Este artigo não tem paywall.

Os nossos assinantes tornam possível que este artigo esteja acessível a todos.

No Talude vê-se o Tejo e os destroços de uma crise da habitação

No bairro do Talude Militar, em Loures, dezenas de pessoas viram as suas casas demolidas, sem alternativa imediata. A Câmara diz que agiu por questões de legalidade e dignidade humana, garantindo que não deixou ninguém para trás. Mas os moradores e o movimento Vida Justa contam outra história. Certo é que a crise da habitação continua a empurrar pessoas para situações precárias – e a resposta institucional parece, muitas vezes, resumir-se ao despejo.

No bairro do Talude Militar, em Loures, dezenas de pessoas viram as suas casas demolidas, sem alternativa imediata. A Câmara diz que agiu por questões de legalidade e dignidade humana, garantindo que não deixou ninguém para trás. Mas os moradores e o movimento Vida Justa contam outra história. Certo é que a crise da habitação continua a empurrar pessoas para situações precárias – e a resposta institucional parece, muitas vezes, resumir-se ao despejo.

Uma das barracas que escapou às demolições (fotografia LPP)

Lá ao fundo vemos o Tejo, a Ponte Vasco da Gama e o palco de quase cinco milhões de euros que acolheu o Papa Francisco em 2023. Estamos no topo do bairro do Talude Militar, na antiga freguesia de Unhos, concelho de Loures. Um bairro de construções precárias que foram erguidas ao longo de anos. Algumas são casas mais firmes, de tijolo, com décadas; outras são barracas de madeira e metal, com diferentes idades – de alguns meses a vários anos.

A crise da habitação tem levado, em particular nos últimos meses, ao aumento do número de auto-construções precárias na área metropolitana de Lisboa e, em particular, naquele local. Não indiferente a essa situação, a Câmara de Loures, liderada por Ricardo Leão (PS), tem agido com sucessivas demolições. Contudo, as realizadas na segunda-feira 14 de Julho, ganharam particular atenção mediática: foram deitadas abaixo cerca de 60 habitações precárias, com um pré-aviso de 48 horas e sem acautelar alternativas imediatas para as famílias que ali residiam. Sem essas soluções, muitas pessoas viram-se sem teto de um dia para o outro, e com a possibilidade de dormir ao relento.

Engels Amaral é um dos residente do Talude Militar e, desde Setembro, membro do movimento Vida Justa. Juntou-se porque reconhece que a Vida Justa “tem feito um trabalho excepcional” na visibilização dos problemas das periferias urbanas. A sua casa, onde mora com a mulher e um filho pequeno, não foi afectada pelas demolições. Mas Engels fala connosco em solidariedade com os vizinhos. “O que aconteceu nessa segunda-feira é a repetição de algo que já aconteceu mais ou menos há três semanas. A Câmara de Loures veio, fixou editais num determinado número de casas e procedeu à demolição”, explica. “Afixaram o edital na sexta-feira, por volta das 18h30, 19 horas. E na segunda-feira, logo às 8, estavam aqui a proceder às demolições. Deram 48 horas ao moradores para esvaziar as construções de bens e pessoas, e não deram margem para as pessoas encontrarem uma outra solução. Sabemos que num fim-de-semana não há forma de conseguirem procurar alternativas.”

Engles Amaral é residente do Talude e representa a Vida Justa (fotografia LPP)

No Talude Militar, há construções com diferentes materiais, histórias e idades. Foram as mais recentes – com “seis a nove meses, algo do género” – a ser demolidas. Parece existir um duplo critério: umas barracas ficam, outras, não. “Não consigo explicar qual é o critério que a Câmara utiliza, mas eles dizem que não querem que isto prolifere, não querem que aumente as condições abarracadas”, afirma Engels. A Vida Justa, explica, “não é a favor de construções abarracadas, mas também não é a favor que as pessoas sejam tratadas dessa forma que são tratadas”, com pré-avisos curtos que deixam as pessoas sem alternativa. E sem tecto. “De segunda-feira para hoje, as pessoas estão a dormir ao relento ou debaixo de chapas. Isso é altamente triste e desumano. Tem crianças aqui no bairro”, denuncia.

As demolições

As demolições no Talude não começaram agora. A 30 de Junho – portanto, há três semanas –, a autarquia já tinha removido as barracas de 36 famílias neste bairro, “deixando-as sem qualquer solução”, denuncia num comunicado a Vida Justa. Nessa altura, como agora em Julho, a Câmara de Loures notificou os moradores a um sexta-feira ao final do dia, afixando editais nas suas portas, para a demolição das suas habitações na segunda-feira de manhã, dando, assim, um prazo de apenas 48 horas para desocuparem os espaços.

No dia 14 de Julho, a demolição abrangeu 51 das 64 barracas previstas (outras quatro foram demolidas na manhã do dia seguinte, totalizando-se um total de 55 demolições). Duas retroescavadoras apareceram bem chego pela manhã no terreno – uma para demolir e outra para recolher o entulho. A polícia veio com ela. Segundo a Lusa, que esteve no local, os trabalhos ordenados pela autarquia arrancaram depois de agentes da PSP terem dispersado à força os moradores que tentavam travar a operação. Foi necessário um reforço policial com a presença da Equipa de Intervenção Rápida (EIR) da PSP, que utilizou bastões para afastar os residentes mais persistentes das suas habitações. O ambiente de tensão entre moradores e forças policiais foi constante naquela manhã de segunda-feira, relata a Lusa. Já ao início da tarde, as demolições prosseguiram num cenário mais calmo, com os habitantes a retirar os seus pertences.

No entanto, alguns moradores, em vez de resistir, foram optando por desmontar eles próprios as estruturas de chapa e madeira, para reaproveitamento. A Polícia Municipal de Loures também esteve no local. A Lusa diz que a operação chegou, em certos momentos, a ser acompanhada por um drone da PSP.

