a parar.
E então a questão é qual é o ponto de contacto, na verdade, com essa pessoa? O ponto de contacto é quando ela pára. Então, se é quando ela pára, é o estacionamento que tem que tornar muito mais atrativo não para estacionar, mas… o que tem de ser agradável é o espaço para o peão. Cada um de nós, antes de ser automobilista, é peão. Só que essa natureza é um bocadinho como um caroço dentro de uma maçã. Você tem que ir lá esgravatar para encontrar esse caroço. Então, a minha ideia aqui é tentar sobressair o peão que está em cada um de nós quando anda a pé, e então temos de encontrar forma de que, quando a pessoa está parada e prestes a largar o volante, esse primeiro passo seja cinco estrelas. Tem que ser uma experiência fenomenal.
Os centros comerciais sabem fazer isso muito bem (mas até direi que não o fazem tão bem como ainda poderiam fazer…). Houve também algum progresso nos parques de estacionamento interiores, que estão enterrados. Põem música, têm intervenções artísticas… Tudo isso é bastante interessante e vai no bom sentido. Mas vê-se que o estacionamento na rua, o estacionamento público em si, continua a ser pobre em termos de experiência para a pessoa. Muitas vezes, são lugares realmente feios, pouco agradáveis, com pouca luz… mesmo de dia.
“Acho que aí os automobilistas, quando entram num espaço relacional desse género, vão querer eles próprios abrandar e ver o que está a passar à sua volta.”
E essa experiência aí é que eu acho que deveria ser melhor, porque é o primeiro ponto de contacto com a cidade quando você sai do carro. Portanto, a ideia é dar às pessoas mais oportunidades para perceber que, uma vez fora do carro, está-se melhor do que dentro dele. Hoje, não se pode dizer isso. Hoje, em geral, o primeiro passo fora do carro é sentir que está calor ou está frio, ver que não há nenhum sítio para sentar ou para comer. Ainda não está na cidade. E esse gap não me dá a mim, automobilista, a possibilidade de entrar logo na cidade, pois convence-me que é melhor voltar para o carro. Eu acho que isso aí é uma coisa que tínhamos que mudar muito seriamente.
Sou muito a favor que a gente trabalhe muito mais na qualificação desses parkings, também com o intuito de, mais tarde, os poder reconverter em verdadeiro espaço público, progressivamente. Se calhar hoje temos 50 lugares de estacionamento e amanhã tiramos 10 para por ali, sei lá, mesas de piquenique e vegetação. O sítio vai ficar mais agradável para poder estar, para poder talvez trocar as fraldas ao bebé ou por descansar ali as compras. Em geral, as pessoas precisam sempre de coisas desse género antes de entrar no carro. Estamos a tirar 10 lugares de estacionamento, mas esse estacionamento vai ficar mais atrativo e interessante. Depois, daqui a dois ou três anos, tiraremos mais 10 lugares para fazer outra coisa. O que é certo é que muitas vezes não era muito difícil transformar os espaços sem modificar totalmente a natureza circulatória do lugar. Não é preciso tirar o estacionamento todo…
“Temos de encontrar forma de que, quando a pessoa está parada e prestes a largar o volante, esse primeiro passo seja cinco estrelas. Tem que ser uma experiência fenomenal. Os centros comerciais sabem fazer isso muito bem.”
Isto implica sempre uma negociação entre muitas partes, não é?
Na verdade, nós não conseguimos vender nada a ninguém. As pessoas é que vendem a elas próprias as coisas. Se você quer vender t-shirt alguém, essa pessoa tem que vendê-la a si própria de que que realmente é a t-shirt de que ela precisa. Eu acho que a questão aqui é um bocadinho como é que damos esse espaço para que, na governança da discussão, a própria pessoa com quem estamos a negociar, ela própria, vá encontrar os argumentos que acabam por ser argumentos que vão a favor do que estamos a tentar fazer.
É sempre mais fácil partilhar um futuro do que partilhar o presente. Quando você faz uma promessa em relação ao futuro, as pessoas estão sempre de acordo. Quando é uma promessa para amanhã, já ninguém está de acordo – é demasiado perto, temos muita atenção. Portanto, há aí qualquer coisa que tenha a ver com o horizonte do desejo, tem que ser horizonte partilhado. E há também uma maneira de falar que é mais não bater nos obstáculos, não tentar levantar o obstáculo, mas mais a tentar encontrar uma linha de desejo que seja atrativa para as duas partes que estão a negociar ou para todas as partes que estão a negociar.
Eu, pessoalmente, trabalho muito com isso, trabalho muito mais com os desejos do que com os travões ou os obstáculos, porque acredito que passamos muito tempo a falar dos problemas. Há problemas, toda a gente os tem e são muitos. Penso que é importante termos muita escuta sobre a questão dos problemas, mas também o modo de falar que não sei apoia nos problemas, que apoia mais no que podemos fazer juntos, nos desejos, no que podemos partilhar como horizonte desejável.
