Como pode a História ajudar-nos a romper com a perspectiva de que a bicicleta não teve grande importância no quotidiano lisboeta do século XX? Este texto é um convite para refletirmos sobre algumas certezas e incertezas em relação à bicicleta.
Este texto é um convite que vos faço para refletirmos sobre algumas certezas e incertezas em relação à bicicleta. Qual o motivo de no imaginário social comum se ter a perspectiva de que a bicicleta foi substituída pelos carros quando estes se popularizaram? Ou até mesmo de que nunca constituiu parte significativa da mobilidade, do lazer e do desporto das pessoas no século anterior? E como pode a História ajudar-nos a romper com a perspectiva de que a bicicleta não teve grande importância no quotidiano lisboeta do século XX, sendo apenas uma “moda” dos tempos presente, ligada a questões das mobilidades alternativas, ambientalistas e a preocupações climáticas? Como forma de compreender essas questões, apresentar-vos-ei duas linhas argumentativas: a primeira como uma revisão, a partir do livro A U-Turn to the Future. Sustainable Urban Mobility Since 1850, de alguns conceitos úteis para pensarmos o passado ciclável, assim como entendermos a utilidade do passado para a compreensão do presente; num segundo momento, faremos uma análise do estado das fontes históricas sobre o passado de Lisboa, quais os seus desafios e quais alguns de seus potenciais analíticos.
O livro U-Turn to the Future1 faz considerações sobre a importância do pensamento de longa duração, que é objecto da História enquanto campo científico, para refletirmos sobre questões do presente. E isso não é sugerir que façamos um uso das questões e soluções do passado para os nossos dias, mas que entendamos que a forma como as coisas são no presente é fruto de processos, disputas, construções e conflitos de diversos actores sociais. O futuro não era algo pré-definido e os resultados que hoje vemos escondem, por diversas vezes, alternativas que foram pensadas, assim como consequências indesejadas da narrativa que se tornou dominante na época, nomeadamente o discurso da mobilidade privada e a forma como a cidade deveria comportar-se e ser desenhada para atender a tal expectativa, que hoje lidamos enquanto desafio a ser resolvido.
Um primeiro ponto a pensarmos sobre esses usos do passado é identificar essas narrativas (“techno tales”), que têm grande força de persuasão nos discursos técnico e político, para defendermos a narrativa linear e fatalista de que as coisas são como estão, pois não havia alternativas no passado. Em específico, para o caso que nos interessa neste momento discutir, as narrativas de que o automóvel dominaria, inevitavelmente, em relação às outras formas de mobilidade. Isso também pode ser pensado para outras linhas de raciocínio como o de que um objecto mais complexo tecnologicamente necessariamente faz com que o de mais “low tech” seja “superado”, quando sabemos que as coisas coexistem. O carro não veio a abolir o uso da bicicleta, assim como esta não veio a dar desuso às carroças. Dessa forma, é essencial perceber que o automóvel não era a única opção desejável ou homogeneamente aceite. Percebe-se, pois, que essa construção feita a partir do período entre guerras foi uma narrativa que foi “vendida” e que, até hoje, é extremamente difícil de desconstruir.
Um segundo uso do passado que é apontado pelo livro U-Turn to the Future é encontrar histórias no passado, as vozes subalternas que não conhecemos e que representam os modos de mobilidade que foram subalternizados, que foram minoritários, cuja exclusão gerou também um apagamento na história da mobilidade urbana. Na investigação desenvolvida no projecto Hi-BicLab, estamos progressivamente a encontrar registos de existência de mobilidade ciclável em Lisboa nos arquivos. Um exemplo desta invisibilização é que nos registos de contagens de tráfego da Junta Autónoma de Estradas do início do século, nomeadamente de 1937 a 1938, a forma de contar as bicicletas era conjuntamente com os carrinhos de mão; só a partir da contagem de 1949 a 1950 é que temos a bicicleta contada de forma individualizada; nas contagens a partir de 1955, com o advento dos contadores automáticos, começa a haver uma diferenciação pelos sobre os tipos distintos de velocípedes. Essas contagens, ainda assim, são apenas para falar dos acessos ao perímetro do concelho de Lisboa e não de dados internos de circulação do concelho. Esse exemplo serve para reforçar que as próprias contagens, as formas de pensar o planeamento urbano e o desenvolvimento dos conceitos de tráfego estiveram, durante muitos anos, sem considerar de forma abrangente e significativa os demais modos de mobilidade para além da mobilidade automóvel. A invisibilização não é apenas estatística, mas também cultural, pois a imagem que se tem aceite socialmente, como anunciado no início do texto, é de que a história mobilidade urbana em bicicleta é recente, que teve sobretudo lugar a partir dos anos 2000 com a implementação das primeiras ciclovias em Lisboa, o que cai por terra ao contrastarmos com as fontes do passado que mostram essa presença de forma significativa.