Uma máquina demolui uma barraca no bairro do Talude, 14 de Julho (fotografia Tiago Petinga/Lusa)

Os trabalhos avançaram nessa segunda e também na manhã da terça-feira seguinte, dia 15. Foram suspensos às 12 horas. O motivo: uma providência cautelar que tinha sido interposta no domingo e que foi, entretanto, aceite pelo tribunal. “A providência cautelar abrange todas as construções e impede qualquer acto de demolição. Não especifica se é a casa número X ou Y. Ela pede a suspensão de todo e qualquer acto de demolição por parte da Câmara de Loures”, esclarece Engles. Basicamente, a providência cautelar “impugna o despacho da Câmara”, os tais editais que permitiam, em 48 horas, as demolições “sem a possibilidade de as pessoas poderem responder”. “A Câmara tem 10 dias para responder”, diz Engles – prazo que estará a terminar por agora.

A Vida Justa diz que a Câmara soube da providência cautelar e que apressou a demolições no dia 14, “para as fazer antes de ser notificada pelo tribunal”, denuncia o movimento através de um comunicado. “Mesmo assim, após a citação do tribunal às 9 da manhã do dia 15 de Julho, as demolições prosseguiram até às 12 horas”. Além desta providência cautelar geral, há cinco habitações que já estavam protegidas por providências cautelares próprias – daí que não tenham sido logo poupadas pelas restroescavadoras.

Uma das casas protegidas pela providência cautelar (fotografia LPP)

Hoje é quarta-feira 16 de Julho. O terreno do Talude está repleto de destroços: chapas metálicas, barrotes de madeira, contraplacados e outros restos do que antes eram as paredes, tectos e portas de mais de meia centena de pessoas. Vemos colchões empilhados, sofás rotos, cadeiras velhas, electrodomésticos e tudo o que se encontrava dentro das casas.

”Uma guerra fria”

Não há sinais de retroescavadoras nem de polícia. E são poucos também os moradores que arriscam levar com o calor intenso de um dia que promete (e está com) temperaturas superiores a 30 ºC. Muitos estão abrigados numa das poucas árvores que existem nas redondezas – um sobreiro debaixo do qual acabam de almoçar e tentam manter frescas as garrafas de água. É aqui que nos cruzamos com Ferreira, 50 anos. Desconfiado ao início, à medida que vamos conversando essas dúvidas dissipam-se.

É são-tomense, veio para Portugal há um ano “sozinho” e reside, como outros são-tomenses, no Talude Militar “há seis meses”. Antes, vivia numa casa “mesmo em Lisboa, nas Laranjeiras”, conta-nos. Era um “colega” que alugava um quarto, mas entretanto a família dele veio para Portugal e o espaço tornou-se pequena para tantos. Trabalha na construção civil, mas não tem um trabalho estável. Está a “enviar uns currículos para empresas” e a aproveitar os “biscates” que lhe aparecem porque “tem que se comer, tem que se sustentar, tem que fazer qualquer coisa”.

Sem rendimento seguro, Ferreira não quis correr risco de ser despejado de um momento para o outro. Conheceu o Talude através de amigos, que lhe explicaram “como era a situação aqui”. “Fiz uma barraca e estava bem”, relata. Sabia que “a qualquer momento” poderia ter uma “surpresa”. “Todos nós estávamos preparados”, refere, argumentando, no entanto, que a situação irregular poderia ser resolvida “reunindo, conversando e dando tempo para cada um de nós resolver”. “Não é da forma que eles agiram. Imagina só: colocaram o papel às 20h numa sexta-feira, para segunda-feira, às 8h, despejar. Como é que a gente vai ter tempo de arranjar casa?”, diz. “Gostaria que o Presidente de Câmara, ou seja quem for, tivesse vindo reunir conosco” e dado um prazo para sairmos, que, admite, poderia ser de “seis meses”. Nesse tempo, cada parte tentaria uma solução.

Para o são-tomense, essa solução poderia passar por “pagar uma renda” à autarquia que daria a ele e aos outros ocupantes do Talude “uma planta para fazer a barraca de um só estilo, de uma só forma”. Isto porque, na sua perspectiva, apesar da precariedade da situação, é melhor viver numa casa auto-construída do que ao relento, “debaixo da ponte”.

Ferreira mostra-nos os destroços da sua barraca. Parte dos seus pertences estão agora “ao sol”, mas o são-tomense tentou reerguer dentro do possível a tenda só para não dormir sem tecto. Tem consigo alguns móveis que diz que arranjou de obras de remodelação onde trabalhou e que iriam para o lixo, assim como um microondas, uma geleia, um fogão a gás, mantas e outros pertences corriqueiros. Há restos de comida junto ao espaço e um leite que ameaça estragar-se com o calor. Tem electricidade que arranjar de uma puxada qualquer; e a água é “que é um bocado difícil aqui para nós”, mas vai chegando em garrafões de cinco litros ou barris um pouco maiores.

Ao lado da tenda de Ferreira, encontramos a de Wylber, 49 anos, também são-tomense. Está em Portugal também há um ano e no Talude também há seis meses. A sua barraca, onde vivia sozinho, conseguiu escapar às demolições. Dormem nela agora sete pessoas – contando com seis vizinhos que Wylber acolheu para não ficarem sem tecto. Antes do Talude, Wylber morava “numa casa” em Catujal, a aldeia mais próxima. “Só que a casa onde eu morava com minha irmã… lá tem ela com o seu marido, com umas quatro filhas dela, e com um filho com três netos”, conta. São muitas pessoas, “então, eu vi esse espaço aqui”.

A razão para estar numa barraca e não a pagar uma renda é semelhante à do vizinho. Ganha o salário mínimo mas dos 870 euros só fica com 370 porque dá à irmã “300 euros para ajudar a pagar a casa e comprar comida” e à mulher, que está em São Tomé e Príncipe com as duas filhas, “200 euros”. Diz que não chegou “ainda” a concorrer a uma ajuda da Câmara de Loures porque a percepção que existe, das outras demolições já realizadas no Talude, é que “não resolvem nada”. “A pessoa lá (Casa da Cultura de Sacavém) vai dizer que é para procurar uma casa de 300 ou 400 euros para a Câmara pagar. Agora, a casa aqui, quando é uma família, de 1 200 a 1 800 euros. Se a gente ganha 870, como é que vai pagar uma casa de 1 800?”, pergunta o imigrante.

