A seca não se nota em Lisboa, mas a cidade pode dar o seu contributo

Que seca é esta? O que é uma “seca meterológica” e como está a afectar o país? E em Lisboa, porque é que não sentimos a seca?

Fotografia de Mário Rui André/Lisboa Para Pessoa

Caminhando ou pedalando à beira rio, o estuário do Tejo mostra-se magnífico como sempre. Por vezes, a maré baixa revela-nos um pouco mais da margem do rio, mas algumas horas depois voltamos a ter água até “à ponta” da cidade. Nos jardins, os relvados vão sendo regados, mantendo-se verdes. Em Lisboa, parece estar tudo normal – os dias de sol contínuos aquecem-nos num Inverno ainda assim frio. Estes dias sabem bem e distraem-nos da realidade do país, a viver uma das secas mais graves dos últimos anos.

Quem anda a pé ou de bicicleta na cidade acaba por ter uma maior percepção do clima em seu redor. Afinal, a meteorologia acaba por importar mais, tendo um impacto no vestuário que se leva naquele dia ou mesmo nas opções de transporte – um dia chuvoso costuma resultar numa menor quota modal para a bicicleta, por exemplo. Por isso, quem costuma caminhar ou pedalar em Lisboa já terá dado conta do quão pouco que tem chovido.

A memória dirá que o Outono passado foi seco e, tirando uma ou duas semanas no final de Dezembro, pouco ou nada choveu. Os dados do Instituto Português da Meteorologia e Atmosfera (IPMA), confirmam-no: “A seca meteorológica que se iniciou em todo o território em Novembro de 2021, mantém-se e agravou-se à data de 25 de Janeiro de 2022 no território continental. Verificou-se, em relação a Dezembro, um aumento significativo da área e da intensidade da situação de seca, estando todo o território em seca, com 1% em seca fraca, 54% em seca moderada, 34% em seca severa e 11% em seca extrema.”

Nas imagens, vê-se a barragem de Castelo de Bode na zona de Foz d’Alge, Figueiró dos Vinhos. O dia 24/01/2022 à esquerda, 4/04/2021 à direita (fotografias cortesia de Carlos Silva)

Seca meteorológica, o que é?

O IPMA fala em “seca meteorológica”, pelo que para compreendermos o cenário que o país atravessa, importa olhar para este conceito. De acordo com o próprio IPMA, a seca distingue-se tendo em conta o que afecta, podendo existir uma seca meteorológica, uma seca agrícola, uma seca hidrológica e uma seca socioeconómica. Falamos numