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Plano Ferroviário Nacional: o que é, o que não é, o que tem e o que não tem

Opinião.

Um Plano Ferroviário Nacional não é um plano de investimentos, nem teria de o ser. É um documento estratégico que elenca onde é pertinente ter comboio e onde é dispensável, para onde deve o país caminhar em futuros quadros de investimento público e onde se deve abster de gastar dinheiro. É uma direcção, não é…

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Dia 17 de Novembro de 2022 entra para a história das políticas públicas portuguesas – pela primeira vez desde a abolição da ditadura, Portugal volta a ter um documento estratégico para desenvolvimento a longo prazo da rede ferroviária, permitindo consolidar uma visão coerente para futuras intervenções. Ou melhor, terá – o Plano Ferroviário Nacional (PFN) está agora em discussão pública e, no final desse processo, será codificado na lei nacional, tal como já existe um Plano Rodoviário Nacional.

Um Plano Ferroviário Nacional não é um plano de investimentos, nem teria de o ser. É um documento estratégico que elenca onde é pertinente ter comboio e onde é dispensável, para onde deve o país caminhar em futuros quadros de investimento público e onde se deve abster de gastar dinheiro. É uma direcção, não é um caminho.

Por isso, não é de espantar que o PFN não fale em prazos de execução (embora tenha um horizonte temporal indicativo – 2050), nem fale em financiamento. O propósito deste plano é que, para infraestruturas que têm de ser planeadas em rede, os sucessivos quadros de investimento vão satisfazendo as necessidades elencadas por este documento de planeamento territorial, por oposição a intervenções individualizadas, desligadas, por vezes mesmo contra-producentes.

Neste âmbito, o PFN reconhece como objectivo primordial o equilíbrio do território, para reequilibrar as oportunidades de franjas do território que deixaram de ter ferrovia ou que nunca a tiveram em patamares competitivos. Assim, todas as capitais de distrito continentais, a que cumulativamente somamos 27 dos 28 centros urbanos de índole regional do PNPOT, deverão ser servidas por ferrovia pesada, integradas na rede nacional de transporte de passageiros e de mercadorias.

O objectivo é colocar a quota modal do caminho de ferro em 20% nos passageiros (hoje em dia, à volta dos 5%) e das mercadorias nos 40% (hoje em dia, à volta dos 13%), num quadro em que os volumes globais continuarão a crescer continuamente o que, assim obriga a que o comboio conquiste algo como seis vezes mais tráfego do que tem actualmente. Isso implicará, a jusante, aumentar capacidade na rede, solucionando gargalos e duplicando itinerários.

O que devemos celebrar do PFN

Pedro Nuno Santos e a sua equipa pensam muito bem o caminho de ferro a nível estratégico. Este documento é uma nova prova, talvez a definitiva.

A ideia de que a rede se deve desenvolver a partir de um nível de serviço desejado é uma inversão histórica do pensamento em Portugal, colocando-nos mais a par da filosofia suíça. O PFN está construído a partir de uma matriz de serviços, hierarquizada, ponderada com tempos de viagem desejados e frequências necessárias. As linhas no mapa aparecem a partir daqui, e não o oposto.

Esquema de serviços interurbanos a Norte de Lisboa

O PFN confirma a coerência do PNI 2030 (Plano Nacional de Investimentos 2030), estando estruturado em cima da linha de alta velocidade Lisboa – Porto e do novo acesso a Espanha, por Évora, a que se soma a nova linha de Sines. A estas se soma a linha Porto – Vigo (parcialmente prevista no PNI 2030), a linha de Trás-os-Montes (uma dívida de décadas do país para com esta região) e a nova linha Aveiro – Viseu – Salamanca. Com o atalho da linha do Oeste (via Loures), a Terceira Travessia do Tejo, a reabertura da linha Beja – Ourique e a nova linha Castro Verde – Faro, o país ganhará uma consistência nas suas viagens ao longo do território que não tem. O mapa resultante traz também Sines para a rede de transporte de passageiros e oferece redundâncias há muito necessárias.

Esquema de serviços interurbanos a Sul de Lisboa

Nas áreas metropolitanas saúda-se o conceito de comboios passantes por Lisboa e Porto. Em Lisboa, com a terceira travessia do Tejo, cosendo a linha Barreiro – Setúbal com a linha Sintra – Lisboa, e na margem Norte cosendo a linha de Cascais com a da Azambuja, a que se somará ainda a linha Torres Vedras – Lisboa – Setúbal (via ponte 25 de Abril), criando uma rede competitiva também para deslocações subúrbio – subúrbio e colocando qualquer par origem-destino à distância máxima de um transbordo. Clever!

