
Na sua edição mais recente, a conceituada Monocle escreve que Lisboa é “possivelmente a cidade mais bem informada do mundo”, num artigo onde o jornalismo local parece ser confundido com jornalismo nacional, sendo mencionados o recente projecto Mensagem de Lisboa, mas também o Público, o Fumaça e a RTP. Só que, não só Lisboa não é Portugal como Lisboa é capaz de ser das regiões do país mais pobres em jornalismo regional. “Quem não conhece o território fica com uma ideia completamente errónea de que é o panorama dos média em Portugal. Pensa que isto é um oásis”, comenta Samuel Alemão, fundador d’O Corvo, um dos poucos projectos que marcou o jornalismo local em Lisboa nas últimas décadas.
Apesar de existirem hoje quase 500 órgãos de comunicação social registados em Lisboa pela ERC, de âmbito regional são menos de 40. E se excluirmos publicações de organismos políticos e de entidades, a lista fica reduzida essencialmente a dois nomes – a Mensagem de Lisboa e o Lisboa Para Pessoas –, a um ou outro título direccionado para uma freguesia específica como é o caso do já icónico Jornal da Praceta (sobre Alvalade), e a uma curiosa revista em língua francesa sobre a cidade, a Lisboete Magazine. O histórico Diário de Lisboa deixou de publicar no início dos anos 1990, depois de o ter feito desde 1921 e de por ele terem passado nomes como Fernando Pessoa, José Saramago, Mário Zambujal, João César Monteiro ou José Jorge Letria, entre tantos outros. E apesar de editado a partir da capital, onde o desenvolvimento do país se dava a um passo mais acelerado, o Diário de Lisboa assumia um carácter nacional – cujo arquivo pode ser consultado aqui.
“Importa-me preservar o projecto com dignidade”

Num tempo mais próximo – ou, seja, do tempo da internet –, Lisboa perdeu em 2019 O Corvo. Jornal exclusivamente digital, dirigido e editado por Samuel Alemão, ex-jornalista do Público, O Corvo tinha nascido em 2013 “da constatação de que cada vez se produz menos noticiário local”, lê-se na nota de apresentação do projecto, que ainda está no ar. “A crise da imprensa tem a ver com esse afastamento dos media relativamente às questões da cidadania quotidiana. Em paralelo, se as tecnologias cada vez mais o permitem, cada vez menos os cidadãos são chamados a pronunciar-se e a intervir na resolução dos problemas que enfrentam.” O Corvo existiu durante seis anos e durante esse tempo acompanhou o crescimento de Lisboa, esmiuçou-o, tratou-o. Nunca conseguiu ser verdadeiramente sustentável do ponto de vista financeiro, pelo que cessou a sua publicação a 29 de Maio de 2019. No texto de despedida, amplamente partilhado na altura, podia ler-se:
O fim chega por não termos conseguido encontrar forma de garantir a sustentabilidade financeira indispensável à continuidade do jornal. Apesar dos esforços desenvolvidos desde o início do projecto, a 1 de Março de 2013, e com especial vigor nos últimos dois anos, após o renovado impulso nascido de uma reconfiguração do capital da empresa, esgotámos a capacidade para continuar a fazer jornalismo independente de qualidade.
– nota publicada a 29 de Maio de 2019, no adeus a’O Corvo
O Corvo deixou de publicar mas não desapareceu. O seu site conta a história da cidade durante um período e Samuel está interessado em garantir que esta não desaparece. “É importante preservar o jornalismo que foi feito. A memória não pode ser rasurada, ainda para mais neste tempo em que vivemos e em que há uma poeira digital. Os artigos jornalísticos que foram feitos são documentos históricos”, diz em entrevista ao Lisboa Para Pessoas. “A memória é um tema que me preocupa desde sempre. Sou um grande obcecado por memória, sou daqueles que guarda dossiers com jornais lá em casa.” Entre um trabalho numa loja de discos – é um apaixonado por música – e alguns freelances a escrever, editar ou rever textos, o antigo jornalista d’O Corvo tem-se dedicado a rever cada um dos artigos d’O Corvo, principalmente os mais antigos que ficaram desformatados com o tempo.
O objectivo é que, depois, o Corvo possa ficar para sempre em Arquivo.pt, projecto público da FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) que pretende guardar a web portuguesa, incluindo o conteúdo publicado pela comunicação social. “Quero falar com eles para que o site esteja completamente integrado nos seus servidores. Quero que todos os artigos d’Corvo fiquem disponíveis no Arquivo.pt. Importa-me preservar o projecto com dignidade.” Por agora, o Arquivo.pt tem-lhe sido útil para recuperar algum do conteúdo d’O Corvo que perdeu no meio da vida do projecto, numa mudança de layout e de servidores. “Perdi muitas fotografias e estou a recuperá-las através do Arquivo.pt. Quero acabar esse trabalho este Verão.”
