Este ensaio procura rever e deixar registados os momentos mais significativos de um processo de organização popular, dentro da cidade de Lisboa, entre 2016 e 2023. Um processo que procurou encontrar outras formas de produzir cidade e o seu confronto com a estrutura do Estado/Município e a forma como entende a construção de cidade – além dos discursos sobre “participação” e “envolvimento das populações”.
Mais do que descrever práticas e metodologias participativas e a sua transformação em projecto, este ensaio pretende refletir sobre um processo promovido a partir da realidade local (bottom-up), a organização das pessoas, a conquista de visibilidade e o confronto com as práticas institucionalizadas de planeamento (top-down).
A listagem e descrição de alguns destes momentos procura produzir o registo de um processo rico em nuances, contradições, ilusões e desilusões, mas capaz de se inscrever como um contributo para uma análise mais geral sobre as formas de construção de cidade em Lisboa na última década.
Contexto
A Quinta do Ferro é um bairro entre desenvolvimentos, na freguesia de São Vicente, em Lisboa. A sua implantação acontece numa zona de vale e sombra da colina da Graça, entre as costas de Santa Clara (zona histórica muito marcada pelos processos de gentrificação e turistificação) e a Rua Leite de Vasconcelos (rua de edifícios predominantemente residenciais construídos há menos de cem anos). Os processos de gentrificação e turistificação de Lisboa têm vindo a ser estudados por diversos autores ao longo dos últimos anos. Neste ensaio, adopta-se como ponto de partida a formulação e conceitos de Luís Mendes no que respeita à relação que estabelece entre os fenómenos e as políticas de urbanismo austeritário do pós-crise 2008-2009 (Mendes, 2017). Mendes demonstra como o desenvolvimento capitalista necessita de superar, constantemente, o tenso equilíbrio entre a preservação e destruição do valor do capital fixo de modo a desencadear cíclicos processos de crise e acumulação. Esta tensão espoleta as maiores operações de produção de cidade e de alteração do ambiente construído, “para abrir espaço novo para a acumulação”.
Desconhecendo-se bibliografia específica sobre as origens da Quinta do Ferro entende-se como importante referir que a história oral transmitida entre os moradores do bairro aponta para que este território tenha sido baptizado desta forma, na época do Marquês de Pombal, por ser uma zona de descarga e deposição de restos de peças e estruturas metálicas e intensa atividade comercial de ferro-velhos. Outra história ouvida, aponta para que, no final do séc. XIX e início do séc. XX, tenha existido uma fábrica de armas de fogo referindo-a como relevante na produção para a 1ª Grande Guerra Mundial. Para procurar um fio condutor para esta última narrativa popular importaria relacionar o local com os equipamentos militares que estiveram implantados naquele território no decorrer do séc. XX – como o Hospital Militar ou a OGFE – Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento. Não sendo este o motivo do texto, entende-se deixar estas pistas a partir da história contada pelos locais para que, quem o deseje, aprofunde estas referências.
Sabe-se quase tudo do território que circunda a Quinta do Ferro mas, da própria, muito pouco. Ora essa ausência de referências também é revelador de um território de cidade que vive nas costas da cidade, na sombra da Graça e da Colina de São Vicente. Terá sempre sido território de comércio ou habitação das classes mais desfavorecidas da cidade de Lisboa e, chegados aos nossos dias, uma das últimas áreas degradadas do centro de Lisboa ainda não sujeitas à reabilitação urbana – como Alfama, Mouraria ou Bairro Alto. Ou seja, onde se concentraram franjas de pobreza. Em 2023, no centro de Lisboa ainda era um dos locais onde se podia encontrar rendas muito abaixo da média, no essencial, produto das precárias condições das habitações.
Do ponto de vista do Plano Director Municipal de Lisboa (PDM), a Quinta do Ferro encontra-se na categoria de “Espaços a Consolidar”, no que respeita à qualificação operativa, e “Espaços Centrais e Residenciais”, no que respeita à qualificação funcional do solo. Nos termos do PDM, “os espaços centrais e residenciais a consolidar correspondem a áreas da cidade onde se preconiza a respetiva reconversão, designadamente antigas áreas industriais obsoletas ou ocupadas com construções de carácter precário ou degradadas, grandes equipamentos ou instalações militares em processo de desativação, grandes parcelas urbanas não edificadas a estruturar e Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGI)”.11. Uma caracterização urbanística mais aprofundada teria de referir a génese informal da maioria das construções do bairro, a sua pouca qualidade construtiva (ainda que nos estejamos a referir, predominantemente, a construções em paredes de alvenaria e coberturas em telha), a carência de passeios ou espaços públicos qualificados, a desregulação do estacionamento e a existência de algumas bolsas de estacionamento em espaços vazios municipais, sobretudo, para dar resposta aos moradores das vizinhanças.
A partir de 2019, e com particular significado a partir de 2020, período em que o país e o mundo estiveram sob o efeito da Declaração de Pandemia realizada pela Organização Mundial da Saúde (Covid-19), a Quinta do Ferro foi notícia pelas indignas condições de habitação da maioria das pessoas que habitavam o seu núcleo central.
Este ensaio exige uma prévia clarificação sobre a posição do autor perante o território. Também a título de declaração de interesses importa notar que o seu autor coordena uma equipa técnica que opera neste território desde 2016, a partir do Ateliermob2 e da cooperativa Trabalhar Com Os 99% [TC99%]3, tendo acompanhado todo o processo de reivindicação, organização e formalização da Associação de Proprietários e Moradores Amigos da Quinta do Ferro (constituída em 2016) [AQF].
Até 2018, este trabalho foi desenvolvido na qualidade de coordenador de projecto, centrando-se em torno do desenvolvimento de um processo participativo que se concluiu com um Estudo Urbanístico e com a apresentação de uma proposta de planeamento urbanístico e metodologia ao Município de Lisboa. Entre 2018 e 2021 como equipa de assessoria técnica, nos termos de práticas de apoio a iniciativas de base local como as que são, por exemplo, levadas a cabo pela Usina CTAH (Vilaça & Constante, 2015). Estas práticas de assessoria técnica desenvolvem-se de forma entrelaçada entre o apoio à contestação, denúncia e reivindicação das condições do território e das suas habitações à formação de análise fundamentada para a discussão técnica e política sobre o futuro do território. Por outro lado, os seus processos são cíclicos, onde há uma evolução progressiva entre a compreensão, a mudança, a acção e a reflexão crítica da prática de projecto e do posicionamento da própria assessoria técnica. A partir de 2022, a assessoria técnica dedicou-se à análise técnica das propostas que iam sendo apresentadas pelo Município de Lisboa.