A habitação de Wylber escapou às demolições (fotografia LPP)

“A gente deixa grandes condições lá no nosso país por forma de procurar o melhor, para ficar a viver nessas condições e ter o Estado português ainda fazer uma guerra fria connosco. Porque isto é uma guerra fria”, salienta.

Wylber diz que é “neto de portugueses” e está em Portugal a “tratar de documento” para pedir nacionalidade portuguesa para si e para os seus. “O meu avô trabalhava no banco aqui em Portugal, que é português. O meu outro avô foi tenente-coronel naquela altura aqui. Tem todos esses documentos comigo. Então, eu estou tratando os documentos para minhas crianças, por essa razão que estou aqui”, explica, referindo que a nacionalidade portuguesa “é uma obrigação de eu ter e dar aos meus filhos, porque é praticamente uma herança. Uma herança que meus avós deixaram”.

Um bairro com mais de 30 anos

O bairro do Talude Militar não é muito grande. Desenvolve-se originalmente numa extensão de quilómetro e meio, acompanhando uma secção da Estrada Militar – uma antiga estrada que interligava vários fortes e outros dispositivos de defesa da capital. Do Talude, avistamos o Tejo, mas também condomínios com vista de rio no lado de Sacavém. Aqui perto é um espaço de precariedade.

Os habitantes são imigrantes. Homens, mulheres, crianças. Trabalhadores na construção civil ou trabalhadores nas limpezas, essencialmente. Ou ganham o salário mínimo ou saltam de biscate em biscate, com rendimentos instáveis que não lhes permitem arrendar uma casa. Às vezes, nem é por não conseguirem pagar uma renda mensal, mas porque à cabeça é-lhes pedido uma caução correspondente a duas rendas, ou porque o senhorio não quer alugar a quem não tenha um contrato estável de trabalho. Ou por racismo.

A Estrada Militar acompanha as casas mais antigas do Talude (fotografia LPP)

“Mesmo que tenha como pagar uma renda, não consegue aceder ao mercado de arrendamento”, aponta Engels. “E depois o valor médio do preço de renda no mercado está muito acima daquilo que é o salário mínimo. E nós sabemos que a maioria dos imigrantes trabalham e recebem um salário mínimo.”

A alternativa é entre ficar na rua ou construir a sua própria habitação. As pessoas não querem viver numa situação precária. Mas sentem-se sem chão. Como veremos mais adiante, a Câmara de Loures propôs a todos o habitantes do Talude uma alternativa que, explica Engles, “não serve”. Porquê? “Porque são orientados a procurar uma casa em que a Câmara paga um mês de renda e a caução, mas o tecto máximo são 400 euros. E nós sabemos qual é a realidade em Portugal hoje em dia em relação ao mercado de habitação….”

As casas do Talude estão todas – as de tijolo e as abarracadas – marcadas com números pintados a spray, uma tarefa levada a cabo por técnicos sociais, segundo nos dizem. A Câmara de Loures deverá saber ao certo quantas habitações e famílias ali vivem – todas têm um número atribuído. “Sabem quantas casas estão aqui, sabem qual é a composição do agregado familiar. Eles vêm aqui, recolhem dados das pessoas e numeram, identificam as casas”, sublinha Engles Amaral.

O Talude Militar não é um bairro novo. Tem mais de 30 anos. Está identificado desde o Plano Especial de Realojamento (PER), de 1993. A construção foi iniciada nos finais da década de 1970, indica uma tese de mestrado de 2011 da arquitecta e socióloga Joana Pestana Lages. O surgimento do bairro, precário na sua génese, “coincide com a primeira vaga de imigrantes vindos de Cabo Verde, ainda antes da Revolução de Abril”, escreve Lages, explicando que “estes imigrantes vinham sobretudo colmatar a falta de mão-de-obra pouco especializada desfalcada pela guerra colonial, no domínio das obras públicas”.

Na tese de Joana Pestana Lages, de 2011, era indicada a existência de 148 casas e de uma população residente de cerca de 550 pessoas. A investigadora citava dados de um levantamento exaustivo, feito casa a casa alguns anos antes, em 2007, pela AMRT – Associação de Melhoramentos e Recreativo do Talude. Nesse estudo, verificou-se que mais de 90% dos residentes eram naturais de Cabo Verde, sendo que metade tinha nacionalidade portuguesa por descendência ou naturalização. A maioria dos agregados familiares era de três membros, e um terço da população residente tinha menos de 18 anos.

Como hoje, eram pessoas com baixos níveis de escolaridade, empurrados para trabalhos menos qualificados. Da população que podia ser activa, a maioria trabalhava. Em 2007, quando o Salário Mínimo Nacional era de apenas 403 €, era esse o valor que em 28% das famílias se recebia; em 36,6% das casas entrava entre 403 e 600 €. Uma minoria recebia mais.

Talude Militar (fotografia LPP)

Estes são padrões que parecem manter-se ainda hoje. Mas hoje as casas precárias são muito mais. Só mais de 150 surgiram nos últimos meses, indica a Câmara de Loures. Trata-se de uma nova geração de habitações precárias. São de moradores de São Tomé e Príncipe que se vêm juntar aos residentes de Cabo Verde. Pessoas também pouco qualificadas que não conseguem aceder a trabalhos que dêem estabilidade, colocando em causa o seu acesso à habitação. Deste contexto, resultam habitações altamente precárias e ilegais, onde o direito à habitação choca com outras legislações.

Joana Pestana Lajes escreve-o melhor: “O Direito à Habitação, consagrado como direito fundamental na Constituição Portuguesa de 1976 é uma condição essencial para o exercício de uma cidadania plena. A construção de habitat próprio, quando acontece para além das normas e regulamentos, configura um acto ilegal mas ao mesmo tempo faz acontecer um Direito Fundamental que o Estado tarda em satisfazer.” Noutras páginas da sua tese, a investigadora acrescenta: “Do equilíbrio frágil entre a Constituição que legitima o acesso à habitação condigna e os largos milhares que esperam pela efectivação desse direito, nascem tensões, desejos e resignações.”