A Norte, a nova linha do Vale do Sousa e o serviço a Leixões e ao Aeroporto têm menor potencial para criar similar esquema de serviço mas, com excepção de origens e destino na actual linha do Vouga (a electrificar), também toda a rede estará à distância máxima de um transbordo.

Apesar da incompetente aposta no Metrobus em Coimbra, o PFN recoloca a hipótese de levar o comboio a Cantanhede e fazer de Coimbra o centro de uma estrela em direcção a Cantanhede, Pombal, Figueira da Foz e Santa Comba, para lá dos destinos do Metrobus.

No capítulo das mercadorias, é vincada a necessidade de continuar a acelerar a transição da rede para permitir comboios de pelo menos 750 metros, existindo até previsão de uma prova de conceito entre Sines e Badajoz para comboios de 1 500 metros, com auxílio de uma nova linha Grândola – Casa Branca, que não fora mencionada em nenhum outro local, mas que recupera planos antigos para esta ligação.

No fundo, tudo o que beneficiará os passageiros acabará por criar muito mais redundâncias e capacidade disponível para uma circulação fluída do tráfego de mercadorias. Portugal e os operadores locais têm provado saber operar transporte ferroviário de mercadorias com mestria, e o PFN consagra evolução da rede à altura da competência que é conhecida.

O que devemos contestar no PFN

É certo que não há planos perfeitos nem consensuais – aliás, o primeiro-ministro não resistiu a deixar no ar a hipótese do Governo nem sequer aprovar o PFN tal como está, sinceridade pouco comentada mas que preocupa.

Na fase de discussão pública que se inicia, mais do que aprimorar o que está certo no PFN, interessar-me-á perceber o que se pode melhorar. Na maioria dos casos, falamos de detalhes cuja fácil resolução não deve obstar à sua inclusão.

O virtuoso esquema de operação nos suburbanos de Lisboa (via PFN)

Começando pelo tópico de maior dimensão – o único que não considero um detalhe – a solução para o “quadrilátero do Minho” assenta num Metrobus ligando Póvoa de Varzim, Famalicão, Braga e Guimarães, “apto a transitar para ferrovia, no futuro”. Ora, numa rede bem analisada como servindo um território mais polinucleado do que a Área Metropolitana de Lisboa, a resolução da realidade radial da rede suburbana (tudo começa e acaba no Porto) só pode ser conseguida com alguns complementos que não passem pelo Porto. Essa ideia é aliás a formulação deste “Metrobus” ou, quando muito, de ferrovia ligeira.

Na região Norte, a não concretização de um arco ferroviário compromete a performance (via PFN)

Pelas distâncias envolvidas, pelas dinâmicas das comunidades e pelo tipo de serviços que pode chegar ao Minho, é totalmente desajustado pensar ligar Braga e Guimarães sem ser com um comboio igual – ferrovia pesada, interligada em rede, evitando transbordos e a necessidade de gerir um sistema diferente (com veículos diferentes e tudo o que vem com isso). Além do mais, com Felgueiras e Marco de Canaveses (ou Amarante) na proximidade, a estrutura populacional e de mobilidade da zona Norte propicia a construção de um arco ferroviário que permita uma operação de custos marginais muito baixos, dado que ao poder ser um sistema igual ao da restante rede, poucos meios adicionais requererá. A ligação à Póvoa de Varzim parece-me mal formulada, dado que ainda para mais diz aproveitar a antiga linha da Póvoa, cujo traçado pouco pertinente ditou o seu precoce encerramento. Esta ideia é a minha única objecção de grande calado e não faz sentido que o PFN possa, na sua versão final, introduzir algo que não seja uma rede de ferrovia pesada e integrada na rede. As populações serão prejudicadas.

Mobilidade ferroviária e com Metrobus em Coimbra (via PFN)

Indo aos pormenores que não impactam na apreciação positiva do PFN, noto a ausência de Monção, cidade minhota a que seria fácil fazer regressar o comboio (pela linha antiga), que operacionalmente faria todo o sentido (trata-se apenas de passar o terminus de Valença para uma estação depois, e que é uma cidade dinâmica na fronteira com Espanha.

Parece-me pouco compreensível a ausência de intervenções na linha da Beira Baixa, onde a falta do túnel da Gardunha ou da correcção da passagem por Abrantes continuarão a evitar uma posição competitiva menos má do comboio, que hoje em dia é muito menos competitivo do que as alternativas e que, sem evolução, chegará a 2050 a antecipar um encerramento. Correcções de traçado entre Fundão e Guarda deviam também ser previstas, até por serem relativamente fáceis de fazer. Em eixos de tipo Intercidades, como está consagrado para esta linha, a prática de velocidades médias inferiores a 100-110 km/h é algo aberrantemente estrutural.

