Em Lisboa também há agricultura. E vai haver um festival sobre isso

A Horta do Alto da Eira, na Penha de França, vai ser palco do Festival Regador, que decorre durante este fim-de-semana. Vai ser um ponto de encontro de pessoas e de projectos de agricultura colectiva, que têm florescido em Lisboa.

A Horta do Alto da Eira vai ser o palco do Festival Regador (fotografia LPP)

A relação entre cidades e agricultura tem sido cada vez mais explorada nos últimos anos, à medida que as pessoas começam a perceber a importância de cultivar alimentos localmente e de maneira sustentável. Em Lisboa, a agricultura urbana tem florescido na última década de forma integrada, em jardins e parques urbanos, mas também de forma espontânea, em terrenos baldios. Comunidades locais também têm criado projectos colectivos para mostrar novas formas de cultivo em centros urbanos. A Horta do Alto da Eira, na Penha de França, é uma dessas iniciativas e, no próximo fim-de-semana, irá juntar pessoas e projectos no primeiro festival sobre agricultura urbana de Lisboa.

O Festival Regador terá actividades para aqueles que apreciam alimentos cultivados localmente e valorizam iniciativas de génese colectiva. O festival de dois dias (sábado e domingo) terá um mercado de hortícolas com venda de produtos locais, conversas sobre como a agricultura pode juntar pessoas numa cidade, apresentações de projectos inovadores em desenvolvimento em Lisboa, e também oficinas sobre cozinhar sem desperdício ou fazer compostagem. E para fazer jus à designação de festival, como momentos descontraídos, haverá jantares comunitários e música — que começa logo na sexta, véspera do festival, com um DJ set. Todas as actividades serão gratuitas e de entrada livre. O evento conta com o apoio do Lisboa Para Pessoas e será realizado na Horta do Alto da Eira, um projecto iniciado pela associação Regador no final de 2021.

O festival é uma forma de a Horta do Alto da Eira ser dar a conhecer (ainda mais) à cidade e proporcionar um ponto de encontro de pessoas, ideias e outros projectos que, tal como na Penha, estão a reunir comunidades em torno da terra e a mostrar “que as cidades também fazem parte da solução”, diz-nos Maria Freitas. “Podemos criar soluções agrícolas colectivas nas cidades que aproximam as pessoas do seu alimento, reduzem distâncias, diminuem pegadas, e contribuem para uma maior literacia alimentar. As pessoas passam a saber cultivar, a colher, a saber de onde é que as coisas vêm. No fundo, as cidades não têm de se afastar da produção do alimento e podem fazer parte da solução.”

LPP Photographie

O Festival Regador vai ser uma oportunidade para conhecer projectos como a Agrofloresta Bela Flor Respira, que criou um espaço de biodiversidade e Natureza em Campolide, a Horta FCUL, que interliga a agricultura urbana com a investigação académica, a Hortas LX, que desenvolve hortas na cidade a pedido, a Raiz Vertical Farms, que está a trabalhar num modelo de agricultura vertical, o Crescer Em Casa, uma nova comunidade de cultivadores em Lisboa, o Grupo de Consumo de Campo de Ourique, que distribui produtos de elevada qualidade e sabor no bairro de Campo de Ourique, a Rizoma, a maior cooperativa de Lisboa que apoia produtores locais, e o projecto Food Wave da associação Rede DLBC Lisboa, que procura capacitar jovens para as questões da alimentação e sustentabilidade ambiental.

“O festival pretende, e vai fazê-lo, colocar uma série de entidades que estão a trabalhar em soluções para a cidade, soluções de cultivo urbano e colectivo, e vamos todas conversar. Haverá conversas, oficinas, e para convívio também temos concertos, e vamos ter um plantio e um jantar comunitário, e claro, um mercado agrícola local”, sintetiza Maria.

Uma horta e uma comunidade

No último ano e meio, a Horta do Alto da Eira tornou-se um cantinho especial na cidade de Lisboa, uma evidência de como a agricultura urbana pode juntar pessoas para além da agricultura em si, potenciar todo o tipo de encontros e fortalecer laços de vizinhança. Graças a uma candidatura ao programa municipal BIP/ZIP, a associação Regador conseguiu iniciar, no final de 2021, a reconversão de um pequeno retângulo baldio, num canto da freguesia da Penha, num espaço colectivo de cultivo e que se prolonga para além desse território. Os vizinhos foram, desde o início, envolvidos na limpeza e estruturação do terreno em socalcos de cultivo, bem como na organização da dinâmica da horta. Foi estabelecido um regulamento mas, conta-nos Maria, tudo tem funcionado na base de uma informalidade saudável.