Este ensaio é produzido a partir de informação que é pública, maioritariamente online, e dos arquivos da cooperativa Trabalhar Com Os 99%. Nele procura-se registar um conjunto de momentos de um processo que pode ser interessante analisar do ponto de vista do que são as formas de organização e construção da cidade em Lisboa nestes anos de profunda transformação da cidade como resultado de um certo urbanismo austeritário (Mendes, 2017).
O tempo da participação
Feita a contextualização do território e da posição do autor na problemática, certamente simplificadoras de uma realidade mais complexa, contar-se-á a história de como se começou a organizar a população e construiu o processo que deu origem à proposta de plano urbano realizado com as pessoas, moradoras e proprietárias, do bairro. Procurar-se-á identificar o que foi sendo feito entre 2018 e 2020 para tentar retirar o bairro da invisibilidade e manter as dinâmicas comunitárias e, depois de 2019 e até Abril de 2023, a partir do momento em que o Município decreta uma Operação de Reabilitação Urbana (ORU) de iniciativa municipal e sobre as formas que o projecto municipal vai tomando.
Em 2016, a cooperativa Trabalhar com os 99% [doravante designada como TC99%], foi promotora do projecto BIP/ZIP4 “Quinta do Ferro Participa” em parceria com um grupo informal de proprietários e moradores designado como Amigos da Quinta do Ferro, o Clube Desportivo da Graça e Urban Sketchers Portugal. Até então, não tinha havido qualquer projecto aprovado no âmbito do Programa BIP/ZIP para a área 65 – Quinta do Ferro. Nesse projecto, aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) em reunião de 13 de Outubro de 2016, propunha-se desenvolver “projecto/estudo de reabilitação da zona da Quinta do Ferro de modo a proporcionar as condições sociais em harmonia com uma cidadania e urbanismo compatíveis com o século XXI, respeitando os valores arquitectónicos, históricos e respectivo ambiente visual e paisagístico”. Mais, escrevia-se que “o processo será desenvolvido de uma forma participada e colaborativa entre moradores, proprietários e trabalhadores que habitam hoje o local”.
Das suas actividades constava não apenas a elaboração de um projecto/estudo urbanístico mas também acções de sensibilização da população para a derrama de lixo na via pública; inquéritos sobre a realidade do bairro e sua divulgação local; levantamento cadastral da estrutura de propriedade, senhorios e inquilinos; todos os actos para a constituição da “Amigos da Quinta do Ferro, Associação de Proprietários e Moradores” [doravante designada como AQF]; assembleias de dinamização e discussão sobre o futuro da Quinta do Ferro e o estudo/projecto a ser desenvolvido. Outra das intenções, não descrita na candidatura mas sobejamente manifestada, era a de partilhar com a CML a informação criada e produzida de modo a conseguir encontrar uma plataforma de entendimento comum entre todas as partes envolvidas. Para a realização destas actividades o Município de Lisboa comparticipou com 50 mil euros.
Mas o movimento começou antes do financiamento com a constituição de um grupo informal de moradores e proprietários. O início destes mecanismos de constituição não é dissociável do trabalho do professor em teoria de organização política Rodrigo Nunes (Nunes, 2021) a partir da necessidade de cruzamento entre movimento e organização, formal e informal, nem vertical nem horizontal. Este grupo organizou a primeira reunião, no Auditório da Junta de Freguesia de São Vicente, a 15 de Março de 2016. Sete proprietários participaram e forneceram informações sobre outras pessoas que poderiam estar interessadas em participar. A 3 de Abril do mesmo ano, numa reunião realizada na sede da TC99%, a participação duplicou. A partir desta reunião, foi constituído um grupo de pessoas que se dirigiu à Junta de Freguesia de São Vicente para tentar recolher mais informações sobre residentes e proprietários.
Já no âmbito do programa BIP/ZIP, a 20 de Novembro de 2016, realizou-se um magusto no Mercado de Santa Clara – o primeiro evento que reuniu um número significativo de moradores e proprietários, e os Urban Sketchers de Portugal começaram o seu trabalho de registo destes eventos até ao quotidiano (Figura 1). A 9 de Janeiro de 2017, a associação de vizinhos foi formalmente registada como: Amigos da Quinta do Ferro, Associação de Proprietários e Moradores.
No ano de 2017, desenvolveram-se várias estratégias de planeamento participativo que se passam a descrever.
O primeiro passo foi um inquérito local organizado ao longo de dois dias. Este inquérito foi respondido por mais de quatro dezenas de residentes. Um terço eram mulheres, na sua maioria, com mais de 51 anos. A mediana das pessoas que responderam ao inquérito admitiram viver no bairro há mais de 24 anos. Dos resultados percebia-se que as pessoas gostavam de viver naquele território, desejavam continuar a viver, mas viam como uma urgência a necessidade de reabilitação das suas casas e espaços públicos. Foram identificadas carências básicas como a falta de instalações sanitárias, problemas estruturais e infiltrações nas casas, espaços urbanos insalubres devido ao acumular de lixos e pragas de ratos e baratas. O turismo foi identificado como um problema que estava a fazer subir o valor das rendas e as despesas diárias. Potencialmente alimentado por uma conflituosidade latente entre a Junta de Freguesia e as pessoas deste território, no momento em que a primeira construía num terreno público um parque de estacionamento temporário, afirmavam que não precisavam de mais lugares de estacionamento e pediam uma praça pública que pudessem usar.
Nesta primeira tentativa de participação, com uma folha em branco para propostas, as pessoas pediram uma praça com espaços públicos intergeracionais, melhorias no pavimento, mais áreas verdes e hortas urbanas (Figura 2).
Deste processo pensou-se que teria sido encontrado o programa base para um plano urbano mas os primeiros desenhos foram rejeitados. Na primeira assembleia destinada a discutir a estrutura básica do plano urbano percebeu-se que as hortas urbanas era algo bem aceite do ponto de vista idílico, que as pessoas o podiam pedir num inquérito com folha em branco, mas quando confrontadas com um desenho e localização, viam-nas como problemáticas naquele território. A primeira proposta de plano, com um núcleo significativo da área verde, baseada nos 40% que declararam como prioritário a construção de um parque verde e nos 26% que pediram hortas urbanas, foi rejeitada (Figura 3). Talvez tenha sido o confronto entre a imagem romântica de uma ideia de cidade verde com o sentido de urgência e de resposta aos problemas concretos da vida de cada pessoa. Falou-se mais de casas decentes, espaços públicos e ligações urbanas, do que de jardins. Os inquilinos defenderam rendas justas, os proprietários – na sua maioria com baixos rendimentos – defenderam a necessidade do envolvimento do Município na renovação urbana e na requalificação dos edifícios.
