Meio século após o movimento Stop de Kindermoord, assistimos a uma nova onda de activismo que está a correr o mundo, mas especialmente a Europa. São utilizadas estratégias antigas e novas, mas a mensagem é semelhante: pretende-se uma mudança sistémica e não campanhas de sensibilização para a segurança rodoviária.

O desenvolvimento urbano e as normas sociais relativas à infância conduziram as cidades europeias a uma situação em que as ruas deixaram de ser locais aptos para crianças e jovens. Gill Valentine explicou que esta mudança foi alimentada pela nossa divisão das gerações mais novas em duas categorias – “anjos” e “demónios”.
Descreveu como, por um lado, as crianças são consideradas demasiado pequenas, vulneráveis e inocentes para deambular e brincar nos espaços urbanos devido ao trânsito, ao “perigo dos estranhos” e a outros problemas. Por outro lado, os adolescentes são considerados uma ameaça pública e não devem ser autorizados a andar na rua com as suas bicicletas, skates e, presumivelmente, com más intenções.
Estudos posteriores explicaram como essas representações levaram à exclusão das crianças dos espaços públicos na complexa rede de governação urbana, de vida pública e de parentalidade. O movimento e as brincadeiras autónomas das crianças nas cidades têm vindo a diminuir de forma constante nas últimas décadas. Por sua vez, as crianças e os jovens estão cada vez mais confinados em casa, nos carros ou em espaços institucionais para educação e brincadeiras controladas por adultos.
Muitos especialistas e grupos de interesse manifestaram a sua preocupação com este facto e explicaram por que razão fechar as ruas às crianças é uma má política. Os níveis de actividade física das crianças são alarmantemente baixos e limitar o seu sentido de segurança e autonomia também prejudica o seu bem-estar mental e social. Estas tendências estão a pôr em perigo a saúde de toda uma geração e a comprometer a sua capacidade de sustentar sociedades e economias com elevados rácios de dependência.
Ao mesmo tempo, como especialistas frequentemente salientam, as crianças não são meros “investimentos no futuro” ou “adultos de amanhã”. São também pessoas com direitos actuais de cidadania, participação e autonomia no seu ambiente de vida.
Antigos e novos movimentos para uma cidade amiga das crianças
No entanto, há muitos exemplos de como as pessoas têm resistido à exclusão das crianças das ruas na história moderna. Um dos mais notáveis foi o movimento Stop de Kindermoord (“Parem o Assassínio de Crianças”) nos Países Baixos, no início da década de 1970. Este movimento tinha como objectivo acabar com as mortes de crianças em acidentes rodoviários, que nessa altura tinham atingido o nível mais elevado da Europa.

O movimento organizou manifestações, pressionou os decisores políticos a tomarem medidas legais e de planeamento e criou espaços seguros através de acção directa e de urbanismo táctico. Com sucesso: a segurança das crianças passou a estar na ordem do dia e os activistas continuaram a desempenhar um papel importante na política de trânsito durante mais de uma década. No entanto, com o tempo, acabaram por ser marginalizados e o perigo do trânsito foi sendo restabelecido como uma parte “natural” da infância urbana.
Meio século após o movimento Stop de Kindermoord, assistimos a uma nova onda de activismo que está a correr o mundo, mas especialmente a Europa. São utilizadas estratégias antigas e novas, mas a mensagem é semelhante: pretende-se uma mudança sistémica e não campanhas de sensibilização para a segurança rodoviária.
Promover coletes de segurança e capacetes, ou sensibilizar das crianças para a presença de automóveis não são formas de acabar com a violência no trânsito, mas sim de a manter, uma vez que transferem a responsabilidade para as crianças e seus pais individualmente. Em vez disso, os activistas mobilizam comunidades inteiras e utilizam manifestações e experiências locais para dar às pessoas experiências concretas de como as cidades poderiam ser diferentes.
Agir hoje em dia
A Kidical Mass é um protesto urbano em rápido crescimento de pais, educadores e crianças, que mobiliza manifestações coloridas de bicicleta em pequenas e grandes cidades. Em 2022, reuniu mais de 90 000 crianças, jovens e famílias ao longo de dois fins-de-semana de campanha em mais de 400 locais em toda a Europa, incluindo Portugal.
Os organizadores atestam que a Kidical Mass é uma experiência de um dia que permite às pessoas verem os espaços da cidade sob uma luz diferente e transformarem essas experiências em exigências políticas.
O efeito político do movimento tornou-se recentemente muito concreto na Alemanha, onde a Conferência dos Ministros dos Transportes apoiou uma reforma da lei nacional do tráfego rodoviário com base numa petição entregue pelos activistas da Kidical Mass em 2022.
Os BiciBús e Comboios de Bicicletas são outros movimentos em crescimento. O objectivo é simples: proporcionar às crianças um grupo organizado para irem de bicicleta para a escola, com um percurso predefinido e a uma determinada hora. Normalmente funcionam uma vez por semana, com o objectivo de desenvolver o hábito de andar de bicicleta entre famílias e comunidades inteiras. Pedalar em grupo não é apenas uma forma de chegar em segurança à escola, mas também uma forma divertida e uma maneira de demonstrar que as cidades são amigas das crianças.

