O que poderia ter sido a Gare do Oriente: uma viagem pelo arquivo da cidade

Artigo de Tomás Ribeiro.

A Gare do Oriente não é uma mera estação de comboios, nem foi desenhada para ser apenas isso. Mergulhamos na história da cidade de Lisboa para descobrir o que poderia ter sido este edifício icónico da cidade.

Photo : Mário Rui André/Lisbon For People

Quando descemos a Avenida de Berlim, podemos atentar na sua diversidade. Nas típicas casas do Bairro da Encarnação à nossa esquerda, nas enormes árvores que ladeiam a avenida de um lado e do outro, ou nos velhos prédios dos Olivais à nossa direita. Mas, se olharmos bem para o fundo da avenida, notamos uma silhueta estranha, artificial mas ao mesmo tempo orgânica. Enormes árvores de aço e vidro que parecem quase formar uma catedral gótica e que nos deixam intrigados sobre o que vamos encontrar no final daquele longo caminho.

Essa estranha mas inconfundível silhueta que há 20 anos adorna o final da Avenida de Berlim é nada mais nada menos que a Gare do Oriente – outrora, a imponente porta de entrada da Expo 98; hoje, um ícone do Parque das Nações e, para quem chega de paragens mais longínquas, um dos primeiros edifícios com os quais contacta da cidade de Lisboa.

A Gare do Oriente não é apenas uma mera estação de comboios, nem foi desenhada para ser apenas isso. A Gare do Oriente é um marco da cidade de Lisboa e um lembrete do gigantesco empreendimento que foi a exposição universal de 1998. A face de uma nova Lisboa mais moderna, a tentar progredir nunca esquecendo a sua milenar ligação ao rio e ao mar. É uma estação polémica também, acarinhada por muitos, detestada por outros tantos, é daquelas obras que, como se costuma dizer, ou se ama ou se detesta.

Mas a estranha silhueta que hoje vemos erguida no final da Avenida de Berlim poderia ser uma coisa muito diferente. E hoje, vamos mergulhar na história da cidade de Lisboa e descobrir o que poderia ter sido a Gare do Oriente e que ideias alternativas à do arquitecto espanhol Santiago Calatrava existiram.

Photo : Mário Rui André/Lisbon For People

De estação a Gare

Algo que poucos se recordarão hoje em dia, é que antes da Expo, já existia uma estação onde hoje assenta a Gare. Era a estação dos Olivais, inaugurada em 1856, nos primórdios da ferrovia em Portugal. Esta pequena infraestrutura, já muito degradada então, viria a ser totalmente demolida para os trabalhos iniciais de construção da exposição universal e da estação Oriente.

O concurso Internacional para o projeto da Gare do Oriente não seria um concurso público normal aberto mas sim um concurso por convite, decisão que na altura acabou por gerar alguma polémica. Foram convidadas seis equipas: João Paciência com Ricardo Bofill, Nicholas Grimshaw com Duarte Nuno Simões, Terry Farrell com Miguel Correia, Santiago Calatrava, Gonçalo Byrne e Rem Koolhaas, sendo que os últimos dois nomes da lista acabariam por declinar o convite, não chegando a apresentar propostas.

O objetivo do concurso revelou-se ambicioso. Os concorrentes teriam que desenhar um interface de transportes que interligasse o comboio com o metro e os autocarros, ao mesmo tempo funcionasse como um viaduto para a Linha do Norte vencer o “vale” formado pela Avenida de Berlim. Teria de ser funcional mas ao mesmo tempo era claro que o concurso pedia uma estrutura icónica que se destacasse, que fosse digna da entrada de uma exposição universal e da nova página que se virava na história da cidade de Lisboa rumo à modernidade. E era ainda necessário que a estrutura fosse o mais permeável possível e minimizasse o “efeito barreira” natural do caminho de ferro no espaço urbano.

O pragmatismo de João Paciência com Ricardo Bofill

Esta dupla de arquitetos apresentou a proposta mais conservadora das quatro.

Maquete do concurso (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

A Gare do Oriente de Paciência e Bofill era dominada por uma cobertura cinzenta e plana, suspensa por tirantes a partir de pilares elevados. Esta vasta cobertura protegia o corpo central da estação onde ficariam as plataformas, átrios, serviços e comércio.

O lado oriental do edifício (lado Centro Comercial Vasco da Gama) seria dominado por duas grandes torres gémeas e por uma enorme escadaria que ligaria o átrio principal de acesso às plataformas da estação ao nível da Avenida D. João II.

Vista do lado do recinto da Expo (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Nesta imagem, é notório o efeito de abertura dado pelas paredes envidraçadas da estação, a cobertura, suspensa pelos tirantes, parece quase flutuar por cima do átrio principal.

O lado ocidental da estação tinha um desenho menos imponente. A sul e a uma cota inferior, ficaria alojado o terminal rodoviário. Mais a norte e a uma cota mais elevada (proporcionada por um aterro) ficaria a praça de táxis e zona de largada para automóveis.