E, por fim, a terceira proposta sobre o passado utilizável trata da identificação de factores e persistências incrustados que promoveram ou inibiram o uso da bicicleta, que criaram as chamadas “path dependencies” – em uma tradução livre seria “dependências de trajetória”; ou seja, as formas de tomar decisão no passado condicionadas e apresentadas às pessoas de forma dependente de decisões anteriores ou experiências feitas no passado. Isso gera um tipo de imobilismo na perspectiva de nos conformarmos com a forma como as coisas estão, por já serem parte de um acumulo de decisões, o que pode gerar a aparência de que não temos alternativas.
O passado de Lisboa a partir dos registos históricos
A fotografia acima, de Arnaldo Madureira, é um dos exemplos do que temos encontrado sobre os usos da bicicleta durante o século XX. O uso profissional foi um dos grandes pontos fortes da bicicleta. Temos diversos registos de vendedores e vendedoras ambulantes, de categorias profissionais como os boletineiros, as forças armadas e policiais, assim como os usos desportistas da bicicleta. Uma fotografia similar a esta foi refotografada pela cineasta Charlotte Seegers, com auxílio da equipa do Hi-BicLab e integrou, junto com nove outras cenas do passado ciclável, na nossa exposição “A cidade para quem? Quotidianos cicláveis das ruas lisboetas do século XX” inaugurada no CIUL em Janeiro passado (neste momento, e até 16 de Junho, encontra-se na biblioteca da Faculdade de Ciências da Universidade NOVA de Lisboa).
Essa exposição teve como intuito instigar a reflexão através de recursos textuais e imagéticos, sobre como o passado de Lisboa é marcado pela multimodalidade e por usos do espaço que não eram exclusivamente para os carros. Esse caráter mais visual das fontes apresentadas ajuda a provocar nossa imaginação e pensar que já tivemos outra cidade, os futuros não estavam pré-determinados e foram fruto de disputas por diversos agentes sociais. Sendo assim, ao conhecermos esses passados, podemos pensar em quais argumentos e projetos de cidade gostaríamos de pensar para que esta seja cada vez mais inclusiva.
As fotografias ajudam a enriquecer o imaginário, mas não são apenas essas fontes que estamos a encontrar. No Arquivo Municipal de Lisboa, estamos a fazer diversas descobertas de registos ainda não trabalhados, que vão desde regulamentos, planos de urbanização, até registos individuais do perfil societal (idade, nome, endereço, profissão) de mais de 20 mil ciclistas durante o início do século XX. Ou seja, ao logo de todo o século XX, em contraponto à lógica do mobilidade urbana em bicicleta em Lisboa enquanto “modismo” do século XXI, é possível já prospectar não apenas questões quantitativas, mas também qualitativas de quem eram essas pessoas, onde viviam, seus trabalhos e, a partir do cruzamento de fontes, pretendemos responder a diversas questões sobre os usos, perfis e da importância da bicicleta para essas pessoas.
Sobre o projecto
O Hi-BicLab é um projecto exploratório financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (EXPL/FER-HFC/0847/2021), que visa mobilizar a história para envolver diferentes públicos na identificação de factores-chave sociais, culturais e técnicos que moldaram a mobilidade (e imobilidade) de pessoas, alargando o nosso repertório dos passados da cidade, trabalhando numa abordagem interdisciplinar e envolvendo parceiros na co-construção de conhecimento sobre mobilidade urbana através de um pensamento na longa duração. Portanto, ao compreendermos que o passado não é um monólito, mas um espaço no qual, a partir da investigação, conseguimos apreender mais camadas do que aconteceu e questionar nossas percepções sobre o passado, o presente e pensar nas nossas alternativas para o futuro.
1 Frank Schipper, Martin Emanuel, & Ruth Oldenziel (2020). Historicizing Sustainable Urban Mobility. In M. Emanuel, F. Schipper & R. Oldenziel (Eds.), A U-Turn to the Future. Sustainable Urban Mobility since 1850 (pp. 1-26). New York: Berghahn Books