Cantoneiros: os homens e mulheres que limpam Lisboa enquanto a cidade dorme

Todas as noites saem às ruas para limpar os resíduos da cidade. Os cantoneiros resistem ao frio, à chuva, ao cheiro e aos excessos. Invisíveis à maior parte das pessoas, os trabalhadores lamentam, essencialmente, o desperdício alimentar e a difícil consciencialização do impacto ambiental que se tende a ignorar.

Cláudia Santos, 37 anos, trabalha na recolha de resíduos há sete anos (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

O centro de Lisboa atravessa-se agora em pouco mais de 20 minutos, circulando por estradas onde ao final da tarde os carros demorariam pelo menos uma hora. O relógio aponta as 22h30 certas quando um grupo de cantoneiros, trabalhadores do Departamento de Higiene Urbana, no Centro Operacional de Remoção, cruzam o portão do Pólo dos Olivais. A cidade ainda não dorme,  mas se para grande parte da comunidade lisboeta esta é a “dita hora de descanso”, para o grupo de cantoneiros o dia – que é noite – acabou de começar.

Ao longe, este pequeno grupo revela-se muito maior. Cerca de uma centena de pessoas aguardam fora de um edifício, que se organiza em grandes salas, balneários, escritórios e refeitórios. As paredes são brancas e, se distantes  parecem revestidas de cor verde e preta, quando nos aproximamos, vimos que o que as decora são manuais de boas práticas na recolha dos resíduos e escalas infinitas. Não se pinta descanso naquele lugar.

Dentro e fora do pólo, aquele conjunto de pessoas vai-se preparando para partir. A noite fica ao encargo de mais de 200 trabalhadores – entre eles cantoneiros e motoristas – e a mais de 100 carros. Mas o total de trabalhadores da divisão já ultrapassa os 920, dados lançados pela autarquia de Lisboa em agosto de 2023.

Há três turnos de recolha de resíduos urbanos: dois diurnos e um noturno. A azáfama é grande. Daqui saem todos os carros de recolha do lixo, com um condutor e dois cantoneiros. Se houver necessidade de reforço, outro cantoneiro é levado até à zona de recolha.

“É o turno da noite que apanha mais lixo”, começa por explicar António Vinagre, encarregado-geral da Higiene Urbana, que também saiu à rua para nos acompanhar.

Lembra-se de cada mudança feita na divisão, conhece o nome de todos os seus colegas, assim como os períodos de tempo em que lá trabalham, desde que saem do pólo até ao momento de chegada. À medida que nos vai explicando como funciona aquele espaço, o seu telemóvel toca uma e outra vez. Sente dificuldade em acabar as frases sem que chamem por si e, isso, fortalece também o largo conhecimento que Vinagre tem daquele lugar.

O nosso ponto de partida começa exatamente ali, no pólo, e segue para as principais artérias da rota que se concentram na zona de Alvalade, passando pelas avenidas de Roma, da Igreja e dos Estados Unidos da América. Reúne 68 paragens de descarga e separação dos caixotes. A “volta”, nome que dão ao circuito, dura até às 3h30. “Este circuito que vamos acompanhar é um serviço de recolha porta a porta. Todos os prédios, nesta zona da cidade, têm contentores com os vários fluxos – indiferenciados, papel e embalagens – o vidro é recolhido com recurso a equipamentos na via pública, os vidrões”, continua o encarregado-geral da Divisão.

António Vinagre trabalha há quase 50 anos na Higiene Urbana, 37 deles na limpeza. Hoje tem 63, mas começou a trabalhar aos seis, ainda em Idanha-a-Nova, Castelo Branco, terra onde nasceu. “Vinha da escola e já tinha algum serviço para fazer em casa dos meus pais e avós.” Tentou entrar na Escola Agrária, em Santarém, no ano de 1974 e, por essa razão, mudou-se para Lisboa. Como as leis mudaram, diz, acabou por não conseguir entrar. “Depois comecei a trabalhar em outros ramos e acabei por desistir. Mas ainda tenho uma horta!”, reconhece com risadas.

“É o turno da noite que apanha mais lixo”, explica António Vinagre, encarregado-geral da Higiene Urbana (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

À medida que vai falando, já dentro do carro, com o rádio sintonizado, Vinagre incomoda-se com algumas faltas no turno. Comenta com o colega que conduz, também Nuno, a necessidade de combater a falta de civismo. A isso, junta a importância do que considera ser a cidadania. Como nos diz, a recolha de lixo indiferenciado é feita às segundas, quartas e sextas, de forma alternada. Pede que Nuno pare junto do camião (o que chamam de carro) principal. “O estado dos caixotes por vezes é deplorável. São precisas políticas públicas para que as pessoas alterem os seus comportamentos, faltam políticas que sensibilizem para a produção de menos lixo”, defende trazendo a título de exemplo o facto da separação do lixo ainda ser uma questão de discussão.

“Ainda sou do tempo em que a figura do cantoneiro era incontornável, fato de trabalho cinzento, carros de recolha com uma dimensão que nem rondava a metade dos carros de hoje… ainda nos imagino entretidos a ‘tapar os buracos’ dos colegas que não apareciam, enquanto outros se abriam às dezenas no dia seguinte”, partilha o responsável.

Apesar do mapa de encargos nos parecer complexo à primeira vista, tal como o mais antigo trabalhador da divisão avançou, “não tem nada que saber”. Há três tipos de recolha de lixo: porta-a-porta (em zonas específicas da cidade, para o comércio e a restauração, e nos bairros históricos); vias estruturantes (sem caixotes do lixo, apenas com contentores no bairro – sejam de orgânico seja de reciclagem) e seletiva pontual (recolha de monos e entulhos).

Embora haja um caderno de encargos comum, Lisboa tem 25 sistemas de limpeza urbana diferentes, um por cada Junta de Freguesia. Desde 2014 que a Câmara e as Juntas de Freguesia repartem funções na área da higiene urbana. Ou seja, a Câmara Municipal de Lisboa é responsável pela recolha grande e os caixotes, as juntas pela higiene das ruas.

Esta divisão, para Vinagre, é complexa: “ao dividir as competências nunca é nada de ninguém. As juntas deixaram de trabalhar à noite, horário essencial para fazer a limpeza das ruas, aplicar os herbicidas, varredura quando necessário nas artérias principais”.

Além disso, explica, a repartição dos sistemas pelas juntas também não permite aos trabalhadores rodar funções – algo que era habitual – e com a atratividade dos salários noutras áreas e a dureza deste trabalhos, é fácil explicar a falta de mão de obra. A isso acrescenta a falta de sensibilização na cooperação dos moradores com os trabalhadores, acrescentando ser este um contributo ainda maior para o estigma associado à profissão. “Ainda temos um longo caminho pela frente”, aponta, usando a palavra para remarcar quer ofuturo quer o início de turno em que seguimos.

O turno da noite

O percurso é difícil e longo. “Quando o carro não chega, fazemos o processo a pé.” São mais as vezes em que isso acontece. “Não facilitamos”, conta Rodrigo Ramada, com 30 anos, que trabalha como cantoneiro há dois. 

“Este trabalho é de louvar, porque é muito duro fisicamente, repare que os cantoneiros fazem todo o percurso a pé, recolhendo os contentores, atrás do camião. São poucas as distâncias que percorrem pendurados nos estribos. Além disso, é um trabalho invisível, porque a maior parte da recolha do lixo é feita de noite, quando a maior parte dos munícipes está a dormir”, aponta Vinagre.

O camião avança. Dá suporte nas subidas e nos estacionamentos, mas o “sobe e desce” é constante. O percurso é feito maioritariamente a pé. Levam os caixotes um a um. É verão, a noite está fresca e, curiosamente, o cheiro não “se nota por aí além”. No verão costuma ser pior, com o calor há mais mau cheiro”, explica Vinagre, que nos vai detalhando cada pormenor entrado e saindo do carro que nos transporta.

A equipa que acompanhamos é composta por três pessoas, dois cantoneiros,  Rodrigo e Cláudia Santos, e um motorista, Nuno Pinho, que recolhem os resíduos indiferenciados e não só – lixo comum. Rodrigo e Nuno entraram no mesmo concurso, já Cláudia é a mais velha na casa.

A pandemia atirou Rodrigo para o desemprego. Trabalhava no aeroporto. Viu na recolha de lixo uma oportunidade de emprego. Tem uma folga por semana e um domingo por mês: “Sinto-me útil. Quando olhava de fora tinha uma percepção completamente diferente do trabalho que efetivamente fazemos. É o estigma que a sociedade vai criando que nos faz ver muitas vezes turvo”, lamenta o jovem.