No calor, a vida continua

Voltamos ao presente. Voltamos ao bairro.

É num calor abrasador de um terreno sem sombra que, enquanto conversamos com Ferreira e Wylber, vemos um carro a chegar. Três ou quatro crianças ajudam a transportar garrafões cheios de água. É assim que ela chega ao bairro. Colocam-nos à frente de uma casa que, por estar protegida por uma providência cautelar, resistiu às demolições. “AQUI MORA GENTE”, pode ler-se num papel afixado na porta, com quatro nomes e idades: “Daywilda Novais (25 anos)”, “Rosalina Novais (4 anos)”, “Widiynadi Novais (8 anos)”, “Leonardo Sacramento (29 anos)”. É uma das cinco habitações que, segundo Engels, está individualmente protegida com uma providência cautelar.

Há edificações que foram poupadas. Ou por estarem com travões judiciais. Ou por serem mais antigas. É o caso da barraca de Jecira, 32 anos. Vive “há seis anos” no Talude, e é mãe de três crianças, uma de 12, uma de quatro e um bebé de um ano e dois meses. Não trabalha desde que teve filhos, dependendo do rendimento do marido, que trabalha construção civil – “É deficiente na perna. Ele tem ferro na perna. Às vezes, a perna dói bastante. Então, ele nem vai pra trabalho”. Jecira diz-se “mãe doméstica” e também “mãe-guerreira”. Sente-se na voz. “Estou aqui mesmo nessa guerra há já seis anos, nunca tive uma solução. Nunca tive ajuda de nada. Nunca recebi uma habitação.”

Lecira (fotografia LPP

Mas na nossa presença, Jecira deixa-se ir abaixo, a voz quebra e há lágrimas que lhe escapam. “Eu vivo aqui, mas… É muito doloroso mesmo. Muito doloroso, mas pronto. É vida, a gente faz o quê? É vida”, diz, enquanto tenta recompor-se. E sublinha: “Eu não vou chorar na frente delas, depois vai falar na escola para a professora, aí fica mais complicado. Eu sou uma mãe guerreira, que gosta de ter posição na minha vida, mas eu sofro dentro de mim. Porque tenho que sofrer dentro de mim, não posso sofrer e chorar à frente da minha criança.”

Resignada a sobreviver numa habitação precária, onde só entra o rendimento do marido (Jecira diz que não trabalha desde que teve filhos e que, além disso “não estão a dar trabalho. Nunca tive sorte com um contrato efectivo, nem de um ano, nunca tive”), diz-nos assustada com o que podem fazer à sua casa. “Eu estou com muito medo, mesmo, muito medo”, desabafa.

Conta que “assiste ao Telejornal, às vossas reportagens” e “‘tá todo o mundo a falar”, que o tema do Talude “mexeu com muitos deputados” e “mexeu com o André Ventura”, de quem “a população não gosta”. Tem medo de poder ser despejada também e essa ansiedade do “nunca se sabe” inquieta. “A gente não esperava essa vida, né? A gente não quis vir para aqui, ninguém vai querer viver nessa situação.”

Jecira resume numa frase a realidade que marca a vida de muitas mulheres da sua comunidade: “nós somos mães aqui”. É com esse plural que fala de si e das outras – mulheres sem ou com poucos estudos, que trabalham sobretudo na limpeza. Quando conseguem trabalho, enfrentam a precariedade: promessas de contratos que nunca chegam, exploração, informalidade. “É sorte de cada um, há quem consegue um contrato de um ano, há quem não consegue. Eu fiquei assim, sem sorte, sem trabalho, nada de contrato.”

Por realojar desde o PER

Apesar de o bairro ter sido inserido no PER, a “maioria dos seus habitantes” continuava, em 2011, por realojar, sublinhava Lages. Até essa altura, indicava-se que “foram realojadas 70 famílias, 15 através do PER Famílias e as restantes ao abrigo do PER em bairros sociais do concelho de Loures em regime de renda apoiada”, pode ler-se na tese de Joana Pestana Lages.

Por outro lado, o Talude Militar não pôde ser legalizado através das chamadas Áreas Urbanas de Génese Ilegal, ou AUGI, uma vez que foi erguido em terreno privado e não em solo que legalmente não pertence aos seus ocupantes. A complicar a legalização do bairro, está também a questão de as construções estarem situadas em declives acentuados e/ou em terrenos sem estabilidade geológica, conforme destaca Joana Pestana Lages na já citada dissertação. Por isso, em 2011, a autarquia de Loures, então liderada pelo PCP, tinha, através do Serviço Municipal de Protecção Civil, um um “plano de emergência para o local”. Considerava o Talude “um castelo de areia”, falando no “perigo” que “a instabilidade das vertentes do Talude Militar” representava “para todos aqueles que habitam nas improvisadas construções”.

“Dá-nos uma alternativa” (fotografia LPP)

Há 14 anos, as habitações do Talude eram sobretudo construções de tijolo ao longo da Estrada Militar. As “construções mais precárias, feitas em materiais variados como chapas metálicas e pranchas de madeiras”, eram abrigos, arrumos ou garagens. Mas, à boleia de nova imigração, o número de barracas feitas com chapas e barrotes tem crescido – construções que deixaram de servir apenas para guardar objetos e passaram a ser usadas como habitação. O bairro alargou-se, assim, da linha da Estrada Militar para o interior do planalto, ocupando terrenos onde estão instalados postes de alta tensão e que costumavam ser utilizados apenas para agricultura – uma forma de garantir um complemento ao rendimento e de produzir alimentos para autoconsumo.

Hoje, como há décadas atrás, o acesso ao bairro continua a ser feito por estradas não pavimentadas. Os edifícios de tijolo têm água e electricidade contratadas, assim como recolha de lixo, mas nas barracas entretanto erguidas (e reerguidas) não há estas comodidades nem saneamento básico. Em 2011, as habitações de tijolo partilhavam uma fossa séptica para saneamento. Situação que se manterá.