Como se percebe, o processo teve altos e baixos, avanços e recuos. De uma forma sintética, a proposta apresentada ao Município como resultado deste processo, desenvolvia uma estratégia de cruzamento das diferentes realidades procurando a integração deste território nas dinâmicas do fruir da cidade. Do ponto de vista do espaço público era desenhada a tal praça por onde passava um percurso pedonal que ligaria de uma forma mais directa a Rua Leite de Vasconcelos com a Escola Básica e Secundária Gil Vicente. Para o território central e mais precário da Quinta do Ferro estabelecer-se-ia uma Unidade de Execução para onde teriam de ser criadas regras próprias de abertura de pátios interiores para ventilação mas a partir da manutenção do desenho de propriedade e lotes. O objectivo era que a estrutura de propriedade se mantivesse e contivesse a gula especuladora de potenciais novos investidores. Nos lotes de propriedade pública era aumentada a capacidade construtiva, propondo-se uma área mais extensa para uma operação de renda acessível que começava, à época, a ser proposta como um plano de investimentos municipais. Essa nova área residencial também permitiria servir de alojamento temporário para moradores que, eventualmente, tivessem de sair das suas casas para que se desse a respectiva reabilitação (Figura 4).
No desenvolvimento da proposta, a TC99% promoveu várias reuniões com o Município designadamente com técnicos do Património, do Desenvolvimento Local, do Planeamento Urbano e com a Vereadora da Habitação e Desenvolvimento Local, Paula Marques. No decorrer do processo foi igualmente solicitada reunião com o Vereador do Urbanismo Manuel Salgado, que nunca a agendou.
O Estudo Urbanístico foi concluído em Assembleia de Moradores e Proprietários de 25 de Março de 2018 tendo sido entregue, à CML, em Abril do mesmo ano. A denominação de “Estudo”, fundamentava-se na ideia que deveria dar origem a um Plano Urbano de iniciativa municipal que estabelecesse um conjunto de regras próprias e específicas que permitissem a reabilitação urbana além do inscrito no Plano Director Municipal – que não permitia a maioria das intervenções necessárias ao não tratar este território como uma unidade específica.
O tempo da burocracia
A 7 de Novembro de 2018, a TC99% foi convocada para uma reunião técnica, no gabinete da Vereadora Paula Marques, com o Diretor de Departamento de Espaço Público na Câmara Municipal de Lisboa, Pedro Dinis, e a arquitecta Paula Rebelo da Divisão de Projetos e Estudos Urbanos – autora de um estudo desenvolvido pela CML em 2013. Nessa reunião não foram levantadas quaisquer objecções técnicas, tendo o processo e as soluções adoptadas sido valorizadas pelos dois técnicos presentes. O Director de Departamento, Pedro Dinis, ficou de verificar com o então Vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, a prioridade que seria dada à concretização deste plano para a Quinta do Ferro.
A 31 de Janeiro de 2019, após reiterada insistência da AQF para reunir com o pelouro do urbanismo, deu-se uma reunião, com a presença de vários técnicos e assessores municipais, e o Director de Departamento do Planeamento Urbano, Paulo Pais. Independentemente de todos os anteriores contactos e reuniões, este é o momento mais importante e no qual se começou a desenhar o futuro entendimento do Município sobre o território. O então Director de Departamento, figura próxima de Manuel Salgado e do seu sucessor Ricardo Veludo, abriu a reunião com elevada dose de hostilidade para com os proprietários presentes, afirmando que se deviam envergonhar pelas condições em que tinham as suas casas e os seus inquilinos. De seguida, assumiu uma posição desqualificadora do Estudo apresentado e do próprio programa municipal BIP/ZIP. No decorrer da reunião, referiu-se a alegadas ausências de peças procedimentais, que os técnicos do seu departamento lhe foram mostrando constarem do processo, desculpando-se com o facto de o estudo lhe ter chegado poucos dias antes e de ainda não ter tido tempo de o analisar em profundidade. Do ponto de vista teórico e sobre a Quinta do Ferro, Paulo Pais manifestou as suas reservas em torno de um processo de reabilitação da Quinta do Ferro a realizar com a actual estrutura de pequenos proprietários e sem que uma parte significativa dos lotes fosse detida por um investidor com capacidade financeira para, aí sim, a CML ter um “parceiro fiável” no território.
A reunião terminou com um pedido expresso pela TC99% para que fossem informados sobre qual a posição formal da Câmara Municipal de Lisboa quanto à proposta apresentada, além da opinião de técnicos e dirigentes municipais. À TC99% não foi solicitada, formal ou informalmente, qualquer alteração ou rectificação das peças entregues e/ou foi dado conhecimento da existência de um parecer formal do Município sobre o estudo apresentado, como se provará adiante. Esta reunião representa uma alteração da forma como o trabalho entre a TC99% e AQF era acolhido pelo Município, como se verá adiante, e o entendimento de uma forma diametralmente oposta de construir a cidade a partir de parcerias entre o Município e grandes investidores.
Não tendo havido qualquer comunicação após a reunião de Janeiro e nem percebendo, à época, qual a posição formal do Município, a AQF decidiu intervir na reunião pública da Câmara Municipal de Lisboa de 29 de Maio de 2019, na qual, entre outras coisas, foi declarado pelo seu Presidente José Manuel Rosa:
“Os problemas são cada vez mais graves (…) Estamos a ser pressionados por grupos estrangeiros que pretendem comprar as nossas casas (…) Até agora não temos qualquer resposta da CML (…) Apelamos a que se passe para a acção imediatamente.”
Na resposta, a Vereadora Paula Marques informou que este território está inscrito na Estratégia Local de Habitação de Lisboa e que o bairro poderá ter apoios financeiros através do Programa 1º Direito para a sua reabilitação. O Vereador Manuel Salgado reconheceu a dificuldade de intervenção na Quinta do Ferro e referiu a existência de muitos estudos para o local, acrescentando que o estudo de 2018 estaria a ser apreciado pelos serviços pelo Departamento de Planeamento Urbano e Espaço Público e que desencadeariam uma reunião “com a maior brevidade possível”.