Vista do lado da Avenida de Berlim (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

É também de notar uma das características mais curiosas desta proposta: a inclusão de dois cais para teleféricos que serviriam a zona da exposição universal (o teleférico acabaria por se concretizar, mas apenas à beira rio com propósitos meramente turísticos).

A “praia de vias” da estação era a única abertura para o exterior considerável em toda a proposta.

Vista da “praia de vias” da estação (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

O piso imediatamente acima das plataformas de embarque seria o principal espaço de circulação da estação e era onde se encontraria a maior parte dos espaços comerciais da estação.

Maquete da estação proposta onde podemos notar a inserção dos teleféricos (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Esta proposta era, sem dúvida, a mais pragmática das quatro que veremos ao longo deste artigo, optando por organizar os elementos de uma forma simples e lógica e recorrendo a soluções arquitetónicas mais retilíneas e de fácil construção.

Contudo, apresentava algumas limitações na sua capacidade de expansão futura, uma vez que as laterais da praia de vias estavam bloqueadas pela própria estrutura. Além disso, era uma proposta visualmente discreta e bastante opaca ao nível da rua, o que ia precisamente contra o requerido no caderno de encargos do concurso público: uma estrutura icónica que se destaque e seja permeável no espaço urbano.

As linhas ondeladas de Nicholas Grimshaw com Duarte Nuno Simões

Esta dupla de arquitetos propôs uma visão mais pós modernista para a Gare do Oriente. A estação seria essencialmente um conjunto de viadutos coroados com uma cobertura metálica azul de grandes vãos em forma de ondas.

Vista da entrada para o Metro e terminal rodoviário (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

A cobertura é, claramente, o elemento arquitetónico dominante nesta proposta e acaba por proporcionar um espaço aberto mas ao mesmo tempo relativamente abrigado para os passageiros nas plataformas.

O acesso ao metro seria feito ao lado do terminal rodoviário e contaria com uma enorme claraboia envidraçada para que a luz natural penetrasse até ao nível do subsolo.

A cobertura era suportada a meio vão por uma série de pilares azuis (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Esta proposta, um pouco como a Gare atual que conhecemos, aposta numa estrutura mais despida, com menos paredes de vidro e com um desenho mais icónico e arrojado, com menos linhas retas. O design da cobertura, apesar de mais complexo, facilita claramente a entrada de luz natural na estação.

Praça do lado da exposição (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Infelizmente, a envolvente da Gare no lado do recinto da Expo, acaba por ser relativamente pobre. Não existe uma grande praça como a que conhecemos atualmente entre o Centro Comercial Vasco da Gama e a estação, aliás, esta aparece até um pouco renegada para segundo plano atrás de uma fileira de edifícios. 

Nicholas Grimshaw e Duarte Nuno Simões acabaria por dar mais importância ao lado da Avenida de Berlim, propondo grandes espaços ajardinados e até um lago perto do terminal rodoviário da estação

Plano da envolvente da estação (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Também limitada na sua capacidade de expansão (a forma da cobertura e a localização do poço de acesso ao metro dificultariam a adição de mais vias), esta proposta acabaria por não vencer o concurso.

As guelras de Terry Farrell com Miguel Correia

A dupla de arquitetos anglo-lusa apresentou uma proposta mais invulgar das quatro para a Gare do Oriente.

Maquete de concurso, vista do lado da Avenida de Berlim (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

A estação seria constituída por um corpo central encabeçado nos seus dois topos por três torres inclinadas que se desenvolveriam por cima das “praias de vias” da estação. Aliás, esta era a única proposta do concurso que sugeria que a entrada dos comboios na estação fosse feita quase num túnel ficando, por isso, o átrio das plataformas completamente isolado dos elementos exteriores.

A cobertura das plataformas seria formada envidraçada e formada por uma série de “lâminas” paralelas e inclinadas que se dispunham quase como as guelras de um peixe sobre as vias.

As praias de vias seriam totalmente cobertas por praças (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Do lado do recinto da exposição, a estação teria uma praça que atuaria como entrada principal do edifício. Uma série de rampas permitiriam a circulação pedonal entre os vários patamares da praça.

Vista do terminal rodoviário (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

No lado da Avenida de Berlim, a estação assumiria um papel menos “monumental” sendo tapada por edifícios em boa parte do seu comprimento. Ficaria apenas livre um espaço dedicado à segunda entrada da estação e ao terminal rodoviário, de desenho mais simples e menos abrigado.

Apesar de optar por uma disposição mais lógica e funcional dos vários elementos da estação, esta proposta também sofria de falta de capacidade de expansão, consequência da opção de ter uma praia de vias fechada e uma estrutura difícil de adaptar para a inserção de mais vias. E como é de notar, a proposta pouco faz para atenuar o efeito barreira da estação no espaço.

A proposta inicial de Santiago Calatrava

A Gare que conhecemos hoje em dia também não é exatamente igual à proposta de Santiago Calatrava para o concurso da estação do Oriente.

