
Arrancam esta semana as obras na Avenida de Berna para construir uma ciclovia que ligará de forma directa a Praça de Espanha à Avenida da República, e vice-versa. Esta intervenção vai envolver também a criação de um corredor BUS que integrará um corredor maior de transportes públicos e de “elevado desempenho” entre Alcântara e o Areeiro. As alterações terão impacto no espaço até agora reservado ao automóvel naquela avenida, que perderá uma a duas vias de circulação e todo o estacionamento, num total de 101 lugares à superfície.
A nova Avenida de Berna, que deverá estar pronta dentro de três meses, passará a contar com duas vias de circulação, um corredor BUS e uma ciclovia undireccional em cada sentido. As mudanças, por implicarem o fim do estacionamento – considerado um direito adquirido – não agradam a todos, tendo levado a que, na semana passada, “numa noite fria”, três dezenas de pessoas se juntassem para uma sessão presencial de uma assembleia de freguesia nas Avenidas Novas, conforme relata o jornal Mensagem.
O jornal fala num “debate aceso, e polarizado”, que arrancou com uma apresentação do projecto pelo vereador da mobilidade da Câmara de Lisboa, Miguel Gaspar, seguindo-se participações de alguns fregueses e munícipes que se inscreveram para participar. Entre os intervenientes esteve Luís Castro, representante dos Vizinhos de Arroios e uma das figuras mais visíveis da luta conta as ciclovias, em particular a da Almirante Reis; Luís terá acusado o município de “mentir descaradamente” e de falsificar a monitorização anual do volume de ciclistas na cidade, referindo que essas contagens são “promovidas por fanáticos da bicicleta no Instituto Superior Técnico” et que “os adeptos das bicicletas estão a ir buscar bicicletas ao ferro velho e estacionam-nas [na rua] para fazer crer que há bicicletas [em Lisboa]”, segundo reporta o jornal Mensagem.

A Mensagem escreve que a oposição à remoção do estacionamento na Avenida de Berna e à criação de uma ciclovia foi concertada em grupos de Facebook, nomeadamente no grupo Avenidas Novas Cidadania, onde é possível encontrar “várias as publicações de teor político, a grande maioria de oposição ao actual executivo camarário e especificamente contra Fernando Medina”. De acordo com o jornal, uma parte das intervenções foi realizada por membros deste grupo, mas na sessão terão participado também dois membros da Juventude Socialista em defesa do projecto. A reportagem completa da Mensagem poder ser lida aqui.
“A guerra das ciclovias trava-se sobretudo no espaço digital, nas caixas de comentários das redes sociais e nos grupos, uns privados, outros públicos. Mas o que a sessão da semana passada nas Avenidas Novas mostra, é que a guerra está a alargar-se à política, o que ganha ainda mais importância tendo em conta que Lisboa está em plena pré-campanha eleitoral. A luta do trânsito, estacionamento e ciclovias vai ser um dos temas da campanha que se aproxima, é certo. Vai dividir – já divide – o eleitorado.”
– Frederico Raposo, Mensagem
Lugares vagos na Avenida de Berna
Respondendo e acautelando as preocupações dos moradores das Avenidas Novas, a Câmara de Lisboa não vai aumentar o número de lugares nas imediações mas reservar mais lugares para residentes em marcações existentes. De acordo com um levantamento da autarquia, divulgado durante a sessão, existem 1072 lugares na zona da Avenida de Berna e artérias adjacentes, dos quais 20% estão livres no período nocturno; na Avenida de Berna, durante a noite, os residentes ocupam habitualmente 60 dos 101 lugares disponíveis.
A Câmara de Lisboa revelou ainda que existem quatro parques de estacionamento subterrâneos nas imediações com taxas de ocupação entre os 35% e 50%, à data de Janeiro de 2020. Dados que revelam disponibilidade de estacionamento na zona.

