Opinião.
Infelizmente, o carinho que podemos sentir pela CP não paga contas, nem move passageiros. Está na altura de lançarmos um debate sério sobre o que será andar de comboio em Portugal em 2030.
Gostaria de fazer um aviso prévio: é sem dúvida um bom sinal o facto de nos últimos anos o debate público ter dedicado mais atenção ao setor ferroviário e ao comboio como um modo de transporte estruturante da nossa mobilidade. No entanto, penso que chegou a altura de se falar com seriedade do (muito) que temos empurrado com a barriga.
No início de Abril, ficámos a conhecer o programa de Governo que deverá orientar as políticas do setor dos transportes para os próximos anos, e contemplado nesse mesmo documento, há uma frase que nos deve despertar particular interesse:
“Criar um novo modelo de exploração no transporte ferroviário de passageiros, descentralizando a gestão dos serviços de transporte de natureza eminentemente local, bem como reduzindo substancialmente as barreiras a entrada de novos concorrentes.”
– programa do 24º Governo Constitucional
Este aparente pequeno detalhe no programa é, na verdade, fruto de um longo debate que tem existido sobre a forma como o país tem vindo a gerir o seu serviço ferroviário de passageiros. Vamos por partes.
A falta de concorrência
Para a esmagadora maioria dos portugueses, andar de comboio é sinónimo de CP – Comboios de Portugal. A operadora pública que nas últimas décadas tem sido hegemónica na prestação do serviço chega a 2024 e às mãos do novo Governo numa posição francamente delicada.
Depois de uma luta histórica pela mais elementar justiça, a CP conseguiu finalmente um contrato de serviço público e o saneamento da brutal dívida que carregava, depois de anos a fio a operar sem ser ressarcida pelo seu trabalho. Estas pequenas grandes vitórias, apesar de notáveis, não podem esconder outras duras realidades que se fazem ouvir. Na verdade, apesar desse marco histórico, que permitiu à CP atingir em 2022 e 2023 os primeiros resultados lucrativos, a empresa encontra-se num ponto de desgaste e descoordenação que deveriam preocupar qualquer cidadão que ambicione futuro para a ferrovia em Portugal.
Na verdade, o contrato de serviço público de que a CP dispõe atualmente (elaborado pelo anterior Governo do PS), é um pau de dois bicos. Por um lado, ajudou a CP a sanear a sua situação financeira podendo operar de forma minimamente sustentável; por outro, entregou praticamente de bandeja uma posição monopolista sobre o serviço à empresa.
Na altura, quase ninguém levantou grandes questões em relação a isto – também devido à tal habituação do grande público a que a CP detivesse este quase monopólio do serviço. Todavia, esta “entrega de bandeja” dificilmente se demonstrou positiva para os contribuintes, para os utentes e, mesmo no limite, para a própria CP.
Segundo as orientações da União Europeia (que nada mais refletem do que o mais elementar bom senso), o serviço público de transporte (neste caso, o ferroviário) deve ser sempre sujeito a contratação via concurso público. Ou seja, o Estado, como adjudicante, deve procurar no mercado um operador, público ou privado, que preste um conjunto pré-definido e pensado de serviços, pelos quais recompensa financeiramente o operador, penalizando-o em caso de incumprimento do contrato.
Ora, o Estado português não só não fez isto quando entregou o serviço quase monopolista à CP, como nem se digna a fazê-lo para a única excepção a esse monopólio: o serviço suburbano na Ponte 25 de Abril, entre Lisboa e Setúbal, que está entregue à Fertagus, empresa do grupo Barraqueiro que tem visto o seu contrato sucessivamente renovado vezes sem conta sem concurso público.
O novo Governo tem, por isso, toda a razão ao dizer que de facto não tem havido concorrência nem qualquer espécie de incentivo à entrada de novos atores no setor ferroviário de passageiros. Ao contrário do que um conjunto de teimosos vão balbuciando sobre bitolas, o verdadeiro entrave à entrada de novos players no mercado nacional tem sido a visão tacanha e protecionista que o Estado português tem aplicado ao nunca rever seriamente o serviço ferroviário que tem contratado.
Escassez de recursos
A CP tem, assim, operado o seu contrato debaixo da aparente proteção do Estado, mas que, de certo ponto de vista, mais parece uma espécie de cativeiro. Na verdade, a CP vive há largos anos debaixo de uma óbvia escassez de recursos – tanto financeiros como humanos ou mesmo físicos. Os quadros da empresa estão envelhecidos. A manutenção possível vai-se fazendo, com as peças que chegam a conta gotas, dentro de oficinas onde chove no interior. A satisfação dos passageiros é refletida pelos espetaculares resultados operacionais da Rede Expressos e da Flixbus nos últimos anos, que perante uma CP de oferta estagnada e pouco fiável, se vão deliciando com a procura crescente.
No panorama dos suburbanos, as constantes supressões por avarias, intercaladas com as periódicas, mas sempre presentes, greves dos maquinistas e revisores, desgatam a confiança no serviço, ao ponto da empresa de tornar alvo de chacota. Os números recorde de carros a entrarem diariamente em Lisboa e Porto corroborarão o que estou a dizer (já agora, quanto de vós, caros leitores, têm consciência de que alguns horários cortados na era da Troika nunca foram sequer repostos?).
O material circulante está entre o velho e o muito velho. E devido à vontade do Estado de poupar uns trocos, os novos comboios só chegarão em números significativos no final da década. Note-se que mesmo o novo material não permitirá aumentos significativos de oferta visto que se destina maioritariamente à substituição urgente das frotas mais desgastadas.
