Estudo foi desenvolvido por dois investigadores com a participaรงรฃo activa da comunidade local de Marvila. Trabalho faz um diagnรณstico da mobilidade numa das freguesias mais desconsideradas da cidade, e apresenta soluรงรตes.

Foi apresentado nesta terรงa-feira, 20 de Setembro, na Biblioteca de Marvila, o maior estudo alguma vez realizado sobre mobilidade em Marvila. Intitulado Estudo Participativo sobre a Mobilidade em Marvila, o relatรณrio โ que podes consultar neste artigo โ traรงa uma radiografia das deslocaรงรตes num territรณrio desconhecido de muitos e habitualmente desconsiderado nas polรญticas de mobilidade da cidade.
Co-autorado por dois investigadores, Inรชs Vieira (da รกrea da ecologia e educaรงรฃo) e Henrique Chaves (de sociologia), da associaรงรฃo de regeneraรงรฃo urbana Rรฉs do Chรฃo no รขmbito do projecto social Gingada, o estudo foi financiado pelo programa BIP/ZIP da Cรขmara Municipal de Lisboa (CML) e contou tambรฉm com uma bolsa da Fundaรงรฃo para a Ciรชncia e a Tecnologia (FCT).
O estudo, que tem uma “intencionalidade sociopolรญtica”, foi desenvolvido a partir de uma abordagem participativa, envolvendo a populaรงรฃo local “em diversas fases, desde o planeamento e desenho do projecto e do instrumento de pesquisa atรฉ ร discussรฃo e validaรงรฃo de resultados do estudo”, lรช-se na introduรงรฃo do relatรณrio. Os investigadores entendem que “o conhecimento รฉ considerado instrumento de transformaรงรฃo social e promotor da consciencializaรงรฃo da populaรงรฃo que estรก em situaรงรฃo investigativa” e realรงam que a iniciativa de estudar Marvila surgiu “na sequรชncia de aรงรตes reivindicativas locais pela mobilidade ciclรกvel e pela qualidade ambiental”
Dividido em quatro capรญtulos, o relatรณrio do estudo apresenta a metodologia utilizada, faz um enquadramento da freguesia de Marvila, apresenta os resultados do Inquรฉrito ร Mobilidade em Marvila realizado e que serve de base ao estudo, e apresenta reflexรตes e propostas a partir dos dados recolhidos. Podes ler o estudo na รญntegra aqui:
Quais as conclusรตes?
No Inquรฉrito ร Mobilidade em Marvila, participaram 396 pessoas, a vasta maioria residente em Marvila (83%), 46% do sexo masculino e 54% do sexo feminino; em termos de idades, 14% tรชm atรฉ 17 anos, 71% entre os 18 e 64 anos e 15% idade igual ou superior a 65 anos. Em termos de ocupaรงรฃo, 46% sรฃo trabalhadores, 16% estudantes, 5% trabalhadores-estudantes, 14% desempregados (a maioria do sexo masculino, ao contrรกrio das restantes situaรงรตes), 13% reformados e 3% noutras situaรงรตes.
Entre os participantes, 54% completaram algum nรญvel do ensino bรกsico, 22% o ensino secundรกrio e 15% o ensino superior (com maioria do sexo feminino, nรฃo residentes), num territรณrio que apresenta a maior taxa de analfabetismo da cidade (6,85%). Quase metade dos nรฃo residentes inquiridos visita Marvila diariamente. Verificou-se uma distribuiรงรฃo desigual de participantes pelo territรณrio de Marvila โ os autores entendem que “a implantaรงรฃo territorial das entidades parceiras no territรณrio pode ter tido impacto nas zonas com mais participantes no inquรฉrito”.

Eis algumas das conclusรตes do Inquรฉrito:
- A maioria da infraestrutura de mobilidade na freguesia favorece a circulaรงรฃo rodoviรกria de forma acelerada, criando inseguranรงa para a mobilidade pedonal e ciclรกvel;
- Para residentes na freguesia, os principais destinos em Marvila sรฃo locais de comรฉrcio, mas tambรฉm lazer e restauraรงรฃo. Quando se deslocam para fora de Marvila, รฉ por trabalho. Nรฃo residentes vรชm a Marvila trabalhar, ร restauraรงรฃo, mas tambรฉm comรฉrcio, casa de outros e lazer.
- Os participantes no inquรฉrito deslocam-se sobretudo a pรฉ, sendo este meio de mobilidade menos destacado no caso de deslocaรงรตes para o trabalho, onde o automรณvel ganha importรขncia, e saรบde, em que o autocarro รฉ mais frequente.