Joana Pestana Lages escrevia, na altura:

“Todos os habitantes referiram que a produção do seu habitat decorreu da necessidade básica de alojamento, face à impossibilidade de acesso ao mercado legal de oferta habitacional. Na autoconstrução, por norma, o acto de construir assenta numa rede de solidariedade (familiares e conterrâneos). Neste caso, dado que uma parte significativa dos homens trabalha ou trabalhou na construção civil um certo know-how foi elemento facilitador. Inicia-se a construção pela abertura de caboucos, seguida da construção da estrutura, deixando para mais tarde os acabamentos exteriores e interiores.”

São frases que se mantém actuais.

A tarde já vai longa

No Talude estamos a poucos minutos de Lisboa, mas a envolvente do bairro é calma e rural. Chegar ao autocarro implica descer mais de uma centena de degraus e apanhar uma das várias linhas da Carris Metropolitana que não levam até Sacavém, ao Oriente ou ao Campo Grande em pouco tempo. É desta forma que a população vai trabalhar. E foi dessa forma que chegámos ao bairro.

Poucos são os automóveis que se vêem no bairro. O Talude é essencialmente residencial. Há um ou dois cafés, e a AMRT, que nasceu em 1993 para gerir o abastecimento de água colectivo mas que hoje, mais que uma associação de moradores, assume-se como um pólo cultural e recreativo. Tem sede desde 2000, onde são realizadas várias actividades. Estava fechada neste dia 16, pelo que uma visita e uma conversa com o seu Presidente, Rolando Borges, ficou para outro dia.

Do lado direito, o edifício-sede da AMRT (fotografia LPP)

O sol vai alterando-se ao longo da tarde. Menos intenso agora que passa das 16. Já está menos calor. Crianças usam a água que chegou ao início da tarde para lavar a loiça enquanto se vão distraindo umas com as outras. Nem todas vivem ali, mas querem passar tempo com os amigos.

Ferreira tenta dar um jeito ao que resta da sua barraca, rearrumando os móveis e tornando o espaço mais arejado. Outros moradores tentam fazer o mesmo: reerguer dentro dos possíveis as suas barracas para, pelo menos, terem sombra de dia e alguma protecção à noite. É debaixo de um desses tectos que agora estão quatro famílias com várias crianças. Há uma panela em cima de um fogão a gás. “É para fazer uma feijoada”, conta-nos uma senhora, que está no Talude há quatro meses. Em redor dela, reúnem-se diferentes gerações. Há uma certa descontração. Alguns jornalistas vão fazendo perguntas e conversa de circunstância, tentando fotos e arriscando directos para a televisão. O bairro tem estado nas notícias e isso cansa também os moradores.

Uma panela de feijoada (fotografia LPP)

Noutro lado, montam-se tendas para passar a noite. Foram oferecidas por voluntários, que se têm mobilizado nas redes sociais. Não só tendas foram chegando ao Talude nos últimos dias. “Graças à campanha lançada pela Vida Justa nas redes sociais, temos conseguido angariar bens alimentares, tendas e outros recursos, de forma a permitir que essas pessoas tivessem o mínimo de dignidade possível”, explica Engels, que tem estado a orientar as ofertas.

Enquanto conversamos pelo bairro, eis que, de repente, dois amigos surgem no horizonte, em passo acelerado. Carregam dois sacos cheios de comida e água. A eles junta-se Marlene, residente, que também tem organizado as doações.“Hoje vai ser de uma forma mais organizada”, diz aos jovens. “Ontem já vieram mais coisas ao final do dia, não foi?”, pergunta um dos amigos, que se chama Francisca. “Sim, sim. Apareceu alguma ajuda”, responde Marlene.

Francisca, 32 anos, e Diego, 23 anos, acompanham a são-tomense. Entram numa das habitações que resistiram às demolições. É uma barraca com um pequeno pátio, delimitado por catos altos e outras estruturas improvisadas que funcionam como uma espécie de vedação. Nele brincam crianças. Há aqui uma espécie de “ATL informal” – já detalharemos essa história. É também aqui que se guardam os mantimentos. “Dá-me aqui isso para não machucar ninguém”, pede Marlene. “Vou por aqui as coisas separadas, tá bem?”, diz Francisca.

Donativos a chegar ao Talude (fotografia LPP)

Francisca e Diego dizem que acompanham a Vida Justa pelas redes sociais e que costumam estar, “em geral”, envolvidos no “movimento social”. Não ficaram indiferentes às notícias dos últimos dias. “Foi espontâneo: trouxemos comida e conversámos. Conhecemos a Marlene também e outras pessoas aqui”, conta Francisca. “Ontem foi uma panela com feijoada”, hoje foram pães, águas e outros géneros alimentares. “Não trouxemos, esqueci-me, mas outras pessoas levaram tendas e lençóis”, relata. Para Francisca, tudo o que se tem passado é “um acto completamente desumano, estão a demolir casas de pessoas que estão aqui a fazer o seu melhor para resistir, porque não têm condições para pagar uma renda”. Diego, ao seu lado, concorda.

“Estamos de braços abertos para receber pessoas de boa fé que querem ser solidários connosco”, reforça Marlene.

As demolições no Talude

A demolição de barracas são comuns na região de Lisboa, com as autarquias a assumirem respostas habitacionais para as famílias antes de realizarem esses despejos. Mas isso não se tem passado em Loures, como tem denunciado o movimento Vida Justa. O artigo 13.º da Lei de Bases da Habitação obriga o Estado e as autarquias a terem alternativas habitacionais para as famílias cujas casas são demolidas e as pessoas despejadas.

A Vida Justa faz um calendário do que se tem passado no Talude.

De acordo com o movimento, as primeiras demolições aconteceram em Setembro de 2024 e, em Março deste ano, esse trabalho foi continuado com a marcação das casas por técnicos da Câmara de Loures. Oralmente, os fiscais da Câmara “justificaram este procedimento alegando que as casas se encontravam em terreno público sobre o qual não podia existir qualquer construção”. Assim, nos primeiros meses do ano, a Câmara fez “diversas operações de marcação das casas, tendo procedido à demolição com marretas e moto-serras de algumas dessas casas”. “Fê-lo sem afixação de editais, informando oralmente os moradores presentes (quando presentes) na hora da demolição”, segundo a Vida Justa.

