Bem-vindos a um sonho chamado “Bairro do Grilo”

E se os sete hectares da ala norte da Manutenção Militar – actualmente subaproveitados – fossem transformados num vibrante “bairro das artes”, com espaços dedicados à fotografia, ilustração, música, teatro e dança, mas também ao vinho, ao azeite, ao jornalismo e ao néon? E se esse “bairro” incluísse ainda quartos para estudantes e habitações de renda acessível? Esta é a ambiciosa proposta de José Sá Fernandes para o complexo que, até ao final de 2024, serviu de sede à equipa responsável pela coordenação da Jornada Mundial da Juventude.

Cineteatro na antiga Manutenção Militar. Poderia ser recuperado para a criação do “Bairro do Grilo” (fotografia LPP)

É um sonho que, talvez, nunca se concretize. Mas sonhar também também nos permite idealizar algo que deixe uma marca significativa na cidade e na experiência de quem nela vive. Chama-se Bairro do Grilo e é um sonho para revitalizar a ala norte da antiga Manutenção Militar, localizada no Beato, em Lisboa. Este projecto procura transformar este espaço de sete hectares num bairro dedicado à cultura, às artes e à comunidade da cidade em geral.

Esta iniciativa ambiciosa, que poderia custar algo como 50 milhões de euros para concretizar, pretende adaptar aquelas instalações do Exército português, dando-lhes novas utilizações, com a recuperação de duas dezenas de edifícios, que estão em relativo bom estado. Entre o património a recuperar, está um extraordinário cineteatro, com um auditório de 500 lugares, onde poderiam ser apresentadas peças de teatro e projectados filmes. A proposta deste Bairro do Grilo inclui ainda ateliês para artistas, galerias e espaços de trabalho, num ambiente favorável à criatividade e à colaboração.

A ala norte da Manutenção Militar ter cerca de sete hectares (fotografia LPP)

Uma das outras grandes apostas da proposta do Bairro do Grilo é a integração de mais 200 habitações no complexo, privilegiando a criação de casas a preços acessíveis, além de uma residência universitária com cerca de duas centenas de quartos. No fundo, o Bairro do Grilo seria um espaço multifacetado, misturando habitação, espaços culturais, ateliês e áreas de convívio – um espaço que seria uma resposta à pressão imobiliária e também teria de ficar afastado desta.

Espreita algumas fotografias do estado actual da ala norte da Manutenção Militar:

O que o LXFactory não foi

O Bairro do Grilo poderia ser aquilo que o LXFactory acabou por não ser, porque foi gentrificado e se virou para o turismo: um pólo cultural e comunitário numas antigas instalações industriais. Na verdade, a Manutenção Militar foi o local onde, há mais de cem anos, o Exército português fabricou a armazenou farinhas, massas, pão, bolachas e outros alimentos da fileira dos cereais, e também azeite, vinho, conservas, açúcar, café e outras guarnições militares. O complexo da Manutenção Militar era uma pequena cidade dentro de outra: tinha uma vila operária, um reservatório de água, cantinas e supermercados militares, silos de azeite, depósitos de vinho, armazéns, oficinas, uma creche e escola primária, um cineteatro, hortas, campos de jogos e também uma estação ferroviária.

Agora, pretende-se criar uma outra pequena cidade. Foi com o mote “Aqui podia ser…” que foram apresentadas, à comunidade, ideias concretas para cada um dos edifícios: desde uma “casa da fotografia” a uma “casa do vinho”, passando pela “casa do neón” ou pela “casa da informação”.

Fica a conhecer melhor cada uma das propostas:

  • Casa da Fotografia: “uma casa que valorize a fotografia nas suas várias dimensões; que programe – exposições, conversas, debates, ciclos –, que investigue e dê formação – oficinas, cursos e residências artísticas. Um espaço que reúne autores emergentes e autores consagrados da fotografia, nacionais e internacionais. Um sítio aberto a todos os públicos e a autores de diferentes áreas de intervenção e diferentes geografias”, com galerias expositivas, uma biblioteca/livraria, uma sala de formação, um laboratório/estúdio de fotografia e uma cafetaria;
  • Casa da Ilustração: “uma casa para fomentar a criação e reunião de ilustradores, designers, cartoonistas e outros artistas, da BD ao graffiti, do desenho à animação e aos novos formatos digitais. Um espaço que pode ser de mostra e exposição, mas também de ensino, experimentação e muita criatividade”, com galerias expositivas, uma biblioteca/arquivo, salas de formação e ateliês;
  • Casa da Música: a “espaço de música e de músicos, de produtores, artistas e bandas, dos que já têm palco aos que estão a começar. Este grande armazém pode ter lugar para todos e para tudo: criação, ensaios, gravações, produções, performances. Pode ser uma academia de música onde se aprende música de forma alternativa às escolas tradicionais. Uma casa aberta a todos os talentos, com um ambiente de grande proximidade à comunidade artística local”, e que ofereça estúdios de gravação, salas de produção, espaços de ensaio e salas de espetáculos;
  • Casa do Néon: “uma casa que acolha a coleção de letreiros antigos da cidade, néons e caixas de luz das casas comerciais, hotéis e bares, que marcaram a paisagem urbana durante décadas. Um espaço museológico que preserve o património gráfico e cultural, a história das letras, das palavras, a tipografia e as artes gráficas. Uma galeria para expor mais de 400 peças que despertam a memória individual e coletiva das pessoas da cidade” e que tenha também salas de trabalho;
  • Casa das Artes Plásticas: “uma casa para todas as artes e criações”a “pintores, escultores, ceramistas, tecelões, costureiros e criadores de moda”. “Um espaço de grandes dimensões onde cabem grandes produções, mas também pequenos projectos; onde podem ter lugar ateliês de artistas, coleções, exposições, desfiles de moda e outros eventos”, mas onde também há espaço para uma loja de venda ao público;
  • Casa do Som: “um lugar para a escuta. Uma casa-laboratório para os cruzamentos disciplinares. Um espaço dedicado à investigação, experimentação e aprendizagem sobre som, tecnologia e criação artística. Uma galeria de arte sonora. Um centro cultural de vanguarda para as artes sónicas e música exploratória, onde o som pode ser sonhado, gerado, escutado, percebido, explorado e estudado”. Um espaço com estúdios de gravação, palco para concertos, sala para workshops e residências artísticas;
  • Casa do Vinho: um espaço que permita preservar a memória de uma antiga adega onde se armazenaram “grandes quantidades de vinho durante muito tempo”. O espaço “pode passar por um projecto focado na difusão da cultura do vinho português, que promova o intercâmbio entre produtores e a mostra de produtos” e que tenha uma galeria e uma loja;
  • Casa do Teatro e da Dança: a “amplo espaço para ensaios, para produções e apresentações” de companhias de teatro e de dança.
  • Casa da Informação: uma redacção partilhada por jornalistas freelancers e pequenos órgãos de comunicação social, com um estúdio audiovisual, e “que promova o pensamento crítico e o acesso à informação”. Um espaço que seja “um diálogo aberto a jornalistas emergentes e consagrados, comunicadores e criadores de narrativas, que tenham origem em projetos em papel, digitais ou audiovisuais”;
  • Casa da Inovação: “um espaço onde se testa o futuro da arte, da criatividade, dos direitos humanos e da transformação social. Uma casa que mostra que o futuro está na experimentação, sem medos e sem preconceitos”, com uma oficina, uma galeria e uma loja;
  • Casa do Azeite: porque “preservar a memória da Manutenção Militar pode passar por manter os seus grandes silos de azeite”, esta casa propõe-se ser um “novo projecto que possa funcionar como centro de literacia deste produto português, montra da produção nacional, espaço de partilha, de conhecimento e de muitos outros usos”, com uma galeria e loja.

Mais que artes e cultura: um pólo comunitário

Além de todas estas “casas” temáticas – no total, 11 –, também foi proposta a Casa Comum, que poderia “funcionar como grande galeria de exposições, mas também como espaço de eventos e apresentação de produtos e actividades”. Com um palco, ateliês e uma galeria, esta Casa Comum seria uma “casa para produções e co-produções dos vários projectos e colectivos de artistas em presença no Bairro do Grilo”, unindo toda a comunidade deste bairro.

A Casa-Mãe, por seu lado, seria uma área de bar e restauração “para petiscar e beber um copo”, mas também para ver uma exposição ou assistir a um concerto. Já a Casa dos Fregueses seria o edifício central do Bairro, que funcionaria como recepção, local de acesso a serviços públicos, e teria ainda espaços de trabalho e reunião, para os projectos locais e para actividades comunitárias. A todos estes espaços, não podemos esquecer do já referido Cineteatro, que seria um espaço aberto “aos grupos e companhias de teatro, aos actores, produtores e realizadores, e a outros artistas e actividades” e que, além da sala de espectáculos, contaria com um vestíbulo e camarins.