Pormenor da maquete no lado do recinto da Expo (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Calatrava apresentou uma proposta arrojada, cheia de formas orgânicas e de certa forma, quase alienígenas. O arquiteto espanhol concebeu uma estação que, um pouco à semelhança da proposta de Grimshaw, consistia numa série de viadutos rematados por uma grande cobertura sobre as plataformas da estação. A grande diferença é que Calatrava decidiu optar por uma forma mais modular para essa cobertura.

Em vez de grandes vãos com apoios laterais (proposta de Grimshaw), sugeriu que a cobertura fosse formada por quatro filas de “árvores” metálicas que formavam quase uma “floresta” a cobrir as plataformas. Este conceito, além de esteticamente muito apelativo, permitia maior modularidade e flexibilidade em futuras ampliações da estação, uma vez que o próprio “viaduto” onde a Linha do Norte assenta, na verdade é composto por uma série de arcos idênticos que podem ser replicados em paralelo dos existentes.

Terminal rodoviário na proposta (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

No lado do terminal rodoviário, a entrada para o metro contaria com uma rampa a dar acesso direto ao exterior, sendo coberta por uma mezanine elevada. Esta ideia acabaria por desaparecer no projeto final sendo a entrada para o metro integrada dentro do corpo principal da estação e o espaço a ela destinado ocupado pela praça de táxis.

Detalhe da entrada para o Metropolitano (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Inicialmente, um pouco como nas outras propostas, também estava prevista a construção de torres nos cantos e topos da estação mas essa ideia acabaria por cair por terra para não comprometer futuras ampliações da estação.

Plataforma para o monocarril e detalhe da cobertura original (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Um interessante detalhe do projeto, que também acabaria por ser eliminado mais à frente, era a presença de uma plataforma para um sistema de monocarril que serviria a zona da Expo (semelhante à proposta de Paciência e Boffil para incluir um teleférico na estação).

O desenho das próprias “árvores” também acabou por ser alterado. Como podemos observar na imagem, o projeto inicial previa que cada árvore fosse formada por quatro ramos, tendo o desenho final apenas um tronco do qual parte a “copa” que forma a cobertura.

Praça do lado do recinto da Expo (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

O design inicial da praça que daria acesso ao recinto da Expo também acabaria por ser substancialmente alterado. A ideia inicial era que esta praça fosse composta por vários patamares que davam acesso aos diferentes níveis da estação. Note-se também que o desenho dos viadutos também acabaria por ser alterado. 

A praça que hoje conhecemos é dominada por duas passagens superiores entre a Gare e o Centro Comercial Vasco da Gama e pela enorme pala que Calatrava desenhou para rematar o arco central da estação. Curiosamente, estas duas passagens nunca seriam abertas ao público devido a um contencioso judicial entre a IP e a Sonae que gere o centro comercial. 

Corte da estação (imagem cortesia de Arquivo Municipal de Lisboa)

Como podemos observar neste corte, o desenho inicial do viaduto foi organizado de forma a que cada via da estação fosse suportada por um arco de betão armado e o conjunto desses arcos acabaria por formar a estrutura semelhante ao esqueleto de uma baleia que hoje podemos notar no átrio da estação.

É claro que esta proposta também tinha os seus problemas, sendo o mais notório e mais célebre até hoje, a falta de proteção lateral contra o vento e contra a chuva. O projeto final acabaria por prever para-ventos ao longo de ambas as laterais mas essa adição acabaria por se demonstrar insuficiente para resolver o problema.

A aposta numa estrutura em viaduto bastante despida também acabou por expor o interior da estação aos elementos, tendo sido necessário, alguns anos após a Expo, adicionar salas de espera fechadas nas mezanines de acesso às plataformas.

No entanto, apesar dos problemas que viria a ter, a proposta de Calatrava tinha uma característica fundamental: era um ícone. Uma estrutura singular para servir de porta de entrada para a exposição universal e para uma cidade mais moderna. O uso de uma estrutura mais despida em arcos, tornava a Gare mais permeável no espaço urbano, critério importante do concurso. E a sua maior modularidade de construção tornavam-na mais “future proof” que as demais propostas.

Photo : Mário Rui André/Lisbon For People

O resto da história, bem, já nós sabemos como se costuma dizer. Mas o percurso desta singular estrutura ainda vai no seu início, há ainda um longo caminho a percorrer. Com o aumento da procura pelo transporte ferroviário e tendo em vista a construção da nova linha de Alta Velocidade entre Lisboa e Porto, a Gare do Oriente terá de ser expandida. Mas a sua expansão não poderá ser apenas um mero aumento de capacidade. Existe uma oportunidade para que se resolvam, de forma estruturada e pensada, os problemas crónicos desta estação. Para que os lisboetas, quem visita a cidade e todas as pessoas que diariamente usam a Gare possam finalmente desfrutar de um edifício icónico mas com as devidas condições de conforto.

Estamos a falar daquela que será durante as próximas décadas, a principal estação de Lisboa e o centro nevrálgico da rede ferroviária nacional. Não nos podemos ficar por soluções limitadas e pensadas no curto prazo. Ao trabalho, a Gare do Oriente pode e vai ser aquilo que fizermos dela.

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