Talude (fotografia LPP)

Nessa altura, os moradores recorreram ao tribunal, alegando a não existência de um procedimento administrativo que justificasse tais demolições. “O tribunal aceitou as providências cautelares e, mais tarde, julgou-as procedentes, intimando a autarquia à abstenção de qualquer acto de demolição.”

No dia 13 de Maio foi entregue nas instalações da Câmara de Loures uma carta, assinada por 109 moradores do Talude, a convidar o Executivo de Ricardo Leão para uma reunião, a fim de debater o processo de demolição em curso. “A carta foi ignorada pela autarquia”, de acordo com a Vida Justa.

O movimento argumenta que, para evitar confrontar-se com futuras providências cautelares, a Câmara de Loures agiu para impedir o recurso aos tribunais por parte dos moradores. “Passou a afixar editais na sexta-feira ao final do dia para proceder a demolições na segunda-feira seguinte, durante a manhã, sabendo que este procedimento eliminaria qualquer hipótese de recorrer à justiça. Assim o fez a 27 de Junho em 25 habitações e a 11 de Julho em 64 habitações.”

Após a afixação de um edital no dia 27 de Junho, os moradores conseguiram em menos de 48 horas pôr uma acção administrativa especial que suspende as demolições, tendo sido a Câmara informada de tal facto. “Mesmo assim, decidiu promover as demolições até a citação do tribunal. No dia 3 de Julho, é submetida nova providência cautelar pelos moradores do Talude, e, no dia 9 de Julho, o tribunal decreta que o Município fica absolutamente proibido de executar o acto de demolição”, descreve ainda o movimento Vida Justa.

Nas demolições de 30 de Junho e de 14 de Julho (que totalizam a demolição de 89 habitações e consequente despejo de 89 agregados familiares) não havia assistentes sociais no terreno, apenas fiscais da Câmara e forte presença policial, indica a Vida Justa. “Não foi feita a limpeza de entulho e armazenamento de pertences, deixando os moradores a dormir ao relento no meio de um lastro de destruição e insalubridade. Esta desresponsabilização pela limpeza de entulho e armazenamento de pertences, em Loures, também ocorreu nas demolições realizadas em 2024 nos bairros de Montemor e do Zambujal.”

Um ATL que é uma residência artística

É por meio de destroços que caminha Aurélie d’Incau, ou “Lili”, como se apresenta para ser mais fácil. Está a fazer com três colegas do colectivo Mais Uno +1 uma residência artística no Talude Militar. É o terceiro Verão em que o fazem. “É uma residência de pesquisa artística”, explica, o que significa que não estão lá para criar uma peça qualquer mas para trabalhar com a comunidade local.

O principal motivo por fazerem esta residência no Verão é porque as crianças não têm escola mas os pais trabalham e não podem cuidar delas durante o dia. “Estamos cá sempre no Verão, no tempo que as crianças estão de férias. E convidamos artistas que estão interessados nas questões das periferias para virem cá trabalhar com a comunidade”, conta Lili, que está com o colectivo há dois anos, mas é o primeiro ano em que está no Talude.

Lili (fotografia LPP)

Lili e as colegas do Maisuno +1 têm uma espécie de ATL no Talude onde fazem actividades com as crianças. Já pintaram murais ou criaram esculturas, mas têm também jogos de tabuleiro e, às vezes, “uma piscina pequenina que nós enchemos e fazemos assim uma diversão de brinquedos”. Perante um bairro destruído ou precário, a população tem outras prioridades, mas parece continuar a reconhecer valor na ocupação dos tempos livres dos mais novos. “Pensamos agora fazer mais actividades mais regulares para as crianças das famílias que perderam casa. Não só, mas também. Mas assim elas podem vir cá todos os dias, à mesma hora, quando os pais vão trabalhar”, explica Lili.

O ATL do Talude é uma das concretizações da residência artística da Maisuno +1.“Nós fazemos muitas residências e projectos em lugares na cidade que estão escondidos do olhar típico”, como é o caso das periferias urbanas. “A ideia é também descentralizar a produção e a consumação da arte e da cultura”, explica Lili. Uma residência artística de pesquisa significa que “não tem necessariamente com um produto no fim. Nós pesquisamos este bairro porque este bairro tem propriedades muito específicas”, conta.

Uma pesquisa que é feita em diálogo com as crianças e com os outros habitantes do Talude. “O primeiro passo é fazer amigos, conhecer as pessoas, falar com elas. Não é chegar aqui com um projecto imposto e ir embora. A arte que nós fazemos é comunitária, participativa e social; por isso tem sempre a ver com as pessoas.” É isso que o colectivo está a fazer no Talude.

“A falta de habitação resolve-se com o respeito pela legalidade”

Na véspera destas demolições – que aconteceram não só no Talude mas também com 16 barracas na Estrada Militar, na Amadora –, o movimento Vida Justa, que tem acompanhado de perto estas situações, enviava um comunicado às redacções, referindo que “estas acções desrespeitam os despachos judiciais já proferidos, e conhecidos dos municípios”. “Centenas de pessoas residentes nestes dois concelhos da área metropolitana de Lisboa, incluindo crianças, idosos e doentes, serão atiradas para a rua, sem qualquer alternativa habitacional”, denunciava a Vida Justa a 12 de Julho.

A Vida Justa acusava os dois municípios de estarem a violar a lei e os direitos humanos: “Estes municípios continuam a sua política de expulsão dos mais pobres, culpando as vítimas da crise da habitação e destruindo casas perante crianças e pais em desespero.” O movimento lembrava que muitas destas famílias trabalham e veem-se agora sem a base que lhes permite manter alguma estabilidade. “Esta política tem tido como alvo famílias em situação de grande vulnerabilidade que moram ora em habitações municipais, ora em construções precárias fruto do inacessível mercado privado da habitação.”