Desde Abril de 2018 a AQF e a cooperativa TC99% não deixaram de promover actividades no bairro. A associação promoveu, entre outras coisas, uma série de encontros de bairro designados “No Nosso Chão” e que apenas terminaram com o início da Pandemia. Assim que começaram a aparecer os primeiros casos de Covid-19 no bairro, a Associação e a TC99% criaram e promoveram um Fórum Online de encontro e partilha de informação sobre a Quinta do Ferro (Abril de 2020) e apoiaram o Município e a Junta de Freguesia na identificação de situações de carência extrema no território para atribuição de cabaz alimentar. As iniciativas que a Associação e a TC99%, por iniciativa própria, e sem qualquer apoio financeiro do Município ou da freguesia, foram aliás reconhecidas e identificadas no “Fórum Urbano Covid19” promovido pela edilidade. A 20 de Julho de 2018, a AQF decidiu propor-se a integrar a cooperativa Trabalhar Com Os 99% e, desde 27 de Março de 2019, o dirigente da AQF Francisco Manuel de Jesus Moreno passou a desempenhar as funções de direcção do Orgão de Fiscalização da referida cooperativa5.
Com a mudança de Vereador do Urbanismo, a partir 10 de Outubro de 20196 a AQF solicitou uma reunião ao novo Vereador do Urbanismo, Ricardo Veludo, para que lhe pudesse ser apresentado o estudo realizado e dar conta do agravamento das condições do bairro. A 18 de Setembro de 2020, onze meses depois, a AQF recebeu a primeira resposta do gabinete do respectivo vereador com o seguinte conteúdo: “Encarrega-me o Senhor Vereador Ricardo Veludo de acusar a receção do e-mail abaixo, que desde já agradecemos e que mereceu a nossa melhor atenção. Atendendo ao assunto em causa, foi o mesmo encaminhado para o Gabinete da Sra. Vereadora Paula Marques (…) que detém o respetivo pelouro.”7
No entanto, a pressão pública estava a crescer. A 14 de Julho de 2020 o deputado municipal Diogo Moura (CDS-PP) havia apresentado um requerimento na Assembleia Municipal perguntando, entre outras coisas, se “a CML pretende contemplar o projecto de reabilitação do bairro, desenvolvido pela Associação de Amigos da Quinta do Ferro através de um financiamento do programa autárquico BIP/ZIP?“ e, após vários artigos na imprensa escrita, a 27 de Setembro foi divulgada em prime-time na RTP1 uma reportagem sobre as condições de habitação na Quinta do Ferro. Na sequência desta última reportagem, o presidente da AQF, José Manuel Rosa, recebeu o contacto telefónico do gabinete do Vereador Ricardo Veludo convocando-o para uma reunião que ocorreria no próprio dia nove dias após o email em que havia referido que os temas relativos à Quinta do Ferro não eram da responsabilidade do seu pelouro. Nessa reunião, a AQF foi informada que a CML iria decretar uma ARU/ORU Sistemática até ao final do ano de 2020 e que já estaria a realizar um projecto que seria apresentado no final do primeiro trimestre de 2021 – o que nunca chegou a acontecer. Quanto ao Estudo apresentado em 2018 pela AQF e TC99%, o Vereador Ricardo Veludo referiu, em resposta a perguntas colocadas pela RTP, que não poderia ser considerado por não apresentar qualquer solução para a zona central nevrálgica da Quinta do Ferro. Mais tarde, em reunião pública da CML de 30 de Setembro de 2020, corrigiu estas declarações passando a afirmar que haveria um parecer conjunto das Direcções do Planeamento Urbano e Desenvolvimento Local com o pedido de alterações à referida proposta, que nunca havia obtido resposta dos projectistas (TC99%).
A 27 de Setembro de 2020, a TC99% solicitou informações à Direção Municipal de Habitação e Desenvolvimento Local – Departamento de Desenvolvimento Local, a quem havia entregue todo o processo, se dos documentos remetidos para o Departamento do Urbanismo constavam todas as peças entregues, designadamente “o levantamento cadastral de todos os proprietários e moradores e a proposta para a Unidade de Execução 04 relativa ao centro mais degradado da Quinta do Ferro”, se tinham conhecimento de um parecer negativo dos serviços do urbanismo e se tinham conhecimento de um novo projecto anunciado pelo Vereador Ricardo Veludo. A 7 de Outubro recebe resposta ao anterior email, tendo sido garantido que havia sido remetido o processo completo para o Departamento do Urbanismo, que se desconhecia a existência de outro projecto em elaboração e que, passamos a citar: “Apenas ocorreu uma reunião de articulação em 15 de Março de 2019 entre o DDL e DPU onde este último apresentou o seu entendimento genérico e preliminar ao estudo urbano. Ficou definido nesse seguimento a realização de reunião entre os dois Pelouros envolvidos para avaliação e decisão de possíveis cenários.”
A 1 de Outubro de 2020, perante a invocação, pública e reiterada, de pareceres e factos justificativos que a TC99% desconhecia, a cooperativa entendeu notificar o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa nos seguintes termos:
“na qualidade de Promotora do Projeto BIP/ZIP 2016 com a Refª: 014 Designado: ‘Quinta do Ferro Participa’ que, entre outras coisas, originou a criação da Associação de Proprietários e Moradores da Quinta do Ferro;
na qualidade de autora do Plano Participativo para a Quinta do Ferro realizado entre 2016 e 2017;
na sequência das recentes declarações à comunicação social e em reunião da CML (30/9/2020) proferidas pelo Sr. Eng. Ricardo Veludo, na qualidade de Vereador do Urbanismo, declarando existir um parecer conjunto DMU/DDL desfavorável ao referido Plano e que esta cooperativa havia sido notificada para proceder a alterações,
vem, ao abrigo do disposto nos artigos 82.º, do Código do Procedimento Administrativo e 60.º e 104.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, solicitar a V/ Exa., muito respeitosamente, que lhe seja dada INFORMAÇÃO, no prazo de legal de 10 dias, acerca do andamento do procedimento administrativo, nomeadamente dos atos praticados, contendo a identificação do seu autor, a sua fundamentaçã integral, a data em que foi praticado, e a qualidade em que o seu autor o praticou (competência própria, delegada ou subdelegada, com indicação, nestes dois últimos casos, dos despachos de delegação ou subdelegação e do local da sua publicação).”
A resposta chegou às 22h13 do dia 16 de Outubro, nas últimas horas dos dez dias previstos na lei para resposta à notificação, assinada pelo gabinete do Vereador do urbanismo e na qual constam dois documentos: um email, com a mesma data (16/10) assinado pelo Director de Departamento, Paulo Pais, e um documento, não assinado, e intitulado como “Acta de Reunião”. Em nenhum dos documentos consta um parecer e/ou análise fundamentada sobre o estudo entregue e a prova que corroborasse a afirmação de que a TC99% havia sido notificada para proceder a alterações.
No email do Director de Departamento constam afirmações pouco rigorosas ou falsas. De uma forma indirecta procurava-se afirmar que os objectivos da candidatura ao programa BIP/ZIP não haviam sido cumpridos, designadamente na “elaboração de um relatório diagnóstico das situações urbanas a necessitar de intervenção e reivindicações da população local”, que, note-se, não constava da proposta de candidatura. Procurava-se enunciar uma relação promíscua entre a empresa Ateliermob Lda. e a cooperativa TC99% (sendo o Ateliermob um dos fundadores da mesma). No que diz respeito à sua atitude perante a problemática, Paulo Pais qualificou a sua actuação como tendo sido emanada de “espírito de colaboração” e “lógica de parceria” na reunião de 31 de Janeiro de 2019 mas que teria sido dado conhecimento da emissão de um parecer fundamentado resultado da apreciação dos serviços. Mais, afirmou que o resultado da reunião em apreço teria sido um pedido de “desenvolvimento do trabalho apresentado” e “uma proposta atualizada do estudo urbanístico”. No segundo documento, identificado como “Acta de Reunião”, e que não se encontra assinado por nenhum dos participantes (nem mesmo pelos representantes do Município), mais uma vez se colocaram algumas das opiniões manifestadas pelo Director da CML Paulo Pais, mas apresenta-se uma conclusão diferente:
“Os assessores do Gabinete da Vereadora Paula Marques promoverão uma reunião entre os dois Vereadores dos pelouros envolvidos – Habitação (Vereadora Paula Marques) e Urbanismo (Vereador Manuel Salgado) para avaliação e decisão dos possíveis cenários.”
Neste ensaio, parece-nos importante esta descrição mais fina sobre as formas de relação e incompreensão entre os munícipes, pessoas genéricas (proprietários e moradores), e o Município. Sendo certo que, neste caso, se tratava da relação de uma associação representativa, com apoio técnico, importa perceber melhor esta sucessão de silêncios, respostas pouco rigorosas para fazer um diagnóstico mais assertivo dos processos. Isso também revela a forma como o Município vê cada um dos territórios. Noutros bairros, noutros processos, as respostas não foram as mesmas como se demonstrará adiante. Mas esta descrição não será a mais impressionante para atestar a ideia de território de exclusão, pelo que é importante que atentemos a outro facto.
No início de Outubro de 2021, os vereadores do PCP, Ana Jara e João Ferreira, a partir das queixas da AQF de que os projectos de reabilitação da maioria dos proprietários não eram aprovados pelo Município enquanto o projecto de um fundo imobiliário havia obtido rápida aprovação, elaboraram um requerimento a solicitar dados sobre a matéria. A 14 de outubro de 2021, o Vereador Ricardo Veludo (2019-2021), respondeu por ofício8 que, desde 2013, o Município havia recebido 57 propostas de projetos de reabilitação/nova construção, e que oito foram aprovados ou estavam em processo de aprovação, quatro foram rejeitados e os promotores foram informados. Apesar de Ricardo Veludo também escrever que todos os projetos haviam, em algum momento, recebido retorno, os números demonstram que a maioria das propostas para reabilitar edifícios na Quinta do Ferro foi ignorada. Não é improvável que, se não fosse a dimensão mediática conquistada pela associação e pelo bairro, o Estudo com a proposta de Plano jamais teria obtido qualquer resposta.
Note-se que, mesmo existindo financiamento para a reabilitação de casas no âmbito do PRR – Plano de Recuperação e Resiliência e do programa nacional 1º Direito, à data em que este ensaio foi escrito, não chegou um euro para a reabilitação da Quinta do Ferro. A 6 de Setembro de 2019, em reunião entre a TC99% e Ateliermob com o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), no quadro de seis assistências técnicas a bairros de Lisboa (um dos quais a Quinta do Ferro)9, a propósito da possibilidade de se iniciar o processo de candidatura a reabilitação da Quinta do Ferro ao Programa 1º Direito, a equipa foi informada que, apesar deste território estar incluído na Estratégia Local de Habitação de Lisboa, teria de ser o Município a desencadear os procedimentos de identificação e levantamento das situações e agregados para que pudessem beneficiar do programa público. O que nunca ocorreu até Agosto de 2023.
Durante o período em que Manuel Salgado foi Vereador do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa as intervenções físicas no território foram circunscritas a algumas operações paliativas e desestruturadas da Junta de Freguesia. Internamente, foi aprovada uma delimitação do que era a área da Quinta do Ferro (que a proposta TC99%/AQF também adoptou) e foi realizado um estudo urbano da autoria da arquitecta Paula Rebelo, com várias escolhas importantes também consideradas e desenvolvidas na proposta TC99%/AQF também adoptou e foi realizado um estudo urbano da autoria da arquitecta Paula Rebelo, com várias escolhas importantes também consideradas e desenvolvidas na proposta TC99%/AQF.
O tempo do plano top-down
A pressão mediática e outro tipo de entendimento do que deve ser a acção do Estado nos territórios mais pobres levou o Vereador Ricardo Veludo a anunciar a realização de um projecto a partir do Município (Figura 5).
No dia 28/10/2020, em reunião pública da CML, o Vereador Ricardo Veludo, no ponto 1 da Ordem de Trabalhos, propôs aprovar a sua proposta de Delimitação da Área de Reabilitação Urbana [ARU] da Quinta do Ferro não considerando todo o trabalho realizado até então. A pedido do PCP e do PSD, com a anuência do Presidente Fernando Medina (PS) e oposição expressa dos Vereadores Veludo (PS) e Manuel Grilo (BE), esta proposta foi adiada por não ter sido apresentada ou discutida com a AQF ou com a TC99%. Segue-se, no ponto 2. da Ordem de Trabalhos, a apresentação da delimitação de uma Unidade de Execução para a Ajuda, proposta pelo Vereador Ricardo Veludo, apresentada pelo arquitecto Gonçalo Byrne (então Presidente da Ordem dos Arquitectos) e promovida por um fundo de investimento sediado em Singapura10. Não é irrelevante notar as diferentes formas de tratamento entre um estudo promovido por uma cooperativa de arquitectura com uma associação de proprietários e moradores e um estudo realizado por uma empresa de arquitetos e promovido por um fundo de investimento imobiliário.