A ideia não é nova, mas nos últimos dois anos o número de autocarros e comboios para crianças pedalarem tem crescido rapidamente, especialmente na Europa, graças às redes sociais.
As ruas escolares e as ruas para brincar são também uma implicação importante da nova actividade cívica. Grupos de defesa locais (ver, por exemplo, Playing Out no Reino Unido) estão a mobilizar escolas e comunidades locais para criar estes espaços urbanos abertos, inclusivos e seguros. Muitas vezes, a ideia é abrir certos troços às crianças, limitando o tráfego automóvel. Em alguns locais, a colaboração com os decisores e planeadores conduziu a mudanças concretas.
Os activistas afirmam que, a longo prazo, as ruas escolares e as ruas de recreio devem ser ligadas entre si para criar redes de mobilidade abrangentes, seguras e inclusivas.
Como avançar?
Em muitos aspectos, os actuais movimentos cívicos a favor de cidades amigas das crianças estão a dar continuidade ao trabalho dos seus antecessores. Ao reivindicarem espaços urbanos, introduzirem experiências lideradas por cidadãos e mobilizarem grandes quantidades de pessoas, esses movimentos criam oportunidades para ver e pensar em futuros alternativos. O que pretendem e o que só agora começa a surgir é o impacto directo em processos, iniciativas e enquadramentos mais institucionais.

Ainda assim, num período de tempo relativamente curto, deixaram uma marca. Embora as infra-estruturas físicas possam levar tempo a mudar, a forma como as comunidades as utilizam pode mudar muito mais rapidamente. As preocupações crescentes com o bem-estar das crianças, juntamente com a necessidade de uma transição urgente para a sustentabilidade dos transportes urbanos, proporcionam aos movimentos uma nova vantagem.
Quer venhamos ou não a assistir a uma grande mudança de paradigma, parece que, em alguns aspectos, os activistas já ganharam. Nos seus autocarros e comboios de bicicleta locais, nas manifestações e nas ruas pop-up, não só estão a exigir um amanhã melhor, como já o estão a viver.

Artigo da autoria de Jonne Silonsaari, investigador doutorada em Planeamento Urbano pela Universidade de Amesterdão; Gemma Simón i Mas, estudante de doutoramento em Planeamento Urbano da Universidade Autónoma de Barcelona; e Jordi Honey-Rosés, professor de Futuros da Mobilidade Urbana na Universidade de Amsterdão.
Este artigo foi originalmente publicado na plataforma The Conversation e republicado no Lisboa Para Pessoas devidamente traduzido, sem nenhuma alteração substancial ao conteúdo original, que pode ser encontrado aqui. O texto está licenciado ao abrigo da norma CC BY-ND 4.0.