Convidámos algumas das vozes colectivas que mais têm lutado pelo Direito à Habitação a olhar para o programa do novo Governo, e a exprimirem as suas preocupações.
As eleições legislativas de 10 de Março imprimiram uma mudança no rumo político do país e inevitavelmente também nas questões da Habitação. Esta pasta regressou ao Ministério das Infraestruturas, que passou a ser designado de Ministério das Infraestruturas e da Habitação, depois de ter tido na legislatura anterior um Ministério próprio. E há dois novos rostos importantes: por um lado, o novo Ministro é o social-democrata Miguel Pinto Luz, ex-autarca de Cascais, que sucede à socialista Marina Gonçalves; e, por outro, Patrícia Machado Santos, arquitecta, ex-Directora Municipal da Habitação de Oeiras, assumiu o cargo de Secretária de Estado da Habitação.
O LPP pediu a alguns movimentos e associações que nos últimos meses mais têm lutado pelo Direito à Habitação para tomarem o pulso ao programa do novo Governo. Responderam a este desafio o Movimento Referendo pela Habitação (MRH), o PORTA a PORTA – Pelo Direito à Habitação, a Habirizoma (da Cooperativa Rizoma), o Chão das Lutas e o Vida Justa. Se quiseres consultar o programa do novo Governo, fazê-lo aqui ou descarregar aqui a parte referente à Habitação.
Os textos que se seguem são da autoria de cada colectivo.
Movimento Referendo pela Habitação (MRH)
No Movimento Referendo pela Habitação (MRH) assistimos com muita preocupação às medidas apresentadas pelo XXIV Governo Constitucional para responder à crise habitacional. O que vislumbramos é não só um desfazer do que o pacote Mais Habitação implementou, o qual já havíamos considerado insuficiente, mas também um retrocesso grave.
Este governo prepara-se para ignorar os estudos que comprovam os efeitos nocivos que a atividade descontrolada do Alojamento Local (AL) teve e tem tido, sobretudo nas grandes cidades, nos preços das rendas, na gentrificação e descaracterização dos bairros; ou os estudos que, não há muitos dias, demonstraram o efeito dos vistos gold no aumento dos preços da habitação; ou o facto de o regime dos Residentes Não Habituais ou os vistos para Nómadas Digitais, muitas vezes a morarem em ALs, criarem situações de competição desequilibrada com os salários de quem trabalha em Portugal. A desculpa é a necessidade de confiança no mercado e de não prejudicar as pessoas que investiram – uma narrativa ideológica, que ignora todos os outros que também investiram nas suas lojas e negócios que são obrigado a encerrar, não por falta de clientes, mas porque as rendas aumentam; que ignora o facto de tantos vistos gold, grupos hoteleiros e fundos de investimento continuarem a explorar ALs (não era este um negócios de “pequenos proprietários?”); que ignora todas as pessoas que foram e continuam a ser expulsas das suas casas para estas passarem a albergar turistas; e que ignora também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2022 que diz claramente que a atividade do AL não pode ser feita em imóveis destinados à habitação.
No MRH, recusamos esta visão mercantilista da habitação, e recusamos uma sociedade onde nos preocupamos mais com onde vão dormir os turistas, do que onde vão morar as pessoas que cá vivem e trabalham – sejam elas portuguesas ou não. Com este cenário, nunca foi tão importante que os cidadãos se organizem em iniciativas de democracia directa ––como a do MRH. Queremos implementar na cidade de Lisboa o primeiro referendo local por iniciativa popular da história da nossa democracia, algo que se reveste de particular simbolismo no ano em que comemoramos os 50 anos da Revolução de Abril.
PORTA a PORTA – Pelo Direito à Habitação
O programa de Governo, apresentado por Luís Montenegro à frente de uma ampla maioria de direita composta por PSD, CDS, IL, Chega e vários sectores do PS, é a concretização dos interesses da banca, dos fundos imobiliários, dos grandes proprietários e senhorios e lesa brutalmente os interesses daqueles que vivem e trabalham em Portugal e precisam de Casa Para Viver.
Este programa de Governo assenta numa narrativa bafienta, carregada de prepotência e arrogância, que destila ódio, confronto, raiva e sobretudo desprezo por quem precisa de Casa Para Viver. O que o Governo da Direita propõe é a intensificação das políticas que nos trouxeram até aqui, e que não nos vão tirar desta situação e a intensificação do mesmo “remédio” vai matar o paciente.
Habirizoma (Cooperativa Rizoma)
A Habirizoma, a secção de habitação e construção da cooperativa Rizoma, manifesta-se com uma nota de pesar perante um programa praticamente omisso em relação às cooperativas de habitação e totalmente omisso relativamente às cooperativas de habitação em propriedade coletiva.