- Sendo o comรฉrcio o principal motivo de deslocaรงรฃo indicado pelos inquiridos, as deslocaรงรตes para este efeito sรฃo realizadas maioritariamente a pรฉ, mas tambรฉm tรชm bastante expressรฃo as deslocaรงรตes em automรณvel e autocarro.
- A bicicleta รฉ indicada como meio de mobilidade (sem integraรงรฃo intermodal) em menos de 10% das respostas, com maior frequรชncia quando os destinos sรฃo de lazer, espaรงos verdes e comรฉrcio.
- Os participantes indicam a duraรงรฃo de atรฉ 15 minutos para a maioria das suas deslocaรงรตes, com maior dispersรฃo de respostas nas deslocaรงรตes para o trabalho (que podem demorar mais tempo), sendo o intervalo entre os 16 e os 30 minutos tambรฉm referenciado em deslocaรงรตes para comรฉrcio, lazer e restauraรงรฃo.
- Os participantes de sexo masculino indicam tempos menores de deslocaรงรฃo e revelam utilizar mais meios de transporte individuais (sobretudo automรณvel), enquanto que as participantes de sexo feminino indicam mais deslocaรงรตes pedonais e transportes coletivos (exceto metro).
- Os inquiridos em idade mais ativa (18 a 64 anos) sรฃo os que demoram mais tempo nas suas deslocaรงรตes e utilizam mais transporte individual motorizado. Os inquiridos em idade mais jovem (atรฉ aos 17 anos) sรฃo os que denotam maior utilizaรงรฃo de meios de mobilidade ativa (andam a pรฉ, tal como os restantes participantes, mas utilizam comparativamente mais bicicleta e trotineta). Os inquiridos em idade mais avanรงada (acima dos 65 anos) sรฃo os que apresentam a maior taxa de mobilidade pedonal e de utilizaรงรฃo de transportes coletivos.

Sobre as bicicletas em particular:
- Para alรฉm de uma prรกtica de lazer associada ร infรขncia, a bicicleta apresenta-se como uma opรงรฃo de mobilidade mais ponderada por quem tem mais qualificaรงรตes acadรฉmicas. Os que menos pedalam sรฃo maioritariamente adultos, nomeadamente jovens adultos com ensino secundรกrio e adultos com mais idade e que mais frequentemente terminaram de estudar no final do 1o ciclo do ensino bรกsico.
- Mais de metade dos estudantes inquiridos revela que anda de bicicleta. No caso dos trabalhadores e estudantes-trabalhadores, a percentagem desce para cerca de um terรงo, sendo ligeiramente superior no caso dos desempregados.
- Cerca de um terรงo dos participantes com pessoas dependentes dos seus cuidados revelam que andam de bicicleta, sobretudo no caso de cuidadores de crianรงas, pelo que a situaรงรฃo de cuidador/a nรฃo se associa necessariamente a bloqueio ร mobilidade ciclรกvel.
- A bicicleta apenas รฉ referenciada como opรงรฃo de mobilidade para o trabalho ou para o estabelecimento de ensino por 14% dos utilizadores (maioritariamente adultos de sexo masculino), equivalendo a 4% dos participantes no inquรฉrito.