“Não deixa de ser um trabalho duro.” A equipa vai explicando que o facto de fazerem o turno da noite, de terem apenas uma folga por semana de domingo para segunda e de optarem por trabalhar 14 dias seguidos para que possam juntar mais dinheiro ao final do mês, exige que abdiquem em grande parte da sua vida familiar. No entanto, revêem neste trabalho uma estabilidade que não conseguiram ter em outros trabalhos anteriores. “Apesar de tudo isto, a minha situação financeira e a minha vida pessoal melhoraram muito. Gosto de estar aqui”, partilha Rodrigo.

A ele junta-se Cláudia Santos. Cláudia não é nova na profissão. Já chegou ao pólo dos Olivais há sete anos. Há altura tinha 30. “Mudei de vida para vir para aqui”, começa. Trabalhava na restauração, em Lisboa, mas tornava-se cada vez mais difícil acompanhar os filhos na escola. Prefere trabalhar nos turnos da noite e dedicar o dia a eles e à escola: “apesar de não ter o mesmo descanso durante o dia, tenho mais tempo para eles”. Mãe de um filho de 17 anos e uma filha de 15  sente que tem de estar a “1000% para eles”.

Tal como Rodrigo já se habituou à rotina da profissão. “Quando estou ali, sinto-me livre”, diz apontando para a zona de escada reservada aos cantoneiros, na parte traseira do camião. “É de louvar o trabalho que nós fazemos, porque a higiene urbana é fundamental.” No dia-a-dia já se acostumou a ter certos cuidados “com os carros que vão a passar, para não sermos atropelados, e com as pessoas, para não incomodarmos”. Apesar dos turnos serem sempre noturnos, as voltas vão mudando e, com elas, os colegas da equipa.

Conhecendo bem as voltas, Cláudia não deixa de lamentar aquele que se mostra ser um problema transversal no seu trabalho e a que António Vinagre nos tem alertado: a falta de sensibilidade dos munícipes. “Ainda há pouco, na recolha, encontramos uns caixotes que são entulho”, aponta para um caixote que se vê a poucos metros de distância. “A responsabilidade é das instituições, mas as pessoas podiam ser mais sensíveis. As pessoas sabem que o entulho não é para nós recolhermos, há um processo a seguir. Por mais sensibilização que se faça, as pessoas têm de ter noção que não é só o nosso trabalho. É um trabalho comum. Somos uma equipa”, termina.

Fotografia de Bárbara Monteiro/LPP

Cláudia, tal como os outros cantoneiros, ganha cerca de 1200 euros por mês. Este valor já inclui o subsídio de insalubridade, atribuído pelo facto de estes trabalhadores lidarem diariamente com lixo e sujidade.

Existe uma diferença salarial entre os cantoneiros e os motoristas. Tal como a equipa explicou, os motoristas que conduzem o carro, a cada turno, têm que entrar ao trabalho uma hora mais cedo, pois precisam de se certificar que o carro está em condições para ser conduzido durante esse turno. “É necessário fazer uma verificação geral, desde encher o depósito da gasolina, verificar os pneus, cumprir um tabela de tarefas para validar o estado da viatura”, justifica o motorista. É nesse sentido, que é defendida a diferença salarial entre os cantoneiros e os motoristas.

De resto, garante o antigo manobrador de máquinas, “sinto-me bem, é um trabalho que gosto porque ando sempre na rua e com colegas, nunca estou sozinho”, explica enquanto se organiza para partir para a próxima paragem.

Dentro do carro de recolha do lixo, Nuno enquadra a função dos dois monitores que tem à sua frente: o do lado esquerdo tem assinalado todos os caixotes do lixo da zona ainda por recolher com cores verdes e vermelhas; e, do lado direito, um monitor com uma câmera que está alojada na parte de trás do carro. “Esta câmera permite-me acompanhar o trabalho deles, atrás, nomeadamente, se algum deles se magoar e isso permite-me parar o sistema de imediato, ou se algum caixote cair… esta foi uma das melhores ferramentas introduzidas”, termina o motorista.

Paramos. É hora de contornar uma rua que dá acesso a um estacionamento, muito conhecido entre os motoristas pela sua dificuldade de acesso. “No inverno é muito complicado entrar e sair para fazer o trabalho. Há dias em que temos de chamar o reboque e, outros, em que não conseguimos recolher os caixotes porque não consigo entrar lá”, o que reconhece ser um ato de exaustão dos moradores de Lisboa, face à dificuldade no acesso aos estacionamentos.