Navegar no arquivo d’O Corvo – por exemplo, sobre as áreas da mobilidade e do urbanismo – é navegar na história da cidade de Lisboa entre 2013 e 2019, nos seus problemas, nas questões que a marcaram, nas promessas que hoje ainda não foram cumpridas e nas mudanças sociais que ocorreram. Ao longo de seis anos, O Corvo fez um trabalho excepcional na cidade, de escrutínio de instituições políticas que não estão habituadas a ser escrutinadas porque há pouco jornalismo local sobre Lisboa (e não o houve, com algumas excepções na imprensa generalista, entre 2019 e 2021). O que é que falhou? “Falhou o dinheiro. Ao fim de seis anos havia já um cansaço acumulado. Não podes estar muito tempo a apertar o cinto ou a viver com muito pouco dinheiro, é como aguentar com a cabeça debaixo de água: podes suster a respiração mas não por muito tempo”, conta Samuel. As suas circunstâncias pessoais e algum dinheiro poupado, “gerido com muita parcimónia”, permitiram-lhe arriscar durante algum tempo. Mas, “uma pessoa não vive só de paixão. Também tem a sua vida, a sua vida privada.”

Samuel começou O Corvo em 2013 com Francisco Neves e Fernanda Ribeiro, ex-colegas do Público, que até 2006 mantinha um caderno local sobre Lisboa (além de um caderno no Porto e, durante o Verão, um no Algarve), no qual Samuel colaborou entre 1998 e 2001. O entusiasmo inicial partiu “daquela ingenuidade de fazer uma coisa nova, que eu também tinha”, numa cidade em grande mudança. “A partir do final de 2012 começámos a preparar o terreno e começámos online a 1 de Março de 2013. Nós os três. Cada um de nós convidou malta que conhecia, desde veteranos do Público como a Isabel Braga ou o Luís Filipe Sebastião, até miúdos novos, ilustradores, fotógrafos…”, recorda Samuel sem grande esforço. “A primeira reunião que tivemos foi ali na Padaria Portuguesa, e eu lembro-me de estar numa mesa, assim meio inseguro, e estavam assim umas 12-15 pessoas”, conta, confessando que não esperava uma adesão tão grande.
Todos trabalharam pro-bono, porque, apesar de haver vontade de fazer d’O Corvo um projecto sério e sustentável, a vontade de fazer jornalismo local era maior e mais urgente do que a disponibilidade financeira. “E as pessoas foram-se cansado, umas mais cedo que outras, e foram saindo lentamente. E eu fui aguentando o barco.” Em 2017, “estava já muito cansado, exausto, literalmente a atirar a toalha ao chão quando me apareceu o Daniel Toledo a propor sociedade”. Daniel, um jornalista espanhol, freelancer, que estava por Lisboa, conheceu Samuel porque partilhavam o mesmo espaço de cowork, a Noticiaria, na baixa. Conhecia o seu trabalho, admirava O Corvo, formou-se uma amizade e decidiu ajudá-lo na revitalização do projecto. Juntos, formaram uma empresa repartida de forma igual entre os dois, na qual Daniel entrou com o capital financeiro e Samuel com o capital jornalístico. Ganhavam o ordenado mínimo e contrataram através de um estágio de IEFP Sofia Cristino, uma jovem jornalista que hoje integra a equipa do Jornal de Notícias e que começou a sua carreira a cobrir a cidade de Lisboa para O Corvo.
“O bom jornalismo é sempre um jornalismo de incómodo.”
Nos últimos anos d’O Corvo, o jornal foi escrito essencialmente por Samuel e Sofia, editado num MacBook de 2008 que Samuel ainda mantém, e fotografado com a câmara do telemóvel que os dois transportavam no bolso. No caso de Samuel, o portfólio fotográfico d’O Corvo (e da cidade) foi feito com o seu ainda actual iPhone 4S. “Este telemóvel é um telemóvel de guerra. Tirei e continuo a tirar o máximo partido que podia dele e do computador. Foi esticar a coisa até ao limite” Uma das motivações do Corvo era não “fazer jornalismo sentado”. “Era ir para a rua, proximidade às pessoas, à histórias, às notícias”, diz. Mas essas histórias, esse jornalismo, diz, não deve ser só “florzinhas e coisas positivas” – deve ter um teor incomodativo. “O bom jornalismo é sempre um jornalismo incómodo.”