Não existe também uma solução definida para Fátima, uma vila que acolhe oito milhões de turistas por ano, e que embora não esteja inserida em nenhum eixo ferroviário natural, pode e deve merecer esta atenção. De igual modo, a Oeste só conseguiremos estabilizar socialmente a dinâmica populacional se for previsto um ramal para Mafra e Ericeira, que complemente o novo atalho do Oeste – tenho as maiores dúvidas que possa entrar via Amadora; uma solução mais fácil e integradora seria entrar via Sacavém, como os estudos do Estado Novo já previam.

Não se percebe o que acontece a Portalegre, capital de distrito especificamente apontada como necessitando de mudanças no serviço ferroviário, dado que dista 13 km da sua estação. Presume-se de toda a apresentação que terá de existir alteração de traçado, mas os mapas não o consagram.

Ainda a Sul, é pouco estendível que a expansão ferroviária no Algarve se faça com um sistema distinto (ainda que, com tram-trains, possa ser compatível com continuação via linha actual), quando há toda a vantagem em unificar a operação. Servir Albufeira, Quarteira, Loulé ou até Vila do Bispo sem ser com a mesma ferrovia que já serve os restantes núcleos e o país, é um erro de palmatória – pensemos também no Longo Curso, que ao invés de servir directamente estes centros, os deixará à distância de transbordos. Dado o que está em causa para implantação de ferrovia ligeira ou de ferrovia, é uma mudança conceptual que ainda deverá ser feita na versão final do PFN até porque, se como é dito o sistema a instalar deve permitir futura transição para ferrovia pesada, nada o distinguirá nas principais obras de construção civil (aterros, túneis, estações e por aí fora).

Conclusão

Este Plano Ferroviário Nacional é um grande avanço como instrumento de planeamento territorial, impondo já critérios para o serviço ferroviário futuro (úteis para pensar também nas concessões de serviço público) e, por arrasto, para o desenvolvimento da rede.

É um plano muito similar ao que a Iniciativa Liberal apresentou a eleições em 2022, imagem que aqui trago para exemplificar que ao nível técnico e político pode ser possível aprovar um PFN com larguíssimo apoio em todo o espectro político nacional.

Com excepção da falha crítica no Quadrilátero do Minho, não vejo que seja complicado fazer evoluir alguns conceitos mais, como explico acima, e que elevariam ainda mais o patamar deste documento-chave para o nosso futuro. No Minho, creio que a ambição deve subir, estando consciente da diferença de investimento entre o proposto no documento e o proposto neste artigo – mas com um horizonte de 2050, não devemos ficar por atalhos.

O lado do desenvolvimento da rede a partir de critérios territoriais e demográficos, conduzindo a definições de padrões e patamares de serviço concretos é uma boa prática que não mais deve ser esquecida em Portugal – é de saudar, em especial, o coordenador do grupo de trabalho do PFN, Frederico Francisco, pela capacidade que teve em convencer as várias estruturas envolvidas a trabalhar de acordo com standards helvéticos neste ponto tão importante.

Falta agora que seja adicionado paralelamente ao PFN as metas orçamentais para desenvolver a ferrovia. Quando em 1997 Jose Maria Aznar aprovou similar documento em Espanha, com ele veio também um esforço orçamental regular de 0,5% do PIB, todos os anos, afecto a investimentos ferroviários. A essa luz, um prazo de quase 30 anos para concretizar o PFN agora apresentado até é pouco ambicioso – não há assim tanto que mude que precise de demorar 30 anos. Em Portugal, não se vislumbra nenhuma intenção de trancar uma alocação plurianual relevante para investimentos ferroviários, a que se soma uma falta de capacitação das entidades públicas (IP, sobretudo) para serem capazes de executar continuamente visões de longo prazo. Sem isto, o PFN pode não passar de um importante, mas insuficiente, exercício.

A equipa de Pedro Nuno Santos tem excedido no pensamento estratégico, mas os pilares tácticos e operacionais, que devem assegurar a implementação da estratégia, continuam num nível medíocre – é onde se vê pouca acção decisiva para mudar as coisas.

Venha agora a discussão pública, venha a legislação no Parlamento… e venha a pergunta sobre a alocação orçamental permanente.


João Cunha é mestre em Planeamento e Operação de Transportes pelo Instituto Superior Técnico (2015). Administra o site Portugal Ferroviário, onde este artigo foi publicado originalmente. O Portugal Ferroviária publica mensalmente a revista Trainspotter, de distribuição online gratuita. João assina como @trainmaniac no Twitter.