
Não é preciso recuar muito nos arquivos da cidade de Lisboa para encontrarmos registos de crianças a brincar nas ruas. Mas o automóvel acabou, nas últimas décadas, por tomar conta do nosso espaço público, tornado-o, em alguns casos, inóspito o suficiente para que tais memórias do passado deixassem de ter significado no presente. As ruas passaram a ser dos carros, não das pessoas – e muito menos das crianças.
No Bairro do Caramão, na Ajuda, a cidade cosmopolita parece interromper-se para dar lugar a ruas estreitas e sem passeio, a vivendas humildes e a uma atmosfera típica de uma típica zona rural. Neste bairro, um troço da Rua Chaminés del Rei foi pintado de azul para acalmar o tráfego e assinar uma nova zona de coexistência, onde o peão tem prioridade em relação aos veículos e onde as crianças podem sair para brincar. A intervenção foi executada pela Junta de Freguesia da Ajuda (JFA), a pedido dos moradores e em coordenação com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), segundo explicou ao Lisboa Para Pessoas fonte da JFA.
Trata-se de uma intervenção pop-up, isto é, de uma obra de baixo de custo e de fácil execução, realizada com materiais baratos como tinta e pilaretes. O objectivo foi responder a um problema assinado por residentes da rua, preocupados com o tráfego de atravessamento, isto é, com as pessoas que, nos seus veículos, usavam aquela rua como desvio entre a Estrada de Pedro Teixeira e a Estrada de Queluz e que, por vezes, aplicavam velocidades excessivas, colocando em perigo os moradores do bairro.
A Junta de Freguesia da Ajuda pediu à divisão de mobilidade da CML uma proposta para aquela artéria e apresentou-a à população. O projecto foi executado sem alterações tirando uma – foi acrescentada uma lomba, a pedido dos moradores. A JFA custeou a intervenção ao abrigo da delegação de competências da autarquia central para as freguesias, e os trabalhos foram realizados em poucos dias no final de Julho.
A Rua Chaminés del Rei ganhou, assim, uma zona de coexistência (com uma lomba) a meio da sua extensão, numa curva de fraca visibilidade e de onde os carros poderiam “sair disparados”, sem que os seus condutores reparassem nas crianças ou noutras pessoas que pudessem estar na rua. É que essa curva é também um espaço de lazer – a única “folga” em toda a rua onde existe uma pequena área ajardinada, sombra de algumas árvores, uma mesa para estar à conversa ou a jogar às cartas, e um moinho antigo. Há ainda um sinal a dizer “Atenção, crianças a brincar” e uma tabela de basquetebol.
A JFA refere que a intervenção realizada é apenas uma “primeira fase” e que irá trabalhar num projecto mais de fundo para aquele troço, com vista a dar ao bairro uma nova zona de estadia. A ideia é aproveitar o largo existente e a zona de coexistência agora criada, e pensar numa forma de ligar tudo isso com o moinho, que neste momento se encontra abandonado mas que a Junta, tal como fez com outros moinhos da freguesia, quer requalificar.
Tudo está, neste momento, em aberto, desde subir o pavimento na área que foi agora pintada de azul para melhor assinalar a zona de coexistência a fechar esse troço inteiramente ao trânsito de veículos, fazendo-os contornar o moinho. Esta última opção será possível uma vez que a Rua Chaminés del Rei ao encontrar o moinho se divide em duas, uma segue em frente (e é agora a tal zona de coexistência) e outra contorna-o, servindo algumas habitações. A JFA ainda não tem respostas, sendo a única certeza a vontade de dignificar aquele moinho e de criar em torno dele um espaço público de qualidade para a comunidade residente.
Além da zona de coexistência (onde alguns condutores, ainda assim, teimam em estacionar os seus automóveis), a Rua Chaminés del Rei recebeu outros apontamentos de azul: um logo à entrada, para sinalizar, aos condutores e outros transeuntes, que aquela é uma rua diferente (foram também colocados pilaretes para reduzir o raio de curvatura), e junto às escadarias de acesso às habitações, de forma a assinalar que devem estar desimpedidas.
Os bairros podem ser sítios calmos e sossegados. Ao eliminar o tráfego de atravessamento, abrandar as velocidades (baixando o limite para 30 km/h) e ao reduzir o trânsito ao essencial (necessidades dos moradores e comerciantes), é possível voltar a ter ruas com vida, onde pessoas, bicicletas, crianças e mesmo veículos motorizados possam conviver em segurança. As ruas podem voltar a ser espaços de recreio, de gargalhadas, de brincadeiras – principalmente em bairros mais isolados da confusão da cidade, como é este Bairro do Caramão, na Ajuda.