Analisando o único ponto no programa cujo título refere “cooperativas”, designadamente o 9.2.1. Aumento significativo das Ofertas Privada, Pública e Cooperativa, onde se espera compreender as medidas para este modelo de habitação, percebemos que o Governo resolve o problema da habitação da seguinte forma: “seja ela privada, […] diversas medidas de incentivo, designadamente fiscais, seja ela pública […] mediante a mobilização do stock habitacional existente ou nova construção, seja ela cooperativa […]”, e nem uma palavra mais a complementar, demonstrativo dos objetivos omissos e de uma postura negligente do governo em relação às cooperativas. Mais adiante, de forma desorientada, introduz uma lista de conceitos aparentemente inovadores com que pretende estimular e facilitar, mas absolutamente desagregados, onde incluem as cooperativas: “regulatory sand box (build to rent, mixed housing com bónus de densidade urbanística para habitação a custos moderados, co-living, habitação modular, cooperativas de habitação, utilização flexível dual das residências de estudantes”. Este Governo, com este programa, escusa-se a reconhecer a importância social das cooperativas de habitação, especialmente das cooperativas de habitação em propriedade coletiva, na sua capacidade solidária de construir cidades mais interclassistas e intergeracionais. Este não era o programa que queríamos, embora fosse um programa expectável.
Queremos ser claros. Restabelecer um modelo cooperativo de produção de habitação em propriedade coletiva deve ser uma prioridade nas políticas públicas nacionais e municipais. Sabemos que a propriedade coletiva é a melhor garantia contra a especulação imobiliária, porque permite criar um stock de habitação acessível que não é posteriormente encaminhado para o mercado especulativo, mantendo a gestão e manutenção do parque habitacional na esfera cooperativa. É para isso obrigatório parar a venda do património público a grandes fundos de investimento e colocá-la em direito de superfície à população. Queremos o Estado a apoiar as iniciativas locais e a reconhecer o efeito conciliador dos processos participativos na construção de habitação, queremos que habitar seja sinónimo de construir cidades mais humanas, queremos que as pessoas tenham direito ao lugar onde tecem as suas redes sociais e constroem a sua comunidade. Queremos que a banca pública, cooperativa e mutualista apoie e colabore com as cooperativas. Propomos a criação de um fundo nacional para facilitar o acesso ao crédito para as cooperativas em propriedade coletiva. Ainda, a criação de uma bolsa de terrenos cedidos em direito de superfície. Por último, a criação de uma linha de apoio para apoiar os projetos arquitetónicos, sociais e financeiros das cooperativas.
Para terminar esta nota de pesar, deixamos, em tom de epitáfio a este programa, o seguinte: a omissão que se fazia esperta, despertou a torrente ávida de aparições.
Chão das Lutas
O programa de Governo traz uma série de ideias erradas para resolver a crise da habitação. Partindo de uma ideia absurda de que Portugal tem excesso de regulação do mercado de arrendamento, o Governo avança para mais financiamento do setor privado (seja por via de deduções fiscais, seja por garantias públicas à compra de casa, seja ainda por subsídio das rendas especulativas) ao mesmo tempo que propõe Parcerias Público-Privadas (PPP) em matéria de habitação, algo já tentado em Lisboa e que falhou redondamente.
No que se refere aos Alojamentos Locais (ALs), observamos uma maior flexibilização nas medidas do pacote Mais Habitação, tais como a eliminação da contribuição extraordinária sobre o AL e a caducidade das licenças anteriores ao programa. Revertendo os poucos avanços que tivemos nesse setor. Mas mais do que isso, é verdadeiramente surpreendente que este novo plano de Governo proponha que os despejos, já de si totalmente liberalizados pela Lei dos Despejos, passem para os Julgados de Paz, numa redução ainda maior de qualquer garantia dos inquilinos.
Este programa mostra que não terá nenhuma resposta para a crise da habitação e contará com a nossa oposição frontal. Este programa de Governo mostra que a habitação não é uma prioridade, algo que se comprova pelas recentes declarações de Pinto Luz quando naturaliza a turistificação das cidades. Por tudo isto, contará com a nossa oposição.
Vida Justa
A política para habitação do Governo da AD é uma política de classe que tem como principal objectivo garantir os negócios imobiliários. Os responsáveis da AD já garantiram que pretendem acabar com os entraves ao negócio do Alojamento Local e impedirem o fim da compra de habitações por residentes não habituais. O argumento é garantir o funcionamento do mercado. Por isso, não vai haver tabelamento de rendas, apesar de vários países da União Europeia (UE) já o fazerem, nem aposta na habitação pública. Portugal tem menos de 2% habitação pública, muito abaixo da média europeia, que é perto dos 15%.
Não vai haver, com o Governo da AD, aposta na construção pública nem requalificação dos bairros e dos subúrbios. A política da direita limita-se a pôr o Estado a apoiar a classe média alta para dar muito dinheiro aos construtores. O Governo aposta em baixar impostos nas compras de casa dos mais jovens, o que inclui os poucos que têm dinheiro para comprar casa, e dar subsídios de renda que permitam manter o nível das rendas especulativas existentes. As medidas vão multiplicar os lucros, ajudar os filhos da classe média alta a ter casa, mas sobretudo dar muito dinheiro aos especuladores privados. Não estamos perante uma política para a habitação, mas uma política para a especulação.
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