A nossa cidade não protege os peões. E, infelizmente, também não protege os automobilistas. Ninguém está seguro enquanto a Câmara Municipal não se comprometer com a acalmia de tráfego.
Não há maneira fácil de dizer isto. Morreu uma pessoa à minha porta. Foi terrível perceber que, no meio do barulho do trânsito, das motas, das buzinas, dos aviões de Entrecampos, em Lisboa, quase nem reparávamos nesta tragédia, mesmo em frente à nossa casa.
Esta pessoa morreu não por azar; não por “culpa” sua; e, por mais difícil que isto seja, não morreu por nenhuma razão extraordinária. Infelizmente, a vítima morreu por uma causa injustificadamente, incompreensivelmente banal. Morreu atropelada por um carro que, segundo as testemunhas, vinha a alta velocidade da rotunda de Entrecampos e subindo pela Avenida das Forças Armadas, com os semáforos a fechar.
Eu vivo nesta zona há tempo suficiente para poder dizer que acidentes de carro são demasiado frequentes. Investiguei e descobri que a Av. das Forças Armadas é uma das avenidas mais letais em termos de atropelamentos, de acordo com a Prevenção Rodoviária Portuguesa. Eu e vizinhos meus fizemos medições com um sensor Telraam e descobrimos que diariamente passam mais de 1000 carros, em média, acima de 70km/h nesta avenida. (Acima de 70km/h, um atropelamento é incontrolavelmente fatal, enquanto que a 30 km/h, nove em cada 10 pessoas sobrevivem. Nesta avenida, o limite é 50 km/h, como na maior parte de Lisboa.)
Não pudemos ficar indiferentes e desde 2022 que fomos fazer denúncias ao Executivo da Câmara Municipal de Lisboa, falámos com a Junta de Freguesia de Alvalade, na pessoa do (em breve) presidente Tomás Gonçalves; apresentámos uma petição com mais de 400 assinaturas à Assembleia Municipal de Lisboa (agora tem mais de 700) com propostas concretas; e até hoje, apesar de todas as palavras bonitas e de encorajamento de Carlos Moedas, Filipe Anacoreta Correia e Ângelo Pereira nada foi feito. Nada.
O mais irónico é que este atropelamento dá-se muito perto do grande edifício da Câmara no Campo Grande, em frente ao qual, em 2020, uma jovem de 16 anos foi atropelada. Apenas após essa trágica perda, a autarquia agiu e, pelo menos, instalou um radar. Será que agora vai agir em relação à Avenida das Forças Armadas e ao resto da zona de Entrecampos, e com algo mais que um simples radar? Teremos de esperar até à próxima campanha eleitoral?
Um problema destes pode ser drasticamente reduzido por medidas simples como a instalação de uma lomba, de um passeio sobrelevado, de um radar, da criação de mais uma passadeira para que não se tenha de andar 500 metros para atravessar uma rua. Se a lamentação de que a segurança rodoviária é um problema sistémico ou “complexo” for apenas mais uma desculpa para não se fazer nada, então estamos simplesmente a ser complacentes com estas mortes. Instalar uma lomba não põe em causa um plano a longo prazo para termos menos carros na cidade ou para termos um desenho urbano mais ajustado à nossa realidade.
Não vamos mais lamentar estas mortes como fruto de imprudência esporádica. Uma boa cidade faz com que a imprudência não seja a regra. Quem mora numa cidade, independentemente do bairro, sabe isto.
Este é um problema de todos aqueles que se preocupam com o que a política pode fazer para defender a dignidade da vida humana. Eu ainda não perdi a esperança de que a acção dos cidadãos possa fazer a diferença. Agora, a Câmara Municipal de Lisboa tem de nos dar mais razões para isso; tem de se responsabilizar perante esta tragédia e fazer qualquer coisa.
P.S.: Este texto foi escrito poucos minutos depois da morte da vítima. No momento que escrevo este post-scriptum, passaram 48 horas desde o atropelamento mortal. Depois de escrever este texto – e depois de esta morte ter sido noticiada na televisão e imprensa escrita –, surgiram reações de todos os tipos, algumas inaceitáveis. A ideia de que esta morte não merece atenção, e que não diz nada sobre os defeitos da nossa cidade, ganhou muita tracção com a narrativa que conta que “a vítima era um sem-abrigo alcoolizado que atravessou fora da passadeira”, como se formulou numa peça televisiva.
Temos de ir por partes. Em primeiro lugar, as várias testemunhas no local com quem falei disseram que a vítima atravessou na passadeira e foi projectada pelo carro. A vítima tinha uma grande estatura física e mesmo assim “voou” largos metros, segundo as testemunhas oculares, na esplanada Cinderela, mesmo em frente à passadeira em causa. A ideia que atravessou fora da passadeira é injusta e imprecisa (hipoteticamente, de quantos metros fora da passadeira estamos a falar?). O corpo, estava no meio do cruzamento.
Segundo, categorizar alguém como sem-abrigo é um processo de desumanização inaceitável. Em primeiro lugar, a vítima é uma pessoa. Se é sem-abrigo, a sua vida conta menos do que outras? Este tipo de morte era expectável para uma pessoa como esta? Rico ou pobre, não interessa: diante da morte e da fragilidade, não somos seguramente diferentes.
Terceiro, a vítima estava alcoolizada. Isto pode ser relevante para questões jurídicas. Não o é para questões de segurança e urbanismo. Todos os dias, sobretudo no período académico, os estudantes preenchem o passeio à frente da Cinderela e muitos têm de circular pela estrada. Muitos destes estudantes ocupam a sua noite a beber. Se a vítima fosse uma estudante atropelada (possivelmente, a sua filha, irmã, sobrinha ou amiga) isto faria diferença no final do dia? Merecia a morte? Teria culpa no atropelamento? Temos de ter cuidado com este processos de culpabilização indevida que nos tornam incapazes de sentir a empatia mais básica.
Foram-me chegando vários testemunhos de pessoas mais e menos próximas que foram atropeladas a semana passada ou há décadas. Em comum têm a mesma queixa: a nossa cidade não protege os peões. E, infelizmente, também não protege os automobilistas. Ninguém está seguro enquanto a Câmara Municipal não se comprometer com a acalmia de tráfego.
Eu não compreendo como é que os decisores políticos não aproveitam esta ocasião para mostrar responsabilidade e serviço. Se os decisores da Câmara não fizerem nada, serão como aqueles senhores que deixaram, uma vez e outra, a morte sair à rua.