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Ao contrário dos parques municipais, na Horta do Alto da Eira não existem talhões individuais: tudo é de todos e para todos os que quiserem fazer parte do projecto. As decisões sobre o que cultivar são tomadas em conjunto em assembleias públicas, os plantios são actividades abertas a todos – e momentos de festa – e as colheitas são distribuídas por quem pedir. A maior parte do que é semeado acaba por ser colhido para os moradores que residem na zona da horta. “Os sábados são os dias em que estamos aqui a trabalhar e em que fazemos as colheitas. Muitas vezes colhemos na hora e damos às pessoas que vêm ter connosco. Não pagam nada. No fundo, estamos a alimentar os bairros daqui”, detalha Maria.

A Horta do Alto da Eira tem uma programação semanal diversificada e que vai para além dos plantios e colheitas. Aos sábados e domingos quase sempre há algo a acontecer, desde oficinas onde se pode aprender a fazer pão ou a construir cataventos, a actividades para se criarem infraestruturas para a horta, como a construção de um forno a lenha ou de uma estufa-sementeira. E há também conversas, projecções de filmes, arraiais populares ou leituras de histórias – actividades familiares e em que a horta é um mero ponto de encontro.

Durante a nossa visita à Horta do Alto da Eira numa manhã desta terça-feira, encontramos um espaço vazio de pessoas – um ambiente diferente daquele a que nos habituámos e do que iremos encontrar já neste próximo fim-de-semana. Mesmo assim, e apesar de a horta ser sempre um espaço em construção, sente-se uma vibração que não é normal na cidade, sente-se que aquele espaço é mesmo das pessoas e da natureza – é o que resulta da sua relação. Em um ano, muita coisa que mudou na Horta do Alto da Eira: as árvores de fruto cresceram, há mais socalcos e diferentes hortícolas plantadas, um charco onde se recolhe água da chuva para rega, um pequeno forno a lenha, uma mini-estufa em construção para servir de sementeira, e um pequeno mural feito com cacos encontrados no meio das terras. Tudo feito por todos e para todos.

É Maria que percorre connosco a Horta do Alto da Eira. “Estamos entre colheitas e, por isso, temos agora menos hortícolas cultivadas”, diz-nos. Mas vemos alfaces, couves, tremoços e batatas. Muitas batatas. “Chamo-lhe um batatal”, brinca Maria por serem mesmo muitas batatas a desenvolverem-se da terra. Ao lado do batatal, no cimo da horta, começa a formar-se o tal charco que terá dupla função: por um lado, atrair biodiversidade, tanto fauna como flora; por outro, colher água da chuva e encaminhá-la para um reservatório. Daqui a água irá descer os socalcos em condutas artesanais em barro, regando as hortícolas e humidificando os solos. A ideia é aproveitar ao máximo os recursos escassos como é a água e criar ciclos sustentáveis dentro deste espaço hortícola. A horta conta com um sistema de rega automático ligado à rede de água da cidade, porque só com o charco e com a chuva não seria possível gerir os cultivos. Mas o facto de a horta ser regada desta forma e não manualmente, com uma mangueira, também é por um motivo de sustentabilidade: “Com uma rega automática conseguimos gerir muito melhor a água. As regas manuais gastam muito mais água.” 

Maria Freitas, do Regador (fotografia LPP)

Esta preocupação com a optimização e monitorização dos recursos é constante na Horta do Alto da Eira. Mais em baixo, junto às árvores de fruto, nascem pequenas heras para ajudar a conservar a humidade e foi acrescentada palha e restos orgânicos para o mesmo efeito. “Queremos ser o mais auto-sustentáveis possível”, afirma Maria. É por isso que também está a ser construída uma sementeira. “Queremos deixar de comprar mudas [as “hortícolas-bebés para transplantar”] e desenvolver as sementes nesta pequena estufa para depois, já como pequenas plantas, passá-las para a horta”explique-t-il.

A parte funda da Horta do Alto da Eira é uma área multi-usos, por assim dizer. É aqui que se reúnem as pessoas e se desenvolvem as actividades aos fins-de-semana. E é aí que vai decorrer o Festival Regador, nomeadamente a parte do mercado de hortícolas. A Horta do Alto da Eira vai continuar a ser desenvolvida pela comunidade, pelo menos enquanto as pessoas assim o desejarem e a associação Regador tiver possibilidade financeira para continuar a coordenar o projecto. O funcionamento da horta continuará a acontecer de modo orgânico, adoptando as dinâmicas que naturalmente surgirem.

O projecto tem vindo a atrair mais pessoas de fora, da cidade, do que moradores dos bairros circundantes. Mas Maria destaca o papel importante da vizinhança na protecção do espaço “quando nós não estamos cá” et que “é normal que nem todos tenham corpo ou vontade de participar”. No fundo, cada um participa como pode e quer, seja a plantar, a fabricar coisas para a horta, seja nos eventos e convívios, seja por simples conversas de rua. A Horta do Alto da Eira tem mostrado muito bem o que pode ser a agricultura colectiva, e o Festival Regador será o espaço para falar disso e para cruzar outras iniciativas.

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