O projecto do Bairro do Grilo contaria ainda com uma componente habitacional importante. Por um lado, uma residência universitária, chamada de “Casa dos Estudantes”, que seria um espaço “para os que escolhem Lisboa para estudar e viver a sua experiência universitária”. Teria 200 quartos e espaços comunitários para estudar, viver e conviver, como uma sala de estudo, uma cozinha, um refeitório e uma lavandaria. Por outro, o Bairro teria “mais de 200 casas” de habitação acessível, com a recuperação de um conjunto de dois edifícios e nova construção. “Um projeto que configura, na freguesia do Beato, uma resposta à crise de habitação que a cidade de Lisboa vive, permitindo o acesso ao arrendamento a preços compatíveis com os rendimentos das famílias.”

Um legado da JMJ?

Com notícias de associações culturais e de outras colectividades a verem-se empurradas para fora dos edifícios que ocupavam no centro da cidade, o surgimento de um “Bairro do Grilo” poderia ser uma resposta pública para todos estes movimentos artísticos e comunitários. A alta sul da Manutenção Militar começou a ser transformada, em 2017/18, no Hub Criativo do Beato – agora Beato Innovation District – com grandes empresas e start-ups de tecnologia.

Por sua vez, a ala norte, para onde se projecta este sonho do “Bairro do Grilo” teve, até ao final de 2024, três ocupações: ser a sede da equipa de coordenação da Jornada Mundial da Juventude, ser um Centro de Acolhimento de pessoas em situação de sem abrigo (depois de o Quartel de Santa Bárbara ter sido desactivado), e acolher o Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa. Desde o início deste ano, apenas duas destas funções se mantém, ainda que de modo temporário: a resposta aos sem abrigo, e os bombeiros. É que a equipa de coordenação da Jornada Mundial da Juventude, liderada por José Sá Fernandes, cessou as suas funções a 31 de Dezembro de 2024. E a proposta do “Bairro do Grilo” é uma ideia que Sá Fernandes, um político que sempre gostou de um sonhador, quis apresentar à cidade.

Recentemente, a ala norte da Manutenção Militar abriu as suas portas ao público para apresentar o seu potencial do espaço como epicentro cultural e comunitário. Durante o fim-de-semana de 23 e 24 de Novembro, a população pôde conhecer os planos de requalificação e as múltiplas possibilidades de utilização das instalações. Pôde também visitar uma exposição de ilustração, a banda desenhada e cartoons de 100 artistas portugueses, criada em específico para aquele espaço. A mostra esteve de pé durante um mês, tendo a “despedida” sido assinalada na tarde do dia 21 de Dezembro, um sábado.

Nesse momento de dizer adeus, as portas das antigas instalações militares voltaram a abrir-se ao público. Alguns dos colectivos e personalidades que mostraram interesse no “Bairro do Grilo” fizeram uma última visita à mostra artística e ficaram a conhecer os próximos passos do projecto. “Isto é uma exposição efémera. Foi feita para aqui e é daqui. Vai ficar aqui. Vou ceder a chave à Junta de Freguesia para poder abrir a porta. Para já, a Junta ficará a guardiã da exposição e depois logo se vê”, disse Sá Fernandes, naquele sábado, que era também um dos últimos dias das suas funções na equipa da Jornada Mundial da Juventude.

“Isto é o final de uma tentativa de mostrar este espaço gigantesco e o que ele poderia ser. Aqui poderá ser tudo”, disse Sá Fernandes, revelando que, apesar de a população só ter tido um fim-de-semana de portas abertas, ele mesmo se encarregou de mostrar o espaço a potenciais interessados. “Mostrei isto a muita gente e poderia ter mostrado a muito mais, mas não consegui”, desabafou, referindo que o próximo passo já está a ser trabalhado: será o lançamento de uma petição pública para fazer pressão junto da ideia do Bairro do Grilo. “Serei um dos primeiros a assinar”, disse Sá Fernandes, garantindo que só o faria depois de terminar as funções públicas.

No final daquele sábado de Dezembro, os cartazes do “Aqui podia ser…”, que se encontravam espalhados por toda a ala norte da Manutenção Militar, foram colocados à entrada deste complexo, numa espécie de provocação. Já a petição será lançada, em breve, na plataforma Petição Pública com uma dezena de assinaturas iniciais de personalidades das artes e da cultura; a partir daí, qualquer pessoa poderá subscrever o manifesto.

Será que o sonho do “Bairro do Grilo” alguma vez se concretizará? En lucros obtidos com a Jornada Mundial da Juventude, de 31,4 milhões de euros, ou a oportunidade do PRR poderiam ter sido veículos para colocar de pé este mega-projecto, que daria à cidade um novo ponto de encontro numa área mais periférica da cidade, que, ainda assim, tem vindo a ganhar centralidade com projecto do Beato Innovation District.

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