As cidades não acolhem o tempo livre. Mesmo os transportes estão muito virados para as coisas aborrecidas como o ir para o trabalho e para a escola, como falou. Quando disse isso, uma das coisas que me veio logo à cabeça foi que em muitas vilas e aldeias, os transportes públicos não funcionam ao fim-de-semana. E mesmo numa área metropolitana como Lisboa, há ligações que não conseguimos fazer a determinadas horas e dias…
Sim, toda a política de transportes públicos é baseada no trabalho, nas horas de ponta, nas deslocações entre casa e trabalho. Ainda estava a falar no outro dia com uma colega justamente ali do lado da Almada que está a falar da questão de conectar melhor a Costa da Caparica com os muitos lisboetas que vão lá nos verões. Eu próprio, quando era miúda, ia lá, e eu lembro muito bem que aquilo era uma desgraça para lá chegar – e que até de carro era uma desgraça, para não falar de tentar ir lá de o autocarro, de bicicleta ou de qualquer outra maneira.
Ainda neste fim-de-semana estava ali no bairro da Lapa e queríamos apanhar o eléctrico – queria mostrar o eléctrico ao meu namorado e percebi que não há eléctrico os fins-de-semana. Mas é o fim-de-semana que você tem tempo para ir com a família toda de eléctrico, sei lá, beber um copo a Alfama. É justamente quando você tem mais tempo e que poderia eventualmente largar o carro, porque não está tão atrasado para chegar ao trabalho ou não está com tanta pressa para fazer tudo o que tem que fazer durante o dia de trabalho, aí é que está mais disposto a poder experimentar uma coisa diferente. Talvez o eléctrico, talvez a bicicleta, talvez andar a pé, talvez misturar.
E também à noite. A cidade da noite: termos uma política noturna que fosse eficaz, visto que à noite é que a gente vê as pessoas revertem para o carro, e não somente revertem para o carro, mas revertem também para velocidades mais altas. Isso está comprovado, muitos estudos mostram, sítios onde você fez zona 30, fez zona 20, à noite, as pessoas passam facilmente 10 a 15 quilómetros mais depressa, com o que deveriam. Então, há aí qualquer coisa da forma como estamos a investir à noite que não está bem; vê-se que não estamos a fazer o que era preciso para que a cidade fosse relacional de noite, para que as pessoas tivessem… As coisas não podem estar abertas 24 horas, não é isso que eu estou a dizer. Mas, podíamos ter uma atitude, com sítios que estão mais activados à noite, que têm bocadinho mais de vida à noite. Eu acho que é mais isso também que temos que encontrar.
De qualquer maneira, nos anos que se seguem, penso que vamos ter também muitas questões de conforto climático, em que vamos necessitar de ter uma atitude muito mais, como é que é dizer, acolhedora de noite, sobretudo para pessoas idosas e famílias com crianças pequenas, porque simplesmente essas pessoas não vão conseguir dormir à noite. E a gente sabe que a questão do sono é uma questão muito importante. Se você não conseguir dormir várias noites seguidas, fica com a saúde em risco, fica stress. Vai ser necessário, digamos, ter uma maneira de criar espaço público que seja compatível com usos noturnos de pessoas que hoje não saem à noite, como os idosos, mas que vão sair porque à noite está um bocadinho mais fresco. Se tivermos essa atitude de criar natureza de proximidade, de vegetalizar mais e melhor esses lugares que seriam esses cruzamentos relacionais ou essas ruas/rios de frescura, então disponibilizar esses lugares frescos a 300 ou 500 metros, portanto cinco minutos de casa ou qualquer coisa do género.
Para mim, o ideal seria termos espaços relacionais e de frescura todos os cinco minutos. Da mesma forma como criamos pontos de transporte público a cada cinco minutos, da mesma forma como temos lugares de estacionamento a cada cinco minutos…
O que eu vejo é que a função circulatória está distribuída 100% pela cidade. A função relacional, a função cívica, a função de encontro, a função intergeneracional, as funções de coesão social, essas estão numa penúria de distribuição. E, portanto, o que nós temos que trocar aqui é a distribuição. Isso para mim é o principal – como é que a gente vai realmente distribuir os metros quadrados relacionais de forma muito mais equitável, de forma muito mais banal, devo dizer, numa lógica de acesso justo e muito mais equitável, mas também numa lógica de verdadeira proximidade. Hoje, as funções relacionais continuam muito concentradas nos centros das cidades, nos parques e nas praças principais, e acaba por ali, e isso tem que mudar.