A Delimitação da Área de Reabilitação Urbana [ARU] da Quinta do Ferro seria aprovada em reunião de CML, a 12 de novembro de 2020, na Assembleia Municipal de Lisboa a 10 de dezembro de 2020 e publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 95 de 17 de Maio de 2021. Com a delimitação da ARU era também aprovada Operação de Reabilitação Urbana Sistemática [ORU] instrumento que, entre outras características, permite ao Município a utilização de um modelo simplificado de expropriações.
A delimitação de ARU/ORU aprovada, e ainda em vigor, foi realizada para uma área muito superior à que o Município, em anteriores projectos e na Carta dos BIP/ZIP’s, considerava como Quinta do Ferro. O seu núcleo mais carenciado passou a estar inscrito numa área de reabilitação urbana muito mais extensa e com contextos sociais diversificados sem qualquer justificação técnica, urbanística ou social, inscrevendo novos actores no processo e diluindo as características particulares do território. Sendo que esta proposta de ARU/ORU não se limitava a fazer uma delimitação técnica e factual da mesma efectuando diversas considerações sobre o futuro do que deveria ser aquele território, notava-se não haver qualquer referência ao facto de se reconhecer o direito ao lugar, conforme descrito na Lei de Bases da Habitação, de não se defender a manutenção do tecido social de moradores e proprietários ou de não se manifestar qualquer preocupação pela possibilidade de uma regeneração urbana provocar um processo de gentrificação, como sucedeu noutros territórios e operações urbanísticas promovidas de uma forma top-down.
Aliás, aquela que parecia ser uma tentativa de estabelecer algumas considerações sobre a futura composição social do seu tecido urbano, estarão resumidas nesta descuidada articulação de conceitos: “Espera-se que nas propostas a formular se procure respeitar a equidade territorial, onde a possibilidade de aceder a habitação condigna não seja limitativa da capacidade económica e que se possa colocar em micro tecidos intersticiais, como o da Quinta do Ferro, oferta de habitação para uma maior diversidade de grupos sociais e se respeitem as redes de relações entretanto estabelecidas pelos moradores atuais.” Esta proposta nunca foi articulada com os actores locais, muito menos com a AQF, que só dela teve conhecimento quando apresentada em reunião municipal. Por outro lado, nem o Presidente Fernando Medina nem o Vereador do Urbanismo Ricardo Veludo, acederam aos convites da AQF para visitar o bairro, reiterados em diferentes momentos. Todo o discurso em torno da “participação” era institucionalizado pelos “termos da lei” e individualizada, sem que se considerasse as organizações locais. Um ritual enquadrado tal como Liza Featherstone caracteriza as formas de participação na economia de mercado (Featherstone, 2017). Actos que se destinam a corroborar o que as grandes empresas e a elite política decide. Acrescia a ideia que era passada às equipas municipais de que a população não tinha capacidade técnica para discutir um plano de intervenção e que a sua acção estaria a ser instrumentalizada.
A par desta iniciativa de constituição da ARU/ORU ocorria uma robusta campanha de levantamento social e das condições de segurança das casas na zona central da Quinta do Ferro, promovida pelos serviços municipais. Essa campanha, da qual não se conhecem os resultados, levou a que algumas pessoas fossem realojadas por viverem em condições indignas e de risco. Outras famílias, mesmo vivendo em condições semelhantes, permaneceram no bairro. Os critérios e as prioridades de quem foi, e não foi, realojado nunca foram tornados públicos, tendo sido motivo de enorme desconfiança da população. Esta estratégia top-down também tinha a intenção de enfraquecer a representatividade da associação a partir da ideia que o Município se devia relacionar individualmente com as pessoas e agregados, e que devia fazer o seu trabalho sem ser acompanhado pela AQF. Isso provocou dificuldades em ambos os lados. Os técnicos municipais não eram bem recebidos por uma parte da população e, por outro lado, a representatividade da estrutura colectiva também ia sendo enfraquecida. Com poucos anos de vida e maioritariamente dinamizada por proprietários, a AQF foi tendo crescentes dificuldades no contacto com os moradores-inquilinos, sobretudo, nos fogos ocupados por pessoas em condições mais precárias, de trabalho e/ou saúde. A partir desse momento a própria associação foi-se confinando, cada vez mais, a dar respostas aos problemas dos proprietários e foi ganhando espaço, na narrativa do Município, a afirmação que a AQF não representava os inquilinos.
Com a estratégia municipal de confrontação também foi derrubada uma ideia que vinha a ser trabalhada com o pelouro do Desenvolvimento Local da CML, liderado pela Vereadora Paula Marques (a única vereadora com pelouro que visitou por diversas vezes o bairro), de constituição de um Gabinete de Apoio aos Bairros de Intervenção Prioritária [GABIP]11 Quinta do Ferro. O tema principal pelo qual este GABIP nunca se constituiu foi a recusa, liminar, por parte do pelouro do urbanismo, que este GABIP pudesse ter qualquer tipo de pronunciamento ou participação nas decisões sobre matérias urbanísticas.
Com o início da campanha para eleições autárquicas de 2021, quase todos as forças partidárias foram passando naquele território e colocando-o no centro das suas intervenções. A vitória da coligação de centro-direita Novos Tempos, na qual algumas das pessoas da Quinta do Ferro participaram activamente (designadamente, a activista Rosa Gomes) constituiu-se como uma nova esperança para a reabilitação do bairro.
Os “Novos Tempos”12
A partir de 2022, com um novo Executivo Municipal, Presidente (Carlos Moedas) e Vereadora do Urbanismo (Joana Almeida) a relação entre o bairro e o Município alterou-se. A 25 de Fevereiro de 2022, Carlos Moedas visitou a Quinta do Ferro, já na sua qualidade de presidente da edilidade, e declarou a vontade de promover a reabilitação do bairro ouvindo as pessoas e a sua associação. Filipa Roseta, Vereadora com os pelouros da habitação, obras municipais e desenvolvimento local, foi mais vezes ao bairro e promoveu o concurso público de arquitectura para que se construa habitação a preços acessíveis num pequeno lote municipal dentro da delimitação da ARU, anunciando-o como a primeira iniciativa na reabilitação do bairro. Mas a recuperação da comunicação institucional entre o Município e a AQF não significou, quase dois anos após a eleição do novo executivo, que as obras físicas de reabilitação avançassem ou que as práticas urbanísticas municipais fossem substancialmente alteradas.
