Hรก 40 anos, o Martim Moniz era um parque de estacionamento; hoje discute-se o seu futuro enquanto praรงa pedonal e verde, enquanto espaรงo pรบblico de qualidade. Nos anos 1960, a Praรงa do Comรฉrcio, hoje uma das mais belas da Europa, servia tambรฉm ela para estacionar carros. Jรก nem conseguimos imaginรก-la assim. A ciclovia da Avenida da Repรบblica, que se tornou a mais popular da cidade, tem apenas quatro anos.
O rumo que Lisboa, agora, parece querer tomar vem chocar com dรฉcadas de investimento numa cidade que virava as costas ร s pessoas e dava primazia ao veรญculo privado: foram criadas largas avenidas e os passeios passaram a estar ladeados por estacionamento automรณvel. A cidade foi sendo desenhada em funรงรฃo do carro e da possibilidade de velocidade, um sinal de progresso, de modernidade. Os peรตes tornaram-se incรณmodos ร fluidez do trรกfego e, na hierarquia das prioridades, foram forรงado a ceder espaรงo ao automรณvel. As bicicletas praticamente desapareceram da malha urbana, o transporte pรบblico nunca foi suficientemente valorizado e cortaram-se รกrvores para abrir caminho para avenidas. Agora, a luta faz-se por uma redistribuiรงรฃo mais justa da cidade e pela inversรฃo das prioridades: as pessoas primeiro.
Lisboa depende, ainda, excessivamente do automรณvel mas, nos รบltimos anos, tem evoluรญdo para dar mais conforto ร s pessoas, aos transportes pรบblicos e, claro, ร bicicleta. Os vรกrios programas municipais, o investimento em infra-estrutura ciclรกvel e pedonal e no transporte colectivo, a distinรงรฃo enquanto Capital Verde Europeia 2020 e o acolhimento da conferรชncia Velo-city 2021 dรฃo conta de uma capital que parece assumir, sem rodeios, um compromisso com uma ideia de cidade que, por fim, parece virar-se para as pessoas que nela habitam, trabalham e estudam, e para o seu bem-estar.
Tornar Lisboa mais segura, mais verde, menos poluรญda, menos ruidosa e mais humana รฉ o caminho que urge percorrer, para que a cidade possa, uma vez mais, voltar a ser calcorreada por todos. Mas as mentalidades nรฃo se mudam de um momento para o outro. A re-transformaรงรฃo da cidade exige chocar com o que se tem, remover estacionamento para trocรก-lo por uma ciclovia, alargar passeios ร custa de uma via viรกria ou pintar uma nova faixa BUS que encurta a largura de uma avenida. No final do dia, o automรณvel perderรก espaรงo e o estatuto intocรกvel de outrora, passando a funcionar dentro de uma cidade menos dependente de si, menos poluรญda, menos congestionada, menos ruidosa e menos desequilibrada. Uma cidade mais humana, mais verde e mais inclusiva.
A mudanรงa de Lisboa tem sido longe de pacรญfica. Tem aumentado a crispaรงรฃo entre ciclistas e automobilistas, entre defensores de uma cidade mais humana e opositores de ciclovias. Tem proliferado desinformaรงรฃo, รณdio, petiรงรตes e grupos online. Esta divisรฃo torna necessรกrio um novo meio de comunicaรงรฃo social que auxilie na transiรงรฃo que a cidade estรก a fazer, de forma independente, colaborativa e convergente, sem segundas intenรงรตes. Uma plataforma que ofereรงa informaรงรฃo e ferramentas para decisรตes mais ponderadas e conscientes, que ajude no debate pรบblico sobre o futuro da cidade e que apresente a sua proposta de valor โ uma Lisboa Para Pessoas.
Uma nota prรฉvia importante. Nesta Lisboa para pessoas a bicicleta assume um elemento central. Nรฃo por fundamentalismo ou embirraรงรฃo, mas porque a bicicleta รฉ entendida como uma ferramenta utilitรกria, de liberdade, acessรญvel no seu custo e transversal, que pode ser conjugada com o andar a pรฉ, os transportes pรบblicos ou a viatura privada. Por isso, รฉ expectรกvel que no debate pรบblico sobre o futuro da cidade e neste projecto editorial a bicicleta surja com mais frequรชncia โ afinal, uma cidade mais humana, verde e democrรกtica รฉ uma cidade mais ciclรกvel. Aqui pensaremos numa Lisboa com a bicicleta mas sem a impor, uma Lisboa que inclua todas as pessoas, independentemente do seu meio de transporte, uma Lisboa da qual automรณvel tambรฉm faz parte, claro, mas sem determinar o tempo e o espaรงo da cidade.
Mรกrio Rui Andrรฉ
Lisboa Para Pessoas
Jornalista & Coordenador