Opinião.
Portugal já tem um Ministério simultaneamente responsável pela habitação pública e pelo Aeroporto de Lisboa. Agora, só nos falta o plano.

O Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, passou por um período particularmente agitado a meio do ano. Em Junho, o Ministro anunciou uma nova solução para a expansão da capacidade aeroportuária em Lisboa (Montijo + Alcochete), e foi desautorizado em público pelo Primeiro-Ministro, em menos de 24 horas. Menos de um mês depois, o mesmo Pedro Nuno Santos – que tinha sido dado como demitido pelo jornal Público – iniciou um ciclo de inaugurações e continua ate hoje: mais equipamento ferroviário remodelado, uma aposta da CP iniciada no seu primeiro mandato; e diversos projectos de habitação pública pelo país fora. As novas habitações fazem parte de um programa que ambiciona construir mais de 35 mil fogos, utilizando fundos do PRR, apelidado pelo Ministro de “Serviço Nacional de Habitação”.
O dossier do Aeroporto (juntamente com a TAP) tem sido o calcanhar de Aquiles do Ministro. No entanto, esta pasta pode conter uma peça fundamental para a construção de um verdadeiro Serviço Nacional de Habitação, que combata o grave problema que Lisboa e Portugal têm ao nível da habitação.
A saga do novo Aeroporto de Lisboa leva mais de 50 anos (o Aeroporto Humberto Delgado tem 79 anos), em que já foram discutidas diversas alternativas como a Ota, Alverca, Alcochete e Montijo. Infelizmente, os destinos do actual Aeroporto não têm sido debatidos com o mesmo vigor. O Aeroporto Humberto Delgado ocupa uma extensa área no coração da Área Metropolitana, zona com bons acessos aos principais centros da capital, e inclui uma estação de metro. Estes terrenos seriam uma oportunidade única para a Área Metropolitana de Lisboa planear de raiz aquilo que poderia ser a coluna vertebral do Serviço Nacional de Habitação.
Do ponto de vista histórico, Portugal teve um importante conjunto de políticas públicas para habitação, como explica António Figueiredo do projecto Aliança Social Democrata. O Plano Especial de Realojamento (PER), focado na erradicação de construções precárias e barracas, foi o programa mais abrangente do período democrático. Contudo, o país nunca desenvolveu um projecto de habitação totalmente transformador, duradouro e interclassista, que tenha tornado a habitação pública um dos pilares do nosso Estado Social. Consequência disso, Portugal tem um dos parques de habitação social mínimo, um dos menores no Norte Global.
Existem vários exemplos de habitação pública de sucesso e em grande escala no mundo, desenvolvidos em diversas condições económicas e sociais. Viena avançou com um projecto radical de habitação pública depois da Primeira Guerra Mundial. Numa década, os governos sociais democratas municipais construíram 60 mil apartamentos municipais, uma experiência que ficou conhecida como Viena Vermelha, e que ainda hoje tem impactos positivos na cidade.
Após a Segunda Guerra Mundial, foi a vez do Governo Trabalhista Britânico (1945-1951) iniciar um programa de habitação pública em massa, que construiu cerca de 800 mil habitações sociais (‘Council Housing’) num mandato. Esta política tinha o objectivo de criar habitações dignas para toda a população. O cérebro deste projecto, Aneurin Bevan, resumiu esta política na frase “colocar o trabalhador, o médico e o padre a viver lado a lado”. Este projecto social foi abandonado, naquilo que foi a maior privatização da história do Reino Unido (mais de um milhão de habitações públicas vendidas), no governo Thatcher.
Do outro lado do mundo, Lee Kuan Yew, Primeiro Ministro de Singapura, inspirado no ideário Fabiano (uma sociedade socialista Britânica), começou a desenvolver um modelo económico, na década de 60, em que o Estado passou a ser o principal provedor de habitação. Através da substituição de habitações precárias por construção em alta densidade, a habitação pública passou a abranger praticamente toda a população da cidade-estado (80%). Foram construídos 54 mil apartamentos num período em que Singapura era mais pobre que Portugal (1960-65). Nas últimas décadas, a agência de habitação estatal avançou com a instalação de painéis solares em grande escala nos prédios que detém.
Para combater a crise habitacional em Portugal, são necessárias medidas para conter a forte procura internacional (via alojamento local, vistos gold, etc). Contudo, também é essencial criar um parque de habitação público, principalmente nos maiores centros urbanos, onde os preços são mais altos. O actual Aeroporto de Lisboa seria um local ideal para colocar em prática o tipo de ambição testada noutras partes do mundo. Assumindo os níveis de densidade populacional mais altos de Lisboa (Rua Morais Soares, na zona entre Arroios Penha de Franca), os 640 hectares do Aeroporto seriam capazes de alojar mais de 125 mil moradores. Se for replicada a densidade dos “Superblocks” de Barcelona, onde o uso do carro foi recentemente restrito, o Aeroporto poderia ser residência para 320 mil pessoas. Um plano destas dimensões seria realmente transformador para o país, podendo alojar mais pessoas que os 33 mil fogos projectados para todo o país.
O imenso potencial da área actual do Aeroporto para combater a crise de habitação não é compatível com soluções como Portela + Montijo, a longo prazo. Para além de combater a actual crise habitacional, este plano pode ter um contributo importante na redução de consumo energético e de emissões de carbono, através da construção de habitações energeticamente eficientes e enquadradas numa rede de transportes públicos. Uma expansão de grande escala do parque habitacional na Área Metropolitana de Lisboa, uma das zonas economicamente mais desenvolvidas do país, aumentaria a capacidade de absorver novos residentes (nacionais e estrangeiros) para contrariar o declínio demográfico vivido nas últimas décadas e promover uma economia menos dependente do turismo.
Portugal já tem um Ministério simultaneamente responsável pela habitação pública e pelo Aeroporto de Lisboa. Agora, só nos falta o plano.