Mesmo o alarido e a avalanche de propaganda em torno da recuperação de material circulante mais antigo se têm demonstrado uma mão cheia de nada. As carruagens Arco saem a conta gotas de Guifões, estando o programa largamente atrasado. Isto para não falar das carruagens dos Intercidades, que estão ultrapassadas há 15 anos. e o primeiro protótipo de uma renovação anda há uns dois anos a ser chutado para os cantos das oficinas. Safam-se as recuperações das carruagens Schindler (que, na verdade, são material histórico, mas a CP gosta de vender como uma serviço regional mais retro) e das locomotivas 2600, que estão basicamente a tapar buracos em serviços InterRegionais; e que ocasionalmente vão salvando os Intercidades quando uma locomotiva 5600 dá o berro.
Três pontos importantes
A CP pode ir de sorriso na cara, mas esse sorriso vai preso por arames. E esta situação não só é um mote para se repensar a CP, mas sim um mote para repensarmos seriamente que tipo de serviço público ferroviário queremos em Portugal.
Em primeiro lugar – e esta opinião nada de político tem –, o monopólio deveria acabar. O Estado português não pode simplesmente continuar a entregar de mão beijada um serviço deste calibre, sem qualquer espécie de fiscalização séria do contrato, a uma empresa fatigada e antiquada, pejada de problemas interno. Reestruturar a CP de alto a baixo pode ser uma opção, mas não exclui que o serviço tem de ser contratado em modelo de concessão, através de um concurso justo e transparente no qual possam participar outros atores interessados.
Em segundo lugar, a excessiva concentração do serviço num só contrato é também um fator de problemas. Não faz sentido misturar num só contrato serviços tão distintos como os suburbanos, os regionais e os longo curso (Intercidades e Alfa Pendular). Em zonas de alta concentração de serviço como as áreas metropolitanas, deveriam ser as respetivas autoridades metropolitanas de transporte a definir e coordenar o serviço ferroviário (o fim das unidades regionais de suburbanos anunciada há uns anos como uma panaceia para unir a empresa, poucos ou nenhuns resultados demonstrou a não ser uns autocolantes diferentes no cabeçote do comboio).
Em terceiro lugar, a situação crítica do material circulante, além de um investimento massivo por parte do estado no seu esforço de renovação, requer também repensar o modelo de uso. Como nenhum concorrente a uma concessão vai comprar comboios para os operar durante pouco tempo, tem-se banalizado por toda a Europa um modelo de concessão em que o Estado ou autoridade regional é dona do material circulante, alugando-o ao operador vencedor por um preço fixado à priori. Aliás, nós já temos este modelo por cá, visto que os comboios da Fertagus pertencem indiretamente ao Estado. (A questão da manutenção ser prestada por uma entidade centralizada do Estado ou pelo operador já requer alguma análise caso-a-caso, visto que depende da escala das frotas detidas.)
O que quero dizer com tudo isto? Que a nossa visão clássica de despejar todo o fardo do serviço ferroviário na CP está completamente obsoleta e as supostas reformas feitas nos últimos anos parecem ter apenas servido para oficializar por escrito alguns dos seus problemas e consolidar uma espécie de “braço armado dos comboios”, que tristemente vai servindo como joguete de propaganda à frente das câmaras.
Com exceção do enorme know-how acumulado na área da manutenção (antigamente prestada pela EMEF e depois integrada na CP), fica difícil perceber o que há de utilizável na estrutura da CP. O material circulante maioritariamente obsoleto? As suas pequenas instalações antiquadas? Uma gestão operacional que banaliza atrasos e não agiliza resolução de problemas?
Infelizmente, o carinho que podemos sentir pela CP não paga contas, nem move passageiros. Está na altura de lançarmos um debate sério sobre o que será andar de comboio em Portugal em 2030. Não é uma reforma fácil de se fazer, até porque o debate político está entregue à mais elementar infantilidade e clubite, com a mais tímida das reformas pronta a ser apelidada como um ataque à coisa pública, justamente pelas pessoas que a delapidaram até chegar a este ponto de ruína.
Algumas ideias
Mas, enfim, aqui deixo algumas ideias meramente cozinhadas pela minha cabeça:
- Talvez esteja na altura de termos um serviço coordenado de forma centralizada, mas divido em unidades de execução mais fáceis de gerir. Por um lado, Regionais e InterRegionais divididos em unidades Norte, Centro e Sul. Por outro, suburbanos regidos de forma descentralizada em Lisboa, Porto e Coimbra. Por último, Intercidades revistos e possivelmente subsidiando apenas aqueles que operam em regiões mais remotas (sim, porque razão o Estado há de pagar a alguém para operar serviços completamente lucrativos entre Lisboa e Porto?).
- Talvez esteja na altura de pensarmos na CP não como este estranho agregado de partes que tentam formar uma empresa, mas como uma marca de serviço ferroviário, universal e com uma linguagem, comunicação e bilhética uniformes por todo o território, que possa integrar diferentes operadores regionais;
- Talvez se possa repensar a antiga EMEF como esta força bruta que, através de vários pólos descentralizados consegue assegurar a manutenção das frotas ferroviárias espalhadas pelo país. E no limite como fábrica de conhecimento, aliada ao prometido novo centro de competências ferroviário, mas sem projectos estranhos, como o do “Comboio Português”, cuja utilidade e pertinência no seio da CP ainda estão por explicar.
Se deixarmos as nossas trincheiras de fundamentalismos de lado, quiçá possamos sonhar e pensar um país onde andar de comboio seja uma primeira escolha e não uma estranha relíquia que vamos guardando para os que não podem pagar um carro.
Quiçá se possa pensar num país em que dá prazer e orgulho andar de comboio, tenha ou não esse comboio um espetacular logótipo a dizer “CP” na lateral.