A Cooperativa Mula tem morada na Telha Velha, no Barreiro. Mas as telhas que abrigam as diversas atividades deste coletivo estão a meter água. A cooperativa lançou uma campanha de angariação de fundos para ajudar a resolver o problema, antes que chegue o inverno.

É um porto de abrigo na Telha Velha, um lugar outrora esquecido no Barreiro. Mas a poucos metros da entrada da Cooperativa Mula, no Largo de Santo André, ergue-se um aviso de obra num terreno baldio, recentemente vendido em hasta pública, que dá conta de uma grande empreitada: “Construção das infraestruturas do loteamento da Quinta das Canas”. Valor? Um pouco mais de 1,5 milhões de euros. O objeto? Não consta da descrição no local, mas sabemos que será erguido um hotel de grande dimensão.
Ali à volta não há quase nada, num local que ainda se veste de aldeia, apesar das transformações em curso. Mas a Cooperativa Mula é a dona do seu nariz. Ou melhor, do seu próprio espaço, um pequeno edifício centenário que já foi igreja e depois taverna. Hoje é a Mula, mas precisa de um telhado. E sem telhado, não há pão.

Cantina, padaria, oficina, centro cultural e também ponto de distribuição de hortícolas biológicas, a Cooperativa Mula é um projeto de base comunitária que habita este espaço há cerca de dez anos. Entre as atividades sociais e culturais, organiza ciclos de cinema, concertos, oficinas, debates, numa casa que também serve refeições vegetarianas a preço acessível, ao almoço e ao jantar, guardando ainda espaço para um forno a lenha, de onde sai pão quentinho.
E no segundo e quarto domingos do mês é do forno que parte o evento Pizza Domingueira, um dos rituais mais importantes da Mula. “É um evento que sempre nos ajudou a pagar as contas. Tem um bocado essa função, porque é um evento voluntário”, explica André Carapinha, professor de Filosofia e um dos cooperantes que ajudou a Mula a ter cascos para andar.
Contas que passam também pelos projetos de auto-emprego da cooperativa: as pessoas que trabalham na cantina, assim como o padeiro, têm contratos de trabalho. Mas o telhado da cozinha e da chaminé do forno estão em risco.



Já tentaram reparar, mas André confessa que “foi dinheiro mal gasto” e após falarem com quem “percebe do assunto” chegaram à conclusão que o telhado precisa de ser todo mudado, o que implica um investimento significativo. E foi na plataforma de crowdfunding PPL que meteram tudo em pratos limpos: o orçamento para a reparação integral do telhado tem um valor de quase 21 mil euros, enquanto que uma reparação parcial ficará à volta dos 12 mil.
A angariação de fundos online decorre até 22 de agosto e, se tudo correr bem, a obra está prevista arrancar entre setembro e outubro. “É algo que tem de ser feito urgentemente, porque de facto põe em risco muita coisa. No inverno torna-se muito duro estar aqui, mesmo nesta sala há infiltrações. Portanto, creio que no próximo inverno, se não fizermos nada, podemos ter de suspender algumas atividades”, lamenta André.
Naus à vista
A sala onde nos sentámos a conversar fica logo à entrada, um espaço multiusos onde são servidos os almoços e jantares, mas também onde se assiste a ciclos de cinema, se vê concertos e também é possível meter a mão na massa numa das oficinas. Era aqui que operava a antiga tasca, que se servia da sala ao lado como armazém.
E é esse espaço mais escondido, também aproveitado pela Mula para as suas várias actividades, que denuncia o passado histórico desta casa: uma capela do século XV, por onde chegou a passar Vasco da Gama para batizar as naus, construídas não muito longe dali. O espaço religioso, conta-nos André, existiu até ao século XIX, tornando-se uma taberna já no século XX, da qual também sobrevivem algumas memórias, como velhos tonéis de vinho, que resistem ao fundo da sala.
Este pequeno edifício da Telha Velha foi comprado por uma família nos anos 40 e 50 do século passado. E a Mula chegou aqui há cerca de 10 anos, pelas mãos de um grupo de pessoas que se começou a organizar alguns anos antes, ainda no tempo da Troika.
André resume o caminho: “No seguimento do processo das Acampadas no Rossio, pessoas que lá estiveram resolveram fazer uma coisa mais ou menos parecida aqui do Barreiro, que foram umas assembleias populares […] E dos diversos grupos de trabalho criados nas assembleias, aquilo que ficou mais foi a Horta Comunitária, que era ali atrás.” Uma localização que hoje coincide com o local onde será instalado o novo hotel e uma horta comunitária que ocupou terrenos que não estavam a ser utilizados. Concertos, sessões de cinema ao ar livre, debates, workshops ou mesmo um arraial também tinham ali lugar.
Entretanto, receberam um convite da Câmara Municipal do Barreiro para se juntarem à conversão da antiga Escola Conde de Ferreira, num pólo educativo e cultural, mas a parceria acabou por não se concretizar. No entanto, as ideias que tinham desenhado estavam no papel e o coletivo seguiu em busca da sua própria casa. “E este espaço estava junto à horta, já tínhamos olhado muitas vezes para ele. E resolvemos ver o que é que isto dava”, recorda André. Inicialmente, em 2015, fizeram um acordo com os proprietários – a mesma família que aqui abriu a taberna – e três anos depois acabaram por comprar o espaço.