Fotografia de Bárbara Monteiro/LPP

Antes de trabalhar na Divisão Municipal de Limpeza Urbana, Nuno Pinho foi motorista em diferentes empresas, públicas e privadas e, inclusive, alistou-se nos Bombeiros Sapadores de Lisboa para desempenhar a mesma função. Fá-lo há 19 anos. “Passava muito tempo fora de casa e, por exemplo, não assisti ao crescimento das minhas filhas.” Foi a sua ex-mulher que insistiu para que mudasse de vida. “Quando nasceu o nosso filho mais novo, decidi que não seria como o primeiro. Queria acompanhar o crescimento dele.” Foi quando vim para este trabalho.

Antes de trabalhar na divisão de Higiene Urbana, Nuno Pinho foi motorista em diferentes empresas, públicas e privadas, incluindo os Bombeiros Sapadores de Lisboa (fotografia de Bárbara Monteiro/LPP)

O motorista está como peixe na água. “A minha mulher diz que para me verem feliz basta darem-me um volante para a mão e alcatrão debaixo dos pés”, ri-se.

Hoje, nota diferenças. “Não é nada fácil andar aqui, noite após noite, um mês inteiro, a esvaziar contentores. São sete ou oito toneladas de lixo todos os dias. E às segundas-feiras é pior, chegam a ser 12 a 15 toneladas de lixo que lhes passam pelos braços”, termina.

Aos 49 anos continua a ser bombeiro, agora voluntário, para que consiga conciliar com o trabalho de recolha. “Surgiu esta oportunidade e, acima de tudo, é um emprego com estabilidade.” Enquanto camionista transportou os mais diversos materiais – até matérias perigosas – e a sua capacidade de gestão em situações sobre pressão e alta tensão são também ferramentas essenciais a este tipo de trabalhos.“Quando não estou a despejar um caixote do lixo, estou a apagar um fogo ou a tirar pessoas das casas durante as cheias. Trabalho sempre para a mesma comunidade de pessoas, a missão é sempre a mesma”, colmata.

Também por isso, reconhece a importância de ter de existir uma maior articulação entre as diferentes instituições: “tenho alturas em que estou a acabar o meu turno aqui, troco de roupa, e sigo para um fogo”.

“Imagino que muitas pessoas não querem fazer este trabalho, talvez pelo estigma”

Apanhar lixo, mexer com matérias perigosas e com sujidade, para estes trabalhadores, são fatores que alimentam a estigmatização social da profissão que, defendem, tem sido cada vez mais desmistificada.

Fotografia de Bárbara Monteiro/LPP

“Uma pessoa tem de se mentalizar para o que vem fazer. Desde que isso aconteça, o trabalho corre bem”, avança Nuno. Tal como ele, também Rodrigo assegura: “sinto-me muito útil, porque se não houver recolha de lixo não há uma boa conservação da limpeza da cidade. É uma profissão com uma grande nobreza, nesse sentido”.

No meio do lixo, o que mais faz confusão a Nuno é o desperdício alimentar. “Faz-me muita impressão quando vejo comida desperdiçada no lixo. Há muita gente a passar fome e, no meio do lixo, vê-se muita comida que podia ser aproveitada para alimentar muita gente. Há pessoas sem nada para comer e deita-se tanta comida fora”se lamente-t-il.

Fotografia de Bárbara Monteiro/LPP

As questões de género são também trazidas à conversa. A maior parte dos cantoneiros é do sexo masculino, reconhece o encarregado-geral da Higiene Urbana. “Ainda é uma profissão muito de homens mas já temos várias cantoneiras. E temos três senhoras motoristas que conduzem este tipo de carros pesados. Durante o dia, temos mais senhoras a conduzir as carrinhas de caixa aberta para a recolha de monos”, explica. O objetivo a longo prazo é que seja um lugar cada vez mais igualitário. As mudanças só se conseguem com um forte espírito de cidadania e este é um pensamento constante para estes trabalhadores, daí enumerarem ao longo de toda a nossa conversa a necessidade de todo este trabalho ser feito em equipa. “As pessoas podem não querer saber, agora, que estão aqui, neste planeta, mas todas as suas ações terão consequências para as próximas gerações, exista ou não exista estigma. Espero não estar cá para ver”, conclui Vinagre.

Pelas três e meia termina a recolha. E quanto à cidade? Acordará sem despojos do dia anterior.

Il s'agit d'un contenu sponsorisé produit en partenariat avec LPP et Câmara Municipal de Lisboa, e insere-se numa nova rubrica intitulada Bastidores da Cidade. Apesar de patrocinado, o conteúdo foi elaborado pelo LPP com autonomia.

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