A autarquia lembrou também que a zona da Avenida de Berna tem forte disponibilidade de transporte público. Além do Metro de Lisboa e dos autocarros da TST, a avenida é atravessada por 18 autocarros/hora das carreiras 716, 726 e 756 da Carris, transportando 5,6 milhões de passageiros/ano (dados de 2019); a oferta da Carris na Avenida de Berna cresceu 17,2% desde 2017. A Câmara de Lisboa, que gere a Carris, quer aumentar ainda mais esta disponibilidade de transporte público com o prolongamento do corredor BUS da Avenida de Ceuta até à Avenida João XXI, para depois seguir por esta até ao coração do Areeiro.
Um debate que não é novo
O debate sobre ciclovias tem estado agitado há vários meses em Lisboa, pelo menos desde que a transformação da cidade começou a ser mais visível no que à redução do espaço reservado ao automóvel diz respeito. Em 2016, o projecto original da Avenida da República, que previa duas ciclovias undireccionais, uma em cada lado da avenida, teve de ser alterado por forte pressão dos moderadores, preocupados com o que seria uma grande redução da oferta de estacionamento na ordem dos 300 lugares.
Mas a diminuição não chegou nem a uma centena com a opção de construir uma ciclovia bidireccional num dos lados da Avenida – que hoje é a mais usada da cidade e que apresenta vários problemas para a segurança de peões e ciclistas por causa do bloqueio visual que as paragens de autocarro oferecem. Na apresentação do projecto final, Fernando Medina, na qualidade de Presidente da Câmara de Lisboa, revelou que seriam perdidos apenas 60 lugares na Praça Duque de Saldanha e que na restante avenida até seriam ganhos sete lugares, devido à criação de estacionamento oblíquo no lado sem ciclovia.
Mais recentemente, a bande cyclable sur l'avenue Almirante Reis, onde o volume de ciclistas terá crescido 140% após a sua introdução no Verão do ano passado, passou a ter “costas largas” para aquilo a que uma pétition chama de “ciclovização desenfreada” da cidade. A ciclovia foi alvo de duras críticas, que começaram no grupo de Facebook Voisins de Arroios – entretanto formalizado enquanto associação –, passaram pela recolha de assinaturas num estabelecimento da avenida e culminaram em reuniões entre os “vizinhos” e a vereação da Câmara de Lisboa. Desde a construção daquela infraestrutura ciclável, às custas de uma via de trânsito no sentido ascendente, foram feitas algumas melhorias ao nível das paragens de autocarro e dos lugares para cargas e descargas, mas a polémica ciclovia vai mesmo desaparecer este ano para dar lugar a outra configuração, que permita conjugar as necessidades dos ciclistas com a de os carros, autocarros e eléctricos se cruzarem na via.

Apesar desse compromisso, as vozes de contestação não acalmaram e o assunto das ciclovias com a Almirante Reis chegou a uma reunião plenária da Assembleia Municipal em Janeiro, conforme relata o jornal Público. O debate foi motivado por três petições públicas – a que pedia a “suspensão imediata da ciclovização desenfreada”, outra a “apoiar o aumento do espaço pedonal e da rede ciclável” e uma terceira “por uma melhor ciclovia para a Av. Almirante Reis”. As petições foram juntas num só relatório e numa só sessão pela Comissão de Transportes, Mobilidade e Segurança. O debate aconteceu, sem se chegar a lado nenhum; houve críticas de um lado e do outro da história, e acusações entre partidos políticos.
António Prôa, do PSD e presidente da tal Comissão de Transportes e Mobilidade, acusou o executivo de Medina de “estender ciclovias a qualquer custo para mostrar obra” e de, dessa forma, “colocar uns lisboetas contra os outros”, como transcreve o jornal Público. Fernando Correia, do PCP, disse que a ciclovia da Almirante Reis foi uma surpresa para muitos e transformou aquela avenida num inferno; Cláudia Madeira, d’Os Verdes, bateu na tecla dos estudos e no envolvimento da população; Gabriel Baptista, do CDS, falou em “uma ditadura da minoria”. Já o BE, o Livre e o PS defenderam a política.
A oposição às ciclovias, em particular, e à reconversão do espaço público, em geral, dá-se sempre que se mexe com a área do automóvel. A situação é delicada e uma cidade não se muda de um dia para o outro. Questiona-se a ausência de estudos que comprovem a necessidade de ciclovias e argumenta-se que estas estão maioritariamente vazias. Ora, dados recolhidos anualmente pelo Instituto Superior Técnico e publicados em relatório mostram precisamente o contrário e até a utilização da bicicleta em artérias onde não existe infraestrutura ciclável, sugerindo que esta pode ser adequada no futuro.