Apesar de ser uma pequena artéria de bairro, a Rua do Sol ao Rato era muito utilizada por condutores para chegar à A5. Com a obra de inversão de sentidos agora em curso, vai perder esse tráfego de atravessamento. Mas será que se perdeu uma oportunidade para dar a esta rua um desenho mais pedonal?

Desde o início do ano que a Rua do Sol ao Rato está em obras. Fomos tentar perceber o que se preconiza para aquela artéria estreita, que há muito vem sendo utilizada como atalho para muitos automobilistas chegarem à auto-estrada, a A5, escapando aos semáforos da Rua Dom João V – que, por ser uma via principal e distribuidora, deveria servir para esse fim. Que melhorias se podem antever no projecto disponibilizado no site da Junta de Freguesia de Campo de Ourique e que outras poderão ter ficado pelo caminho?
Rita Castel’Branco é arquitecta, trabalhou na Câmara de Lisboa durante vários anos e é utilizadora assídua daquele eixo, que há muito defende que deveria ser de coexistência. Quando o viu entrar em obras, esperou o melhor, mas cedo começou a ver os lancis a ressurgirem, ficando apreensiva. “Vão inverter os sentidos da rua e muito bem, para tirar o trânsito de atravessamento. A melhoria é substancial, mas perdeu-se uma oportunidade de mudar o carácter da rua, de algo centrado no automóvel para um desenho centrado nas pessoas”, explica-nos.
Aquela rua constitui uma ligação pedonal importante, pois liga directamente o bairro de Campo de Ourique à estação de metro do Rato, aos demais transportes públicos que por ali passa e a importantes zonas da cidade. “Por isso tem tantos peões, apesar dos passeios estreitos e desconfortáveis e do intenso tráfego rodoviário. A actual procura deixa adivinhar um enorme potencial pedonal, se outras condições forem dadas às pessoas.” Ao se inverter os sentidos, parte substancial do tráfego irá evaporar e é natural que mais peões se sintam convidados a utilizar a rua, como aponta Rita. “Vai passar a ser daquelas ruas que têm um carro de vez em quando. E, no entanto, voltamos a criar um espaço que atribui mais espaço aos poucos automóveis que ali irão circular, do que às muitas pessoas que a percorrem.”


“Em ruas de sentido único como esta podem ser alcançadas melhorias substanciais com a simples inversão de sentido ao longo de toda a rua ou de um troço da mesma. Desta forma, elimina-se a grande maioria do tráfego, acalma-se a velocidade de quem conduz e potencia-se a coexistência”explica. “Há muito que venho defendendo a eliminação do tráfego de atravessamento em ruas de Lisboa com perfis demasiado estreitos para as funções rodoviárias que estão a cumprir e que, por isso, não oferecerem as mais elementares condições para uma pessoa andar a pé – nem mesmo para quem goza de mobilidade plena.” A arquitecta, apaixonada por uma visão mais humana da cidade, não tem dúvidas: “Por muito que nos tenhamos habituado a passeios de meio metro, a ponto de não os questionarmos, a generalidade das pessoas concordará que estes não são aceitáveis, colocando em causa a segurança de uns e a liberdade de outros, inibindo as pessoas de andar a pé e comprometendo o acesso aos transportes públicos.”

