Proposta do BE para passe nacional de transportes a 9 €/mês é desajustada

Avis.

A proposta do Bloco de Esquerda para passe nacional de transportes a 9 euros/mês é uma ideia populista e desajustada às necessidades do país, como foi a dos transportes públicos gratuitos.

Lisbon Photography For People

Quem circula nas duas Áreas Metropolitanas paga, desde 2019 um máximo de 40 € mensais. Esse passe permite a qualquer pessoa andar ilimitadamente em qualquer modo de transporte – autocarro, eléctrico, metro, comboio ou barco –, durante um mês. Quem quiser circular só dentro do seu município, paga 30 €. E cada família pode ter uma despesa máxima de 60 ou 80 €, independentemente do número do seu agregado.

O lançamento dos passes Navegante e Andante em 2019, com este preço competitivo e com esta comodidade, veio simplificar a bilhética dos transportes públicos a um nível nunca antes visto em Portugal. Antes destes novos passes intermodais, cada operador tinha o seu passe e havia passes combinados com outros operadores, muitos deles caríssimos (100 € para cima). Os passes Navegante e Andante vieram também alargar os limites geográficos das duas maiores cidades do país, levando a uma visão metropolitana – mais que uma perspectiva municipal –, o que pode a longo prazo contribuir para um maior coesão desses territórios e dispersão das actividades sociais, laborais e económicas.

No entanto, esta dinâmica dos passes de transportes públicos existe ainda somente nas duas Áreas Metropolitanas do país, a de Lisboa e do Porto. Noutras regiões, apesar de também existirem necessidades de transporte intermunicipais (viajar entre concelhos distintos) e intermodais (usar modos de transporte diferentes), as empresas de transporte ainda não comunicam entre si e os tarifários existentes são ainda complicados de perceber.

Dou o exemplo de Coimbra. Nesta cidade, existe uma empresa municipal, a SMTUC, que assegura todos os autocarros dentro do município de Coimbra. Existe ainda o Metro Mondego, que será um sistema de metrobus (BRT) entre Coimbra, Miranda do Corvo e Lousã e que, por agora, enquanto decorrem as obras de construção da linha e das estações, funciona à base de autocarros suburbanos. Existe ainda a Transdev, um operador privado que faz ligações suburbanos de autocarro entre diferentes localidades, não servidas pelo futuro Metro Mondego. E, claro, falta mencionar a CP com suas ligações regionais para Aveiro, Guarda e Entroncamento, e com uma ligação urbana para a Figueira da Foz.

Cada um destes operadores tem um passe próprio e quem queira usar vários meios de transporte terá de somar o custo de cada passe de cada operador e ainda ter conseguido cartões diferentes. Assim, por exemplo, uma pessoa que pretenda usar o comboio da Figueira da Foz para Coimbra e deslocar-se na cidade de autocarro terá de pagar por mês 97,70 € e ter um cartão para a CP e outro para os SMTUC.

A proposta que o Bloco de Esquerda (BE) quer levar para o Orçamento de Estado de 2023 é, nesta perspectiva, populista e desajustada, pois não procura resolver os problemas imediatos que existem nas diferentes regiões (Comunidades Intermunicipais) do país. O BE propõe um passe nacional de transportes a 9 € mensais, que dê acesso a todos os transportes, intermunicipais e municipais, transportes rodoviários nacionais como a Rede Expressos, e ainda comboios Regionais e Intercidades da CP. Para Catarina Martins, coordenadora do BE, trata-se de criar uma verdadeira “política nacional de uso dos transportes colectivos”.

No entanto, há outras prioridades (ou deveria haver) para aumentar o uso dos transportes públicos e criar uma maior justiça no acesso aos mesmos. Alargar a modalidade de passes municipais a 30 €/mês e de passes metropolitanos/intermunicipais a 40 €/mês a todas as regiões do país é uma delas. Para que, por exemplo, as pessoas de Coimbra também possam deslocar-se livremente de transportes dentro do seu concelho e entre os concelhos da denominada Comunidade Intermunicipal Região de Coimbra, conjugando diferentes modos de transporte e pagando um valor baixo e previsível no final do mês.