Vários moradores montaram tendas para não dormirem ao relento (fotografia LPP)

Por fim, a Vida Justa deixava um apelo ao Governo e às câmaras: “A falta de habitação em Portugal resolve-se com o respeito pela legalidade, com o encaminhamento das pessoas em situação de carência habitacional para soluções adequadas, com a regulação do mercado a favor do bem comum, com a construção de casas públicas, onde se cumpra de facto a função social de um imóvel, como consagra a Constituição da República Portuguesa.”

As demolições na Amadora não foram tão controversas, porque a autarquia, também socialista, terá assegurado respostas adequadas.

Depois de consumadas as demolições – em Loures e na Amadora –, a Vida Justa lançou uma carta aberta com o mote “Parar Com os Despejos e Resolver a Situação da Habitação”. Mais de 2000 pessoas e cerca de 60 organizações assinaram o apelo em menos de 24 horas. “Exigimos a suspensão imediata dos despejos perante a crise de falta de respostas habitacionais. Exigimos um programa nacional de emergência habitacional e realojamento para as famílias sem casa ou em risco de despejo. Exigimos humanidade, justiça e respeito. Porque viver com dignidade não é um privilégio, é um direito”, pode ler-se no texto que está aberto à subscrição de todos.

“Esta não foi a primeira intervenção, nem será a última”

Através das redes sociais, Ricardo Leão, Presidente da Câmara de Loures, comentou as polémicas demolições no Talude. “Não posso aceitar que movimentos políticos ou figuras públicas se aproveitem da pobreza e da fragilidade de algumas pessoas apenas para ganhar protagonismo ou alimentar causas populistas”, começou por dizer num vídeo difundido a 16 de Julho.

Ricardo Leão publicou um vídeo nas redes sociais a dar explicações sobre o caso do Talude Militar (captura de ecrã por LPP)

“As construções ilegais são inaceitáveis”, acrescentou, dizendo que “esta não foi a primeira intervenção, nem será a última. Já demolimos desde o início deste mandato cerca de 250 construções idênticas porque monitorizamos o território e somos intransigentes nesta matéria”. O autarca do PS diz que, “em todos os casos, o princípio é claro: não permitimos que se vivem condições humanas ilegais e perigosas”. “Não permitimos no Concelho de Loures a construção de barracas, não por falta de empatia, mas porque é a única forma de garantir a segurança e justiça para todos”, refere Leão.

Numa nota de imprensa, publicada no dia seguinte, 17 de Julho, a Câmara de Loures indicava que até Março de 2025 estavam identificadas “cerca de 40 construções precárias” no Talude Militar, sendo que até Julho se tinha verificado “um crescimento acelerado e descontrolado deste tipo de edificação ilegal” com “mais 152 construções”.

A autarquia afirma que “a Polícia Municipal e os fiscais da Câmara Municipal de Loures realizam operações de monitorização diárias neste e noutros locais” e que, “sempre que identificam a existência de uma nova construção, os seus ocupantes são de imediato alertados da situação de ilegalidade em que se encontram”, sendo-lhes recomendado o contacto com os serviços de ação social da autarquia para conhecer os apoios disponíveis.

De acordo com os dados divulgados, das 55 famílias que ocupavam as construções entretanto demolidas no Talude, “25 não se dirigiram aos serviços sociais”. Entre os 30 agregados familiares que foram atendidos, oito estão atualmente a receber apoio da Câmara Municipal, 14 encontraram alternativas habitacionais junto de familiares ou amigos, um recusou o apoio disponibilizado e sete não manifestaram interesse nas soluções apresentadas.

O Município detalha que “três famílias aceitaram o apoio de pernoita em unidade hoteleira e apoio alimentar”, “uma família conseguiu autonomizar-se com recurso ao mercado de arrendamento, tendo beneficiado de apoio municipal para o pagamento da caução e do primeiro mês de renda” e que “outras quatro famílias estão em processo de autonomização com apoio idêntico, estando a ser acompanhadas pelos serviços municipais”. Uma das famílias, refere ainda o comunicado, “recusou todos os apoios propostos, incluindo pernoita, alimentação e transporte entre a pensão e o local de trabalho, depois de ter aceitado, tendo regressado ao Bairro do Talude”.

“Todas as famílias foram contactadas”

A Câmara de Loures assegura que “todas as famílias que ocupavam as construções precárias entretanto demolidas no Talude Militar foram contactadas, acompanhadas e tiveram acesso a soluções concretas, ajustadas à sua situação”. Segundo a autarquia, a “opção pela pernoita no local resultou exclusivamente da recusa ou não adesão às respostas disponibilizadas pelo Município”.

Sublinhando que o fenómeno das construções precárias não se limita a Loures, mas afeta toda a área Metropolitana de Lisboa, a Câmara classifica o problema como “estrutural” e exige uma resposta coordenada a nível nacional. Por isso, solicitou uma “reunião urgente” com o Primeiro-Ministro “com vista à definição de soluções conjuntas para os desafios que as autarquias enfrentam no domínio da habitação e da ocupação ilegal do território”.

A autarquia conclui o comunicado referindo que “a situação vivida no Bairro do Talude Militar atenta contra a dignidade humana e representa um grave risco para a segurança, a saúde pública e a coesão social”. “Não podemos permitir que situações ilegais se perpetuem à margem do esforço coletivo por uma habitação mais justa, segura e integrada”, reforça.

Crianças lavam a loiça com a água que chegou ao bairro (fotografia LPP)

Numa entrevista a 21 de Julho à Antena 1, o Primeiro-Ministro disse compreender a necessidade de medidas dissuasoras para “evitar que seja normal as pessoas construírem as barracas”, mas admitiu a “compatibilização difícil” com a emergência social das pessoas desalojadas. Disse estar disponível para falar com as autarquias “Temos toda a abertura para dialogar com os municípios e contribuir para uma resolução deste problema”, garantiu em antena.