Do lugar esquecido aos ventos de mudança
André conta-nos que estamos no “local mais antigo do Barreiro”. Na verdade, a origem deste lugar que ainda hoje cheira a campo é mais antiga que a própria cidade. Pertenceu ao concelho de Alhos Vedros até ao século XIX, mas há registos da Telha desde o século XVI.
“Este sítio ganha bastante relevância com a construção naval nos Descobrimentos. Daí esta igreja, como viste, que agora é a Mula ou é parte. Este povoado desenvolve-se de tal modo que, na viragem para o século XVII, isto tem à volta 300 e tal habitantes. Hoje em dia, deve ter 70 no máximo. Quando a construção naval deixa de se fazer aqui, a partir do século XVII ou já no século XVIII, a Telha torna-se muito pouco importante”, revela André, em jeito de aula de História. A toponímia local é uma das provas deste passado, como é o caso da vizinha Rua das Naus.

Mas se a Telha Velha estava esquecida, agora foi lembrada e há grandes mudanças a caminho. O futuro empreendimento para a construção de um hotel deverá alterar o tecido social desta comunidade e não vem sozinho. “Aparentemente, irão construir um hotel aqui à frente e uma série de vivendas. E também, dizem os poderes públicos, que vão construir habitação com renda controlada. Espera-se que venham morar para aqui mais umas 200 ou 300 pessoas e, de facto, vai modificar bastante o panorama aqui da zona. E agora andam a aprovar também uma ponte para o Seixal, que vai passar ali em baixo, a 500 metros”, explica o cooperante.
A posição da Mula em relação a estas mudanças divide-se entre o bom e o mau. Por um lado, agrada-lhes o sossego e o saber que “as pessoas que cá vêm são pessoas que querem cá vir”. Por outro, André recorda que já tiveram projetos que correram mal por estarem longe do centro da cidade. “Vamos deixar de estar tão à vontade, mas também vamos ter aqui mais gente, é óbvio isso.”
Aconteça o que acontecer, a Cooperativa Mula continuará a ser um local onde “as pessoas se encontram e experienciam outro tipo de vida, que não é a vida do consumo e do individualismo. É a vida baseada na partilha, na comunidade”, defende André, sublinhando o papel de um espaço social e cultural como este. “De criar laços entre as pessoas, de ultrapassar-se o tipo de relações um bocado mercantis que hoje em dia existem em todo o nível na vida e, no fundo, lutar contra isso.” E se for debaixo de um tecto robusto, melhor.
Nesta altura de férias, a cantina está de portas fechadas, mas regressa a 11 de agosto, enquanto que a restante programação fica em pausa até setembro.