A Comunidade Intermunicipal Região do Algarve está a tentar implementar um passe estilo Navegante/Andante, mas estará a ter dificuldade em ter a CP, que serve a região com uma linha regional que a atravessa de uma ponta à outra, a bordo. A ideia do Passe Intermodal do Algarve passa por criar um tarifário mensal de transportes públicos para toda a região do Algarve (autocarros, comboios e barcos), que funcione estilo o Navegante em Lisboa ou o Andante no Porto – ou seja, que dê para usar todos os transportes de uma zona por um valor por mês reduzido. Estão a ser pensadas cinco modalidades/zonas: uma urbana, para andar numa cidade; uma municipal, para andar num município inteiro; uma intermunicipal mais restricta, para andar nos vários municípios de uma destas três áreas: Barlavento, Sotavento, Central; uma intermunicipal mais abrangente, para andar nos vários municípios de uma destas duas áreas: Barlavento + Central, Sotavento + Central; e uma que sirva toda a Comunidade Intermunicipal, para andar por toda a região do Algarve.

Outra questão que importa resolver é a comunicação entre regiões, sejam elas Áreas Metropolitanas ou Comunidades Intermunicipais. Com a existência em cada região de uma modalidade de passe que se divide entre municipal e intermunicipal, seria fácil criar combinações que permitissem às populações viajar entre duas regiões. Isso permitiria, por exemplo, a uma pessoa comprar o passe metropolitano de Lisboa e o passe intermunicipal da vizinha Região Oeste para frequentemente se deslocar das Caldas da Rainha para a capital; porque estaria a comprar dois passes, poderia ter um desconto de 20 ou 30%. Este tipo de complementos já existem na Área Metropolitana de Lisboa (AML): quem queira chegar à Azambuja ou Carregado de comboio, pode comprar um complemento ao passe de 0,50 €, mas não pode deslocar-se na Azambuja ou Carregado de transportes – apenas usar o comboio para chegar até lá. O mesmo existe, por exemplo, da AML para Vendas Novas: um complemento ao passe Navegante de 20 € mensais, que só pode ser usado na Carris Metropolitana para chegar a Vendas Novas (e vice-versa), mas não permite usar depois os transportes locais da região de Vendas Novas.

Esta comunicação entre regiões – acredito eu – seria muito mais vantajosa que qualquer passe nacional de 9 € mensais. Esta ideia, além de ser uma cópia barata de algo que foi implementado a título experimental na Alemanha e que foi incapaz de tirar carros da estrada, tem por base um custo mensal para as famílias que nada tem a ver com os patamares de 30/40 €. Um passe nacional nunca poderia ser ridiculamente mais barato que os actuais passes Navegante/Andante, que apresentam já um valor bastante competitivo tendo em conta a alternativa automóvel e respectivos custos de estacionamento, manutenção e combustível.

Urge, em vez de uma medida sem sentido, melhorar com sentido os transportes públicos. Simplificar a bilhética noutras regiões do país como foi feito nas Áreas Metropolitanas e criar relações entre os transportes de cada região são duas medidas importantes, mas há mais:

  • digitalizar todos os transportes públicos a nível nacional para que os mesmos estejam disponíveis nas apps de navegação que as pessoas habitualmente usam nos seus telemóveis, como o Google Maps, Apple Maps, Moovit e CityMapper. Eventualmente desenvolver uma aplicação única, nacional, que permita obter informação sobre os transportes de todas as localidades e regiões: operadores, linhas, horários e tarifários;
  • desenvolver mais corredores BUS, principalmente onde existe congestionamento diário, para que os autocarros sejam efectivamente mais competitivos em termos de tempo ao automóvel. Ao mesmo tempo, modernizar as frotas e as paragens/estações para que sejam acessíveis e confortáveis de usar, permitindo o acesso a pessoas com mobilidade reduzida, oferecendo casas de banho nas principais interfaces, tornando os assentos mais agradáveis, oferecer carregamento USB e outras comodidades, etc;
  • apostar em passes semelhantes ao Navegante/Andante mas que permitam o uso diário, semanal ou trimestral dos transportes públicos, para atrair os passageiros ocasionais que não se reveem no actual tarifário mensal. Ao mesmo tempo, caminhar para a desmaterialização da bilhética, permitindo pagamentos com cartões bancários contactless, Apple/Google Pay, MB Way, etc, de forma a também estimular o uso ocasional dos transportes;
  • estudar opções anuais de compra dos passes, que permitam às pessoas obter um desconto de 20 ou 30% sob o que pagariam mensalmente. Estudar também uma opção nacional, combinando o comboio regional e de longo curso, com um valor mensal ou anual ajustado à actual oferta municipal/intermunicipal, pelo que nunca poderia ser inferior a 40 €.

Um passe nacional de transportes a 9 € mensais não tem qualquer sentido, como nunca teve, outra proposta original do BE, de tornar os transportes públicos gratuitos – uma medida à direita acolhida por questões eleitorais apenas e que veio sobrecarregar apenas a despeja pública, tirando eventuais investimentos na oferta actual de transportes.

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