- Ponderando as motivaรงรตes dos participantes para andar de bicicleta, destacam-se, para mais de metade dos participantes utilizadores, motivos relacionados com saรบde, forma fรญsica e prazer; segue-se a motivaรงรฃo por rede de influรชncia, salientando a importรขncia de amigos, colegas ou familiares tambรฉm usarem bicicleta.
- O factor mais indicado no sentido de incrementar a utilizaรงรฃo de bicicleta por atuais utilizadores foi a necessidade de mais ciclovias e estacionamento, observando-se tambรฉm a importรขncia de factores como a possibilidade de fazer trajectos mais curtos entre os locais frequentados, a reduรงรฃo da velocidade dos automรณveis, a possibilidade de ter uma bicicleta โ sobretudo se for elรฉctrica ou outra mais adaptada ร s suas deslocaรงรตes โ, uma melhor rede de bicicletas pรบblicas, ter onde guardar a bicicleta no trabalho/escola/casa, poder levรก-la facilmente nos transportes pรบblicos e proceder a alteraรงรตes na sua rotina.
- Entre os motivos indicados para nรฃo utilizar a bicicleta como modo de deslocaรงรฃo salientam-se nรฃo ter bicicleta e nรฃo saber conduzi-la, particularmente em meio urbano. Num segundo patamar encontramos participantes que referem nรฃo gostar ou ter preguiรงa de andar de bicicleta, bem como colocando questรตes de saรบde e/ou idade. Um conjunto mais restrito de participantes refere questรตes relacionadas com o perfil orogrรกfico de Lisboa, onde se verificam muitas subidas e descidas, a necessidade de alteraรงรฃo de rotinas e a percepรงรฃo de inseguranรงa do trรขnsito (quase exclusivamente no caso de mulheres).
- Ponderando os factores que poderiam fazer com que os actuais nรฃo utilizadores passassem a utilizar a bicicleta, a maioria das respostas aponta para a possibilidade de ter uma bicicleta, seguindo-se (sobretudo entre participantes do sexo feminino) a necessidade de aprender a andar de bicicleta na cidade. Seguem-se a necessidade de alterar rotinas e de mudanรงas infra-estruturais ao nรญvel de ciclovias, estacionamento e soluรงรตes para guardar a bicicleta no trabalho, escola ou casa.
- Considerando as opiniรตes dos participantes em relaรงรฃo ร construรงรฃo de ciclovias em Marvila, destaca-se o facto de as perceรงรตes serem maioritariamente favorรกveis, sobretudo no que diz respeito ร melhoria de indicadores ambientais (qualidade do ar), ร facilitaรงรฃo da circulaรงรฃo de ciclistas e ao aumento das formas de acesso ao resto da cidade. Com percepรงรตes maioritariamente positivas mas expressรฃo um pouco maior de respostas negativas e de nรฃo respostas, encontramos questรตes sobre alteraรงรตes em quem e como se usa o territรณrio: trazer mais pessoas para viver em/visitar Marvila e impacto no comรฉrcio local.
- No que diz respeito aos impactos no trรขnsito e mais especificamente na circulaรงรฃo automรณvel, as respostas denotam percepรงรตes menos favorรกveis. ร excepรงรฃo da reduรงรฃo da velocidade de trรขnsito e da alteraรงรฃo dos passeios para peรตes, as consequรชncias previstas nesta matรฉria sรฃo avaliadas de forma maioritariamente negativa: diminuir as vias de circulaรงรฃo automรณvel e os lugares de estacionamento para os carros sรฃo os pontos que mais preocupam os participantes neste estudo.
- Em mรฉdia, verificam-se nรฃo respostas sobre ciclovias por cerca de um terรงo dos participantes no inquรฉrito, denotando um afastamento dos participantes no inquรฉrito em relaรงรฃo a estas questรตes.

Com 35,4 mil habitantes (Censos 2021), Marvila รฉ a segunda maior freguesia de Lisboa em termos populacionais. ร tambรฉm uma das maiores freguesias da cidade. Ainda assim, รฉ um territรณrio disperso, com vรกrios baldios e pouca coesรฃo, onde algumas das mais recentes polรญticas de mobilidade que temos visto por Lisboa nรฃo entram. Hรก poucas ciclovias com perfil utilitรกrio, nรฃo hรก rede GIRA e tambรฉm nรฃo hรก operadores privados de mobilidade suave partilhada. Com um espaรงo pรบblico centrado no carro, composto por amplas avenidas, sobre-dimensionadas, e que em muitos casos rasgam e dividem bairros ao meio, Marvila รฉ simultaneamente uma freguesia com passeios inexistentes em muitas ligaรงรตes.
“As vias rรกpidas acabaram por criar cisรตes no territรณrio, fragmentando-o para alรฉm das infraestruturas ferroviรกrias e da sua configuraรงรฃo intrinsecamente difรญcil de transpor, devido ao relevo acidentado. Apesar da sua histรณria e proximidade ao centro de Lisboa, Marvila รฉ ainda percecionada por vรกrios residentes como sendo uma zona perifรฉrica, sobretudo pelos constrangimentos de mobilidade e acessibilidade. O seu tecido urbano, muito fragmentado e disperso, รฉ conectado essencialmente por vias de alta velocidade, destinadas (ainda) exclusivamente a veรญculos motorizados.”
โ Estudo Participativo sobre a Mobilidade em Marvila