Em 2022, a AQF, com a assessoria técnica da TC99%, foi convocada para assistir à apresentação do novo projecto municipal (após um novo inquérito realizado pelos serviços municipais). A proposta implicava a alteração de toda a estrutura de propriedade da zona central do bairro e um reparcelamento que permitia a construção de edifícios de três andares. Os proprietários deixavam de ter as suas construções e os seus lotes de formas irregulares para se poderem inscrever numa malha reticulada e regular. Como se entendia que a maioria dos proprietários não tinha capacidade financeira para comparticipar nas obras de infra-estruturação, deveriam ceder área construída ao Município a partir de um processo perequativo. Um proprietário com 100 m2 de construção, passaria a ter 75m2 de direitos de construção dentro de um edifício de 3 pisos em propriedade horizontal. Ou seja, o proprietário deixava de ter a propriedade plena de uma construção para passar a ter direitos de construção, um andar, num edifício que teria de construir em articulação com os demais proprietários de outros andares.
Façamos aqui uma interrupção nesta descrição para observar o comportamento do mercado imobiliário no bairro. Entre 2017 e 2018, a equipa técnica TC99% foi contactada por três promotores imobiliários que afirmavam a sua vontade de contratar a equipa para prestar serviços de projecto e/ou prospeção no bairro. Estas propostas foram rejeitadas pelo facto de se considerar existir uma incompatibilidade ética entre quem está a elaborar o estudo-plano para o bairro e a necessidade de ter uma relação par, transparente e igualitária com todos os moradores e proprietários. No entanto, o interesse do sector imobiliário era imenso. As pessoas relatavam que, semanalmente, tinham uma proposta de compra dos seus imóveis nas suas caixas de correio. Algumas foram vendendo. O início da construção de um edifício promovido por um fundo imobiliário, no mesmo lote em que o anterior proprietário tinha tentado aprovar um projecto que esteve anos sem qualquer resposta do Município – até se decidir a vender – era recorrentemente usado para demonstrar o desequilíbrio nas formas de relação com a CML. Não havendo valores de venda específicos para aquele território, sabe-se que era das zonas mais baratas de uma freguesia em que os valores escalavam como em toda a zona central de Lisboa.
Ora o processo proposto pelo Município e que, soube-se posteriormente, já vinha a ser preparado desde 2021 pelo Vereador Veludo, agilizava a entrada de novos promotores e fundos imobiliários naquele território. Depois de anos de indefinição e invisibilidade, esta seria a forma mais rápida de garantir aquilo que Paulo Pais via como solução na reunião de 31 de Janeiro de 2019: permitir a um grande investidor ou consórcio a titularidade de muitas pequenas parcelas de modo a construir edifícios novos e a concentrar os direitos de construção de uma parte significativa da Quinta do Ferro. A ideia do projecto inicial, em torno do princípio do direito ao lugar (nos termos da Lei de Bases da Habitação), e de que os mais pobres e precários proprietários teriam condições de manter e reabilitar a sua propriedade mantendo rendas acessíveis, seria ultrapassada pela acção planificadora do Município. Desta forma, criavam-se as condições para que se desse um processo tradicional de acumulação de propriedade por parte de quem tem capital para adquirir.
Mas, a 19 de Maio de 2023, a Vereadora do Urbanismo, Joana Almeida, em reunião com uma parte dos proprietários, anunciou que o Município havia desistido de fazer o processo perequativo mantendo-se a estrutura de propriedade tal como está, que não faria um plano para o bairro e que continuaria a apreciar os projectos de reabilitação nos termos da lei e do PDM de Lisboa. Acrescentou que a cada proprietário seria facultada uma ficha urbanística informativa, que não daria qualquer direito urbanístico, e prometeu, para 2024, que seriam lançadas obras nos espaços municipais. A 13 de Setembro de 2023 foi, nesses termos, aprovado em reunião da Câmara Municipal de Lisboa, por unanimidade, o projecto de Operação de Reabilitação Urbana Sistemática “correspondente à Área de Reabilitação Urbana da Quinta do Ferro”13 determinando, como é de lei, a abertura de um período de discussão pública.
No entanto, o Município manteve a indisponibilidade para fazer um plano urbano para a Quinta do Ferro que possa fazer com que o enquadramento urbanístico do seu edificado possa ir além do que está inscrito no PDM.
O tempo da síntese
Do ponto de vista urbanístico avançou-se muito pouco nestes oito anos (2016-2023). Os edifícios, maioritariamente de propriedade privada, não terão um plano no qual se possam inscrever as suas operações de reabilitação e não poderão concorrer ao sempre tão falado financiamento público. Talvez, no ano de 2024, o Município inicie algumas obras nos espaços públicos e no edifício de habitação pública a renda acessível previsto para a Rua da Verónica.
A Quinta do Ferro foi retirada da invisibilidade a que estava condenada. Constituiu-se movimento de vizinhos. No entanto, também na Quinta do Ferro, este movimento de vizinhos está longe de ser uma entidade social e política homogénea, tendo conseguido constituir-se aquilo que Nunes refere como potentia (Nunes, 2021), que pode ou não resultar em processos transformadores. O resultado, entre o deve e o haver, continuará a ser disputado. Será positivo para todos os moradores que, no momento de maior atenção mediática, foram realojados em casas decentes e na vizinhança, será negativo pelas condições que permitiu a fundos imobiliários – esses sim, com um perfil homogéneo – adquirir a baixos custos algumas das propriedades das pessoas que se cansaram de esperar.
Este ensaio procura rever e deixar registados os momentos mais significativos de um processo de organização popular, dentro da cidade de Lisboa, entre 2016 e 2023. Um processo que procurou encontrar outras formas de produzir cidade e o seu confronto com a estrutura do Estado/Município e a forma como entende a construção de cidade – além dos discursos sobre “participação” e “envolvimento das populações”.
Neste ensaio, não se procura defender uma cultura basista e muito menos a ausência da participação do Estado e das autarquias nas principais decisões sobre a construção de cidade. Procura-se demonstrar que, não raras vezes, as formas de planeamento a partir das autarquias são movidas pela construção de oportunidades para grandes investidores obterem mais valias a partir da mercantilização dos espaços da cidade, em síntese, uma forma de desencadear processos de gentrificação, ainda que na maior parte das vezes não sejam racionalizados enquanto tal. Procura-se defender que o Estado, as autarquias e os seus técnicos, se deverão colocar ao lado das iniciativas de base local e não como avaliadores, juízes ou obstaculizadores.
Ao inscrever este processo nas práticas de construção da cidade de Lisboa da última década, não se pretende produzir um olhar melancólico sobre o que podia ter sido. Rever e registá-lo permite uma leitura para que se faça mais e melhor. Permite uma reflexão crítica sobre o que, no planeamento, nos vai sendo apresentado como inevitabilidade. Decisões que tantas vezes são apresentadas como escolhas técnicas, que mais não são do que a replicação de um ideário ideológico, repetitivo e uniformizador, indisponível para considerar outras formas de fazer cidade além do urbanismo austeritário (Mendes, 2017).
