A liderança de Moedas e a oposição não concordaram na contrapartida que o promotor imobiliário daria à cidade em troca do licenciamento da obra no “quarteirão dos graffiti” da Fontes Pereira de Melo, o que resolveria um impasse de mais de três décadas numa das avenidas mais centrais da capital.
O projecto de arquitectura, assinado pelo arquitecto Frederico Valsassina, está pronto; só falta mesmo a obra avançar para encerrar um impasse urbanístico que já dura mais de três décadas na Avenida Fontes Pereira de Melo, em Lisboa. No entanto, para que o devoluto quarteirão dos graffiti ganhe uma nova vida, é necessário que a Câmara de Lisboa conclua o processo de licenciamento que tinha sido iniciado em 2021. A reunião do Executivo municipal desta quarta-feira, 24 de julho, deveria ter sido um passo decisivo nesse sentido, mas a votação dos vereadores acabou por ir no sentido contrário.
É sensivelmente a meio da Fontes Pereira de Melo, uma das avenidas mais importantes de Lisboa, que encontramos um quarteirão devoluto desde o final do século passado. São três prédios que foram construídos entre o final do século XIX e o início do seguinte, e que têm estado abandonados desde, pelo menos, os anos 1990. Em 2010, ganharam intervenções de arte urbana feitas pelos brasileiros Os Gémeos, pelo italiano Blu e pelo espanhol Sam3. O projecto de Frederico Valsassina está pronto desde 2021, quando se iniciou o processo de licenciamento da obra junto da autarquia lisboeta.
A operação urbanística envolve não só os três prédios da Avenida Fontes Pereira de Melo (sitos nos números 18 a 26), como todo o quarteirão formado pelas ruas Martens Ferrão e Andrade Corvo, segundo explica o jornal Público. Os edifícios da Fontes Pereira de Melo vão manter a sua volumetria e as fachadas, uma vez que fazem parte da lista de bens da Carta Municipal do Património Edificado e Paisagístico da cidade. Mas no quarteirão está previsto a construção de dois edifícios, totalmente novos, nas traseiras da avenida com sete pisos cada. No total, serão 136 luxuosos apartamentos de tipologias T1 a T4, com uma área interior partilhada no -2 com piscina, sauna e banho turco, um jardim comum aos cinco edifícios, no interior do quarteirão e de uso privativo, 305 lugares de estacionamento automóvel em cave, e duas lojas destinadas a serviços. A operação urbanística estará a cargo do promotor imobiliário Azipalace, do grupo SANA.
Para o local, chegou a estar prevista, em 2018, uma torre para albergar um hotel – um projecto do arquitecto Eduardo Souto de Moura que obrigaria à demolição total dos edifícios da Fontes Pereira de Melo. Uma petição promovida pelo grupo cívico Fórum Cidadania Lx, no Verão de 2020, pedia a preservação das fachadas – uma intenção que a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou, em Janeiro de 2021, na forma de recomendação à Câmara. Já no início da década de 1990, o arquitecto Tomás Taveira tinha apresentado uma ideia para criar naquele quarteirão algo semelhante à chaminé de uma central nuclear em homenagem aos Descobrimentos.
Vereadores em desacordo
Na reunião desta quarta-feira, os vereadores da Câmara de Lisboa apreciaram uma proposta de alteração dos termos de aprovação do projecto de arquitectura dos edifícios da Fontes Pereira de Melo. Em causa, não estava o projecto do quarteirão em si, mas a contrapartida que a Azipalace daria à cidade pelo licenciamento da obra. Ou seja, se em 2021, a autarquia estava a pedir ao promotor imobiliário a construção de uma creche para 42 crianças, em troca do “OK” para construir os 136 apartamentos de luxo na Fontes Pereira de Melo, agora a contrapartida era diferente: na mesma uma creche, mas a ocupar um edifício devoluto situado nos números 10-12 da Travessa de São Bernardino, próximo do Campo Mártires da Pátria, e para menos crianças – 34 em vez de 42. Esta diminuição decorre da capacidade máxima validada para aquele edifício pelo Departamento de Direitos Sociais do Município. A futura creche teria três pisos, como o prédio actual, bem como um logradouro de 241 m2, onde funcionaria o recreio. A área total dos espaços interior e exterior seria 352 m2.
No entanto, a oposição representada no Executivo municipal não concordou com a contrapartida apresentada pela Vereadora do Urbanismo, Joana Almeida, e chumbou a proposta que permitiria a aprovação definitiva do processo de licenciamento do empreendimento da Fontes Pereira de Melo. PS, CPL, Livre e BE votaram contra, o PCP absteve-se, e os sete vereadores da coligação Novos Tempos, liderada por Carlos Moedas (PSD), foram os únicos a votar favoravelmente. Numa nota enviada ao Público, Moedas acusou a oposição, em particular os socialistas, de travarem o projecto da Fontes Pereira de Melo, referindo que “por muito que se tente ‘desatar nós’ e resolver situações problemáticas nesta cidade, existem sempre bloqueios”. “Lamento mais uma vez esta decisão da oposição, em especial do PS que, durante anos, não resolveu e não quer também que ninguém resolva. É bloqueio por bloqueio pura e simplesmente. Vamos ter de continuar a conviver com um quarteirão abandonado numa das principais avenidas da nossa cidade”, disse também o autarca.
Por seu lado, o PS defendeu-se num comunicado público, dizendo que “Carlos Moedas cedeu à pressão do promotor para aceitar um edifício mais pequeno, apenas para 34 crianças, e um pequeno logradouro”, em vez da contrapartida aprovada em 2021. “Uma creche não é um armazém e crianças precisam de espaço para recreio. O direito ao bem estar das crianças não está à venda. Em vez de garantir que são asseguradas as condições básicas para as crianças, Moedas cedeu aos interesses do agente imobiliário. A solução é simples. Cumprir o que foi acordado há três anos”, completaram os socialistas. Por seu lado, e numa nota enviada ao Público, o Livre também criticou a creche como contrapartida porque “não é no mesmo sítio e é mais pequena”. Já os Cidadãos Por Lisboa (CPL) disseram que a “alteração de contrapartidas resultaria num claro prejuízo do interesse público” e, contrariando Moedas, referiram que o voto desta quarta-feira “não representa entrave à possibilidade de o projecto para o quarteirão na Fontes Pereira de Melo avançar como estava previsto”. O BE referiu, ame comunicado, que “o investimento de três edifícios na Avenida Fontes Pereira de Melo exigia por compromisso passado uma compensação para a criação de uma creche no mesmo local”.
A oposição tem razão: a contrapartida mudou e encolheu. Em Julho de 2021, a Câmara de Lisboa aprovava o licenciamento da operação urbanística na Fontes Pereira de Melo com um parecer favorável do Departamento de Planeamento Urbano para a “instalação de uma creche para 42 crianças, que corresponde a uma área bruta de construção de 420 m2, acrescido de espaço exterior afecto com 420 m2“, através da cedência de uma parcela do terreno do quarteirão para esse fim ou, “em alternativa”, através da integração do equipamento na operação urbanística, sendo a “respectiva fração entregue à Câmara Municipal em tosco” (bruto). Os documentos podem ser consultados em baixo.
Ainda não é desta que o devoluto quarteirão dos graffiti da Fontes Pereira de Melo vai ganhar uma nova vida. Mas o assunto poderá voltar à discussão em reunião camarária depois da interrupção de Verão.