Na Rua do Vale de Santo António, na freguesia de São Vicente, há um “rectângulo” pedonal que está a ser reduzido para encaixar três lugares de estacionamento. “Parece que estamos a ser engolidos pelos carros. Eu tenho carro, não o uso muito e, por isso, vou deixá-lo mais longe.”

A rua da icónica Subida da Rampa está a ser requalificada desde Setembro; trata-se de uma pequena intervenção com vista à melhoria da acessibilidade pedonal. Está a ser colocada calçada mista – isto é, pedras de calcário misturadas com pedras de granito – para facilitar a aderência dos sapatos ao pavimento e evitar quedas; estão a ser rebaixadas passadeiras e a ser colocadas guias para pessoas invisuais; mas está também a ser reduzida uma parte do passeio para aumentar a oferta de estacionamento. São três novos lugares que estão a nascer numa parte onde a ampla área pedonal assim o permitia; um grupo de moradores e de vizinhos daquela rua mobilizou-se num abaixo-assinado para contestar a obra.

Rosa Gomes, de 70 e poucos anos, moradora na Rua do Vale de Santo António, está preocupada com a obra que está a ser executada pela Junta de Freguesia de São Vicente (PS) com financiamento da Câmara Municipal. A 29 de Setembro, foi à Assembleia de Freguesia perguntar “se não havia nenhuma árvore que pudesse ser colocada ali”, sugerindo uma cerejeira debaixo da sua janela “para que pudesse tirar umas cerejeiras de lá porque a vida está cara e as coisas têm tendência para aumentar”. “Além de dar uma flor bonita, também matava a fome a algumas pessoas”, disse de forma descontraída. “Falo de cerejeira mas também podia ser uma laranjeira, uma de clementinas ou uma castanheira.” Rosa também quis saber quantos carros iam passar a poder estacionar no passeio agora reduzido. “Porque para três carros, levantarem todo aquele pavimento acho uma estupidez. O passeio até estava bom”, comentou. Na perspectiva de Rosa, bastaria fazer marcações para os veículos no passeio e “rebaixá-lo um bocadinho”.
Na sessão da Assembleia de Freguesia, recebeu a confirmação da Junta de que seriam efectivamente criados três lugares de estacionamento e que “não é permitido estacionar em cima dos passeios”, pelo que se estava a recortar uma pequena bolsa de lugares. Rosa ficou ainda com outra notícia: “Talvez seja possível colocar a árvore depois de concluído o recorte [dos lugares]. Vão verificar se será compatível com as infraestruturas de subsolo.” Mas não poderia ser uma cerejeira, referiu a Junta. “Uma laranjeira já é mais possível.” A Rua do Vale de Santo António é uma artéria íngreme, que liga Santa Apolónia até lá acima, ao Mercado dos Sapadores, na Penha de França. Não há uma única árvore em toda a sua extensão. A zona de passeio que está a ser reduzida poderia receber um pequeno espaço de lazer e de encontro entre vizinhos – com um piso liso e acessível, sombra de árvores e dos prédios, e alguns bancos e mesas – em vez de três lugares de estacionamento automóvel. É esta a proposta de um grupo de moradores e vizinhos daquela rua, consolidada na forma de um abaixo-assinado, que juntou 132 assinaturas, incluído a de Rosa. O documento já foi entregue na Junta de Freguesia de São Vicente para que a vontade destas pessoas possa ser discutida numa próxima Assembleia de Freguesia.

Entre as várias assinaturas está a de Maria José Soares. Reformada, Maria integrou como independente a lista New Times para a Assembleia de Freguesia de São Vicente nas eleições autárquicas de 2021. Diz ao Lisboa Para Pessoas que a sua grande motivação “é a defesa do bem comum, do meu bairro e da minha freguesia”, e que não está comprometida com nenhuma força partidária. “Só quero estar presente, quero estar a refilar, não quero estar lá à frente”, conta, esclarecendo que o convite para integrar uma lista lhe surgiu depois de ter começado a estar mais atenta e envolvida em assuntos locais [Maria José não foi eleita, participando nas sessões da Assembleia em substituição de membros eleitos]. Acima de tudo, Maria refere que é uma cidadã (“Não nos quisemos envolver enquanto lista”), e é nessa condição que se juntou ao abaixo-assinado e que decidiu ajudar Rosa na mobilização dos vizinhos da rua.
Maria diz que “há uma invasão do carro” e que estas obra, como outras que vão sendo feitas pela cidade, vai “contra o direito a passear sem problemas, calmamente, num passeio, para ir às compras ou a qualquer outro lado”. Na Rua do Vale de Santo António, a intervenção em curso não vai colocar em causa a mobilidade pedonal, até porque a calçada está a ser renovada para ficar mais aderente e as passadeiras vão ficar mais acessíveis. Mas, na perspectiva de Maria, perdeu-se “uma grande oportunidade” para melhorar “aquele rectângulo”, numa rua onde existe “pouco espaço” para a população – sobretudo a mais idosa – se encontrar, saindo de casa e convivendo na rua. “Parece que estamos a ser engolidos pelos carros”se lamente-t-il. “Eu tenho carro, não o uso muito e, por isso, vou deixá-lo mais longe”, diz, referindo que há espaços na cidade onde se poderia criar parques de estacionamento, servidos por “pequenos autocarros sempre a passar” para as pessoas chegarem às casas, ao comércio, ao trabalho, etc.


“Há uma destruição do que pode ser bom para a população. É isso que me indigna.” Naquele rectângulo de passeio, Maria José Soares gostaria de ver “duas grandes árvores ou três de menor porte, e uns bancos e umas mesas” para trazer as pessoas para fora de suas casas e levá-las a conviver mais entre si. “Gostaria de ver a cidade com mais humanidade, com mais espaço para os cidadãos falarem”, diz, referindo a importância desses diálogos, encontros e conversas para a saúde democrática e lembrando o papel dos cafés noutros séculos. “Estamos a perder o espaço comum. E a cidade está a ficar sem beleza. Só uma árvore já é algo belo.”
Na mesma Assembleia de Freguesia, Rosa contou que, no Santo António e depois também no São João, ajudou a criar naquele pedaço de passeio uma festa para a vizinhança. “Uns forneceram pão, outros as sardinhas, outros a carne. Eu fiz o bolo”, contou. Foi uma festa de vizinhos para vizinhos porque “as pessoas de idade também gostam de se divertir. Não conseguem ir à Graça, mas conseguem sair à rua”. Segundo Rosa, aquela pequena festa, familiar, informal, devolveu os Santos Populares a muitas pessoas. “Gostaria que se pensasse muito e muito nas pessoas idosas”, comentou; “o que se fez naquele canto podia fazer-se noutros cantos de Lisboa”. Maria José, que também foi àquele encontro de vizinhos na Rua do Vale de Santo António, conta que “foi delicioso” e um exemplo do que se pode fazer nos bairros, não necessariamente em ambiente de Santos Populares, com espaços públicos libertos de automóveis estacionamentos.