Autarcas e candidatos a autarquias têm-se mostrado solidários com Leão na mesma moeda que Montenegro. Carlos Moedas (PSD), Presidente da Câmara de Lisboa, tem dito que não podem ser toleradas barracas. Posição idêntica tem Alexandra Leitão (PS), candidata à autarquia lisboeta, que, ainda assim, destacou o Artigo 13º da Lei de Bases da Habitação sobre assegurar alternativas.

“Integrar, não incentivar atalhos”

No vídeo já referido, Ricardo Leão adiantava que “o que existia naquela zona não eram casas. Eram construções recentes, ilegais, sem água, sem luz, sem esgotos, muitas vezes em zonas de risco elevado, como linhas de alta tensão”.

“A pergunta que quase ninguém quer fazer é esta: se tivesse havido um incêndio, um curto-circuito, uma tragédia, quem é que respondia? Eu. Enquanto Presidente da Câmara Municipal de Loures, era a mim que cabia essa responsabilidade. Por isso, em nome da segurança e da dignidade humana, não aceito que ninguém viva nessas condições”, adicionou, reforçando também que “das famílias que nos procuraram, ninguém ficou sem resposta social. Repito com firmeza, nenhuma pessoa ficou sem apoio”.

“A ideia que basta construir uma barraca, ocupar ilegalmente um terreno ou instalar-se sem regras para ter direito de imediato a uma casa é injusta, insustentável e profundamente desonesta para com, por exemplo, as mais de mil famílias que estão em lista de espera na habitação municipal”, disse ainda Leão. “Justiça social não é dar a quem grita mais. Justiça social é garantir que todos têm os mesmos direitos, os mesmos deveres e as mesmas oportunidades de dignidade.”

O autarca adianta que não vai recuar, diz que está aqui “para integrar, não para incentivar atalhos”, e afirma que “promover a desordem não é ser solidário. é ser cúmplice de um ciclo de exclusão e de injustiça”, apontando o dedo a “movimentos, associações e figuras públicas”. Leão não referiu, mas nas entrelinhas pode ler-se que se refere à Vida Justa.

A Câmara de Loures tem vindo a actualizar os dados sobre o apoio às famílias através do seu site desde a semana das demolições. Na nota mais recente, datada de 21 de Julho, a autarquia indica que “dos 40 agregados familiares atendidos pelos serviços de acção social, 19 estão a receber apoio da Câmara Municipal de Loures, 14 indicaram ter encontrado alternativa habitacional junto de familiares ou amigos, quatro recusaram o apoio disponibilizado e sete não manifestaram interesse nas soluções apresentadas”. Acrescentava que “das 55 famílias que ocupavam as construções precárias entretanto demolidas, 15 não procuraram apoio social”.

Vida Justa criminosa?

Entretanto, na SIC Notícias, numa cimeira que decorreu na noite de 22 de Julho sobre a Grande Lisboa, o Presidente da Câmara de Loures revelou que apresentou uma queixa-crime ao Ministério Público denunciando uma “teia criminosa” de “comercialização de barracas” no Talude Militar. “Estão a comercializar barracas a dois mil e três mil euros cada cinco metros quadrados, com garantia de luz e água”, afirmou Ricardo Leão. Questionado pelos jornalistas da SIC Notícias, Leão completou: “É uma só pessoa, que está identificada, que tem lá uma barraca também.” O autarca considerou o caso “muito grave”, o que levou à apresentação de queixa. ”Isso é que é indigno”, disse.

Ao mesmo tempo, Ricardo Leão acusou o movimento Vida Justa de “prejudicar as pessoas” do Talude, “proibindo-as de falarem” com os técnicos da autarquia. “A Vida Justa está a manipular estas famílias”, apontou.

O movimento Vida Justa reagiu de imediato às declarações do autarca de Loures, acusando Leão de “mentir” e de tentar “desacreditar” as suas vozes. Através de uma nota nas redes sociais, refere que o Presidente da Câmara “usou a televisão para mentir sobre o movimento Vida Justa e sobre os apoios dados pela Câmara Municipal aos moradores do Talude”. E “foi mais longe: insinuou que a Vida Justa é uma rede criminosa, numa tentativa vergonhosa de criminalizar a participação cívica e política de quem luta por justiça”.

Para a Vida Justa, ao tentar “colar um movimento social à criminalidade”, Ricardo Leão “está a usar uma estratégia perigosa: desacreditar e reprimir a organização popular, como se fosse crime participar na vida política e reivindicar direitos”. E conclui afirmando: “Não aceitaremos esta tentativa de silenciamento”, sublinhando que não são nem nunca foram “uma rede criminosa”, sendo apenas um grupo de pais, mães, jovens e idosos organizados para “garantir dignidade” às suas famílias.

Os destroços (fotografia LPP)

Numa outra nota, a Vida Justa diz que “para proceder ao atendimento nos serviços sociais da Câmara, os moradores tiveram de se deslocar aos serviços sociais da autarquia, na Casa da Cultura de Sacavém” e que “muitos declararam não pretender fazê-lo por conhecer o único apoio social apresentado de forma sistemática: o pagamento de uma renda e uma caução, caso os moradores apresentem um contrato de arrendamento, que pressupõe terem meios para pagar as rendas para além do apoio de um mês”.

De acordo com o movimento, essa foi “a única solução apresentada”, mas, “pontualmente, pela existência de crianças de colo ou elementos com necessidades especiais, foi oferecido alguns dias em pensões, algumas a mais de 200 km de Loures e dos locais de trabalho dos moradores, sem condições para cozinharem ou lavarem a roupa, e nalguns casos, sem possibilidade de permanência durante o dia”. Indica ainda a Vida Justa que “cerca de 14 famílias que recorreram a vizinhos ou casas de familiares sobrelotadas para pernoitar, por algumas noites, acabaram excluídas dos apoios por se considerar que já tinham alternativa habitacional”.

“Os moradores não aceitam as propostas da Câmara de Loures porque elas não são sérias. A autarquia não está a procura de soluções para os moradores, está apenas a fingir, para a comunicação social, que apresentou alguma coisa aos moradores”, conclui o movimento Vida Justa, que exige ”soluções reais”.