Marvila conta com duas estaรงรตes de comboio (Marvila e Braรงo de Prato) e duas de metro (Chelas e Bela Vista), e vรกrias ciclovias mas orientadas para lazer. Em 2020, foram construรญdas algumas ciclovias de estilo pop-up de 1,2 km nas ruas Pardal Monteiro e Eng. Ferreira Dias. Neste momento, estรก em construรงรฃo um curto troรงo de ciclovia junto ร Avenida Santo Condestรกvel. Os investigadores salientam que a “dupla linha de comboio (…) salienta a divisรฃo entre a zona ribeirinha (Marvila Velha/Antiga), onde estรก a acontecer um processo acelerado de investimento imobiliรกrio e transformaรงรฃo ao nรญvel da chegada de indรบstrias criativas, e os bairros situados na รกrea do Plano de Urbanizaรงรฃo do Vale de Chelas, em que grande parte do edificado habitacional รฉ de cariz pรบblico, e que teve como objetivo o realojamento”.

E agora?
O Estudo Participativo sobre a Mobilidade em Marvila faz um diagnรณstico da freguesia, traรงa um conjunto de conclusรตes e, por รบltimo, apresenta uma sรฉrie de recomendaรงรตes. Um contributo para a cidade, para a comunidade e, em especial, para os decisores. “Este estudo participativo tem como um dos seus propรณsitos ancorar as reivindicaรงรตes locais por mais e melhores infraestruturas de mobilidade em Marvila”, pode ler-se no relatรณrio.
Algumas das recomendaรงรตes apresentadas:
- Trabalhar com pais de crianรงas e jovens, antecipando o interesse dos mais novos pelo uso de automรณveis, propondo em alternativa os meios activos de mobilidade e os transportes pรบblicos;
- Apoiar grupos locais que procuram perceber como se deslocar de forma segura entre territรณrios, explorando diferentes tipos de bicicletas, mapeando percursos e apoiando a formaรงรฃo de (potenciais) utilizadores de bicicleta;
- Aproveitar o espaรงo escolar para se criar formaรงรตes de promoรงรฃo da coexistรชncia segura no trรขnsito, como tambรฉm que este espaรงo seja de incentivo ร mobilidade ativa e/ou em transportes pรบblicos;
- Disponibilizar para fins comerciais e/ou sociais as lojas municipais que estรฃo vazias, discutindo, bairro a bairro, as soluรงรตes de maior interesse para estes espaรงos;
- Reforรงar a oferta da Carris para que existam mais carreiras, sobretudo de bairro, que liguem as diferentes partes da freguesia;

- Promover a discussรฃo pรบblica e a participaรงรฃo da populaรงรฃo local na avaliaรงรฃo e no delineamento de estratรฉgias para o territรณrio e a mobilidade, nomeadamente sobre a rede ciclรกvel e infraestruturas conexas em Marvila e a sua integraรงรฃo com a restante cidade.
- Introduzir os serviรงos das bicicletas GIRA em Marvila e articular com as operadoras dos transportes partilhados para que Marvila tambรฉm entre nos seus mapas;
- Construir ciclovias de bairro, pensadas nos percursos efetivos das crianรงas para as suas escolas;
- Criar e reforรงar os parqueamentos de bicicletas na freguesia, com a possibilidade de criar estruturas que permitam maior seguranรงa para guardar bicicletas, como jรก acontece em outras zonas de Lisboa;
- Criar passeios onde nรฃo existem e melhorar os existentes, garantindo a mรกxima acessibilidade para pessoas com dificuldades de mobilidade;
- Reforรงar os mecanismos para reduรงรฃo da velocidade da circulaรงรฃo rodoviรกria. Por exemplo, a partir das reivindicaรงรตes de diversos moradores, criar estruturas dissuasoras de velocidade, como as lombas, semรกforos e outros mecanismos que cumpram este fim.
Podes consultar o relatรณrio completo aqui.