A ideia do fim da história (Fukuyama, 1992), e apesar da intensa recomposição a que a cidade de Lisboa tem vindo a ser sujeita neste início do séc. XXI, ainda está longe de se concretizar também no que respeita às políticas de cidade. Há mais movimentos e acções de base local que se constituem e as discussões sobre as questões urbanísticas têm mais visibilidade no espaço público. A esse fenómeno as estruturas do poder local reagem declarando o seu interesse em fazer processos participativos que, não raras vezes, acabam por não produzir qualquer efeito prático nos territórios. Os serviços técnicos e a burocracia são usados para triturar e alongar processos, de modo a que as populações vão perdendo a energia transformadora, ou a potentia. No entanto, esse potencial transformador só se esgota se for invisibilizado ou triturado na máquina da burocracia e do tempo. A disputa pelo direito à cidade (Lefebvre, 1968) e pelo direito ao lugar na Quinta do Ferro permanecerá sempre em aberto. Entende-se que o registo detalhado deste processo, designadamente, na relação entre a associação de base local e a autarquia pode constituir uma importante base de análise e trabalho futuro para processos congéneres e também para o processo que continuará a decorrer.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Cidades: Comunidades e Territórios, disponível neste endereço, tendo sido aqui reproduzido ao abrigo da licença CC BY-NC-ND 4.0.
Bibliografia
Featherstone, L. (2017). Divining Desire – Focus Groups and the Culture of Consultation. OR Books.
Fukuyama, F. (1992). The End of History and the Last Man. Free Press.
Lefebvre, H. (1968). O Direito à Cidade. Letra Livre
Mendes, L. (2017). Gentrificação turística em Lisboa: neoliberalismo, financeirização e urbanismo
austeritário em tempos de pós-crise capitalista 2008-2009. Cadernos Metrópole, 19 (39), pp.479-512.
Nunes, R. (2021). Neither Vertical nor Horizontal – A Theory of Political Organization. Verso Books.
Vilaça, Í., Constante, P. (org.) (2015). Usina: entre o Projeto e o Canteiro. Edições Aurora.
- Nos termos do ponto 1 do Artº 59 do Regulamento do PDM de Lisboa ↩︎
- O ateliermob apresenta-se desta forma: “Plataforma multidisciplinar de desenvolvimento de ideias, investigação e projectos nas áreas da arquitectura, cidade e território. A sociedade por quotas foi constituída em 2005, em Lisboa, como consequência de vários trabalhos realizados em conjunto pelos seus sócios fundadores. Actualmente, a sociedade é constituída por dois sócios, Andreia Salavessa e Tiago Mota Saraiva, e uma equipa de cerca de uma dezena de profissionais qualificados associando-se, sempre que necessário, a outras entidades e técnicos de modo a enriquecer e alargar o espectro multidisciplinar dos seus serviços.” ↩︎
- Trabalhar com os 99% apresenta-se desta forma: “Cooperativa de arquitectura de intervenção, desenvolvimento de processos participativos e cooperativos, de desenho e produção de políticas públicas e de desenvolvimento estratégico. Constituída em 2016, na sequência de diversos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos no seio do ateliermob, é uma organização sem fins
lucrativos constituída por pessoas e organizações. Faz parte da rede europeia ReKreators, da DLBC Lisboa e do Placemaking Europe, tendo participado activamente na discussão em torno da criação da Agenda Urbana Europeia – Pacto de Amesterdão (2016) e da Lei de Bases da Habitação (2019).” ↩︎ - Criado em 2011 pelo Município de Lisboa, o Programa BIP/ZIP – Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa é um instrumento de política pública municipal com o objectivo de dinamizar parcerias e pequenas intervenções locais de melhoria dos bairros abrangidos, através do apoio a projetos levados a cabo por juntas de freguesia, associações locais, coletividades e organizações não-governamentais. ↩︎
- Esta é uma prática recorrente da TC99%, nos territórios e com as instituições com que trabalha, de modo a garantir formas mais transparentes de acção e envolvimento mas também a promover o empoderamento, responsabilização e o desenvolvimento de estratégias de co-governação e democracia, também, no seu seio. ↩︎
- Referência CML: ENT/982 /GVPM/CML/19 ↩︎
- Referência CML: ENT/841/GVRV/CML/2020 ↩︎
- Referência CML: OF/249/GVRV/CML/21 ↩︎
- Este trabalho tem vindo a ser realizado no âmbito do programa de financiamento de Projetos Inovadores e/ou Experimentais na Área Social (PIEAS) do Fundo Social Europeu ↩︎
- A MAXIRENT é um fundo de investimento imobiliário fechado inscrito na CMVM. Em 2021, várias notícias atribuíam a sua propriedade ao magnata francês Pierre Castel escrevendo-se que o fundo estaria sediado em Singapura e que seria detentor de vários imóveis em Portugal. ↩︎
- Nos termos descritos pela Câmara Municipal de Lisboa um GABIP é uma “estrutura de iniciativa municipal, de gestão e coordenação local, para desenvolver processos de co-governação em um ou mais Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa, com a vista à promoção da coesão sócio-territorial deste(s) território(s) e comunidade(s) na cidade, através da implementação de Estratégia de Desenvolvimento Local para os territórios prioritários abrangidos. O modelo GABIP deve constituir-se como uma matriz flexível para que cada território possa ter o GABIP melhor adaptado às suas características e podendo o seu modelo ser ajustado a todo o tempo, de acordo com a evolução do contexto da coesão sócio-territorial. Podem ser parceiros do GABIP, além dos vários serviços municipais, todas as entidades do sector público e privado, formalmente constituídas, que tenham ou venham a ter alguma intervenção no território do GABIP, no âmbito do Desenvolvimento Local pretendido.” ↩︎
- “Novos Tempos” foi o nome da coligação eleitoral entre PPD/PSD, CDS-PP, PPM, MPT e Aliança que se constituiu para concorrer à Câmara Municipal de Lisboa nas eleições autárquicas de 2021 e que acabou por obter a maioria dos votos e eleger Carlos Moedas como novo Presidente. Em Fevereiro de 2022 o termo foi inclusivamente registado como marca, não por um dos partidos ou coligação, mas pelo próprio Carlos Moedas. ↩︎
- Referência CMLisboa: Proposta 511/2023 conforme constante na Acta em Minuta da Reunião da Câmara Municipal de Lisboa de 13 de Setembro de 2023. ↩︎