O Corvo foi um incómodo muitas vezes, principalmente para a Câmara de Lisboa e restantes estruturas e instituições de governação da cidade. “Conseguimos irritar a Câmara muitas vezes”, relata. “Algumas pessoas diziam-nos que estávamos sempre a ver o lado negativo das coisas, que éramos muito negativistas. Mas isso não era verdade. Não é tudo perfeito, de bater palmas. E nós, jornalistas, devemos ser um ponto de ruptura.” O Corvo era “acusado de tudo e um par de botas”, “um sinal de não estávamos coligados com ninguém [nenhum partido]”: “Éramos acusados de ser pro-Câmara, de ser de direita, de ser bloquistas, comunistas…” “As pessoas parecem que acham que quem faz jornalismo tem sempre um interesse escondido.”
Agora e de fora, Samuel consegue mais facilmente identificar o que falhou e assume uma “mea culpa”. “No meio daquele jornalismo diário, tínhamos sempre coisas para fazer todos os dias. Acabei por ficar afogado naquela rotina diária, numa parálise.” A sua extrema dedicação ao jornalismo e à cidade levou-o a não pensar demasiado em construir um negócio – ou, pelo menos, uma actividade sustentável financeiramente – em torno do projecto. O site tinha o sistema de anúncios da Google – o AdSense – que dava pouco por mês, e chegou a haver alguns contactos comerciais realizados, sem sucesso. “Chegámos a ter uma agência de comunicação, mas deu zero ou perto disso”. Depois de o projecto acabar, Samuel conta que foi contactado por um investidor ligado ao imobiliário da cidade mas a conversa não chegou a lado nenhum. “Eu e o Daniel estávamos dispostos a fazer dinheiro a vender o título, e fizemos-lhes uma proposta. Eles foram pensar mas depois desistiram. Queriam-me a mim à frente, queriam a liderar o projecto. Mas eu estava muito cansado, precisava de uma sabática”, conta.

Quando O Corvo nasceu, Lisboa estava muito diferente daquilo que é hoje e a transformação da cidade, que Samuel presenciou, vai-se sentindo ao longo do histórico do projecto. Em 2013, António Costa, então Presidente da Câmara, ainda tinha o seu gabinete no Largo do Intendente, para onde o tinha mudado temporariamente para mostrar que aquele largo tinha ganho uma nova vida, depois das obras de renovação. Hoje, uma entrevista com o fundador d’O Corvo pôde ocorrer no Largo do Intendente. “Isto antes era um parque de estacionamento de camiões, de prostitutas, de pessoas a injectarem-se. Era decadente, era muito mau.”
A pandemia que temos estado a viver colocou-nos a relacionarmo-nos muito mais com o nosso bairro, com as pequenas mercearias e o comércio local, e começámo-nos a aperceber muito mais do que se passa na nossa rua e do que não se passa – como os espaços verdes inexistentes. Para Samuel, “este movimento de as pessoas estarem mais ligadas à cidade” começou muitos anos antes, depois da crise que trouxe a Troika a Portugal. “As pessoas começaram a ver a cidade de forma diferente, se calhar um pouco ilusoriamente; a querer voltar às raízes, ao local, à proximidade. E agora, uma década depois, esse movimento voltou.” Pode ser um movimento de altos e baixos, mas há um “contínuo de mudança”, na opinião de Samuel. “Em Portugal as pessoas não são tão engajadas como noutros países da Europa. É uma coisa cultural. Estamos a aprender a ter esse compromisso cívico.” A internet e as redes sociais, por seu lado, têm permitido às pessoas estar mais vigilantes, “o que é bom e mau”. “Às vezes basta uma coisinha de nada e as pessoas ficam histéricas com o que está a passar. Nem há tempo para pensar, não deixam a poeira poisar, reagem logo.”
Lisboa mudou desde 2013 (ou desde 2019), mas também o jornalismo. E talvez hoje, O Corvo, pudesse ter optado por outros caminhos, como um modelo de contribuições ou de assinaturas, como vários órgãos têm vindo a explorar. Para Samuel, apoiar a comunicação social é também um papel do Estado. “Chegamos a um ponto tal que nos leva a pensar que o que nós temos a perder por não ter órgãos de comunicação social é muito maior do que ter órgãos que possam ser apoiados pelo Estado, se as regras forem claras e se criar um fundo independente que possa ser gerido dessa forma.” Mesmo se o Estado decidir apoiar o jornalismo em Portugal, Samuel Alemão não sabe se se aventura novamente n’O Corvo, mas não descarta um regresso do projecto. “A minha vontade não é muita. Sou mentalmente inquieto, gosto de fazer coisas novas”, confessa. “Por isso, tinha de ser algo com grandes condições. Não quero repetir o sofrimento que tive. Foram muitos anos de sangue, suor e lágrimas. Saiu-me do pêlo. Foi muito custoso. Orgulho-me do que fiz mas quando acabei, não escondo, senti um alívio: ‘já acabou e vou descansar um bocado’.”
E remata: “A história da vida está sempre por escrever e uma pessoa não pode ter medo.”