Esta rua só vai está a ser intervencionada, para já, no quarteirão junto ao Largo do Rato, a partir do qual os condutores deixarão de poder aceder à rua e passarão a ser obrigados a dar a volta pela Dom João V para aceder ao bairro de Campo de Ourique. A partir da Rua D. Dinis, que termina na Rua do Sol ao Rato, passará a ser possível descer até ao Largo do Rato ou subir em direcção ao bairro, mais concretamente às ruas Silva Carvalho e de Campo de Ourique. “A Rua do Sol ao Rato ficará só com trânsito local, salvaguardando a saúde e o sossego dos moradores”, perspectiva Rita. Ainda assim, o Presidente da Junta refere que a diminuição do tráfego, com o corte já feito por causa da obra, não chegou aos níveis pretendidos.“Em obra, não estamos a ter uma redução do trânsito como gostaríamos. Achei que íamos ter uma redução grande e não está ainda aí.”
Os passeios da Rua do Sol ao Rato sempre foram estreitos. Apesar de esta ser uma rua de sentido único, o espaço que poderia assegurar um melhor passeio serve para estacionamento automóvel – algo que na freguesia de Campo de Ourique, em particular naquela zona, é um bem escasso, como aponta o Presidente da Junta de Freguesia, Pedro Costa. “Ao contrário do que acontece no resto do bairro de Campo de Ourique, aqui em Santa Isabel há zero soluções possíveis para estacionamento de grande tamanho, seja à superfície ou em silo. Não há terrenos para isso”señala. “Temos mesmo um problema de falta de estacionamento.” Nas ruas que cruzam com a do Sol ao Rato, a disponibilidade de lugares já é escassa; e o Presidente da Junta de Campo de Ourique admite que não é possível melhorar a mobilidade pedonal das ruas da Páscoa e da Arrábida e dotá-las de acessibilidade plena sem mexer no estacionamento.
Em 2019, a EMEL abriu um parque de estacionamento com 245 lugares para automóveis na Rua Correia Teles, nos Prazeres, que custou 2,21 milhões de euros (cerca de nove mil euros por lugar) e que foi construído num terreno outrora baldio. Neste ano, está em concurso público um outro parque, em silo, com 89 lugares e com um custo previsto de 2,56 milhões de euros (cerca de 28,8 mil euros por lugar), na Rua Padre Francisco, também nos Prazeres e também num terreno baldio, a pouco mais de um quilómetro da Rua do Sol ao Rato e de toda a zona de Santa Isabel onde está inserida. Para Pedro Costa, estes investimentos são importantes para libertar espaço público nas ruas. O Presidente da Junta diz que não pode prescindir, pelo menos por agora, dos lugares do Sol ao Rato.

Para a arquitecta, o que está em causa não é o acesso local nem os sete lugares de estacionamento que a Junta prevê manter naquele troço. Mas apenas o carácter da rua que, para ser de coexistência, deveria ser toda de nível e ter um pavimento que desse uma clara indicação de prioridade ao peão, em vez de asfalto. Em vez disso, o troço intervencionado manterá a rua dividida entre estrada e passeio, apesar de estar previsto que a área pedonal, com piso de calçada, passe a estar quase à mesma altura que a rodovia, cujo pavimento será asfalto. “A rua poderia ter tido um novo desenho que conferisse ao espaço uma leitura mais pedonal, mais apetecível para o peão”, referiu Rita, sustentando-se no elevado tráfego pedonal que ali existe devido a toda a oferta de transportes públicos existente no Rato.
Mesmo com um perfil de rua em que o espaço pedonal é diferenciado do viário, em vez de um desenho no qual os diferentes modos se confundem, a área do peão vai aumentar com a criação de uma nova “área de uso intensivo”, isto é, de uma zona que durante o dia serve de passeio e que à noite é estacionamento automóvel. Pedro Costa, que defende estes usos multi-funcionais dos mesmos espaços, diz que “a fiscalização hoje já acabou com o estacionamento abusivo nas zonas de uso intensivo” que foram criadas noutras ruas da freguesia, apesar de admitir problemas no início e que a falta de fiscalização é um problema geral em Lisboa.



No quarteirão da Rua do Sol ao Rato agora intervencionado, a “área de uso intensivo” proporcionará um passeio de cerca de dois metros, que o pouco comércio local ali existente poderá eventualmente usar para fazer pequenas esplanadas; à noite, poderão ali estacionar sete veículos. A rodovia terá três metros de largura, as intersecções com a Rua D. Dinis e Avenida Álvares Cabral serão com passeio contínuo (um desenho urbano que tem sido cada vez mais utilizado em Lisboa e que confere maior prioridade ao peão), está prevista a plantação de uma árvore de porte pequeno e a colocação de guias para pessoas invisuais em todos os atravessamentos pedonais.
Segundo o estudo prévio já realizado para uma futura intervenção de toda a rua, não estão planeadas mais mudanças substanciais, tirando melhorias gerais dos passeios e da acessibilidade, e renovação dos pavimentos. O projecto de execução final poderá ser diferente – como, aliás, foi o deste quarteirão em relação ao estudo prévio –, sendo que, para Pedro Costa, há a certeza de que “o reperfilamento total da Rua do Sol ao Rato vai responder a problemas de outras ruas” de Santa Isabel, sendo o objectivo ideal e futuro criar uma coerência urbana ao nível de todo o bairro e daquela zona.


O Presidente da Junta de Campo de Ourique entende que a obra na Rua do Sol ao Rato, como outras já realizadas, “é uma obra intermédia e de transição” que deixa a rua pronta para outros eventuais desenhos no futuro, como a criação de uma zona de coexistência ou até mesmo de um espaço maioritariamente pedonal na parte da rua que agora está em obra (a limitação seria apenas garantir o acesso a uma garagem agora existente). “Não estamos numa fase em que se possa fazer essa pedonalização”, entende Pedro Costa, que acredita também que a chegada do Metro a Campo de Ourique em 2026 vai alterar a actual movimentação de peões naquela rua, pois passará a existir uma estação mais próxima do bairro.
Enquanto fotografávamos e discutíamos a Rua do Sol Ao Rato, uma moradora interrompe-nos. “Não nos vão tirar daqui o estacionamento, pois não?”, questiona-nos receosa, ao ver aquele troço da rua cortado e virado do avesso. Maria, de 67 anos, reside na Rua do Sol ao Rato e diz que “tem muita dificuldade para estacionar aqui o carro”. Dizemo-lhe que não, que o estacionamento se vai manter mas apenas durante a noite. A preocupação de Maria vira-se, então, para outras componentes da rua. “Espero que melhorem os passeios que eram passeios horríveis. Uma vez vi uma senhora a cair ali por causa de o piso estar escorregadio”, contou, dizendo que preferia que colocassem pavimento confortável a calçada portuguesa. “Deviam manter a calçada portuguesa apenas nos sítios históricos.” Perguntamos se não preferira uma praça pedonal com mais espaço de estadia e convívio ali na sua rua; Maria responde sem hesitar que não vê utilidade nisso e que temia que pudesse trazer barulho e perturbar o descanso. “A maior estupidez que podem fazer é gastar dinheiro para colocar bancos na rua. Eu tenho lá um degrau na minha porta. Se as pessoas quiserem, podem sentar-se lá”bromea.
A Rua do Sol ao Rato é uma das novas artérias que se encontram no Rato, um largo onde a prioridade é evidentemente dada a carro. “Moro aqui há 43 anos e já me conformei com demorar sempre tanto tempo a atravessar o Largo do Rato”, diz Maria. Rita Castel’Branco já fez uma proposta de redesenho de todo aquele largo, que também já teve uma proposta no âmbito do programa municipal Una plaza en cada barrio – que nunca chegou a ser intervencionada. “É preciso olhar para isto e perceber o que podemos tirar em termos de movimentos e de volumes de tráfego, e o que podemos colocar”dice. “Era importante resolver o largo ao nível da rede ciclável, por exemplo.” Com três ou quatro cotas de terreno diferentes, o Largo do Rato é o ponto de encontro de quatro eixos viários principais – a Rua D. Dinis I, que segue para as Amoreiras, a Rua Alexandre Herculano, que liga ao Marquês de Pombal e à Avenida da Liberdade, e a Avenida Álvaro Cabral, que vai para a Estrela.

Aqui cruzam ainda a Rua da Escola Politécnica, que com o corte de trânsito previsto na Rua de São Pedro de Alcântara deverá perder muito do tráfego que tem hoje em dia, a Rua de São Bento, que poderia também perder muito do seu peso rodoviário actual, e ainda algumas ruas secundárias, como a já referida Rua do Sol ao Rato. “Há movimentos que fazem falta e há outros que se calhar, se forem inibidos, podem tirar automóveis daqui do Largo.” Para Rita, é preciso olhar para as redes viária, pedonal, ciclável e de transportes públicos como um todo e de forma integrada, mas a obra na Rua do Sol ao Rato para quebrar a possibilidade de atravessamento vai ser importante para a dinâmica do Largo. No fundo, pode acontecer a essa rua o que sucedeu à Rua do Salitre, que também intersecta no Rato, há largos anos, quando um grupo de moradores, desesperado com o intenso tráfego que ali circulava, se propôs pagar uma intervenção que o acalmasse. A questão resolveu-se, a custo zero, com a alteração de meia dúzia de sinais de trânsito e sem contestação: os moradores ganharam sossego; os peões conquistaram segurança; e os condutores que utilizavam a rua como atalho terão percebido a justeza da alteração. “Hoje é uma rua com muito pouco trânsito e que continua quebrada a meio, impedindo o tráfego de atravessamento”, diz Rita.

Voltando à Rua do Sol ao Rato. A obra no quarteirão junto ao Largo do Rato está a ser executada pela Junta de Campo de Ourique e financiada pela Câmara de Lisboa, custando cerca de 55,8 mil euros. A empreitada arrancou no início de 2023 e deverá ficar concluída em Abril. Em relação a uma intervenção em toda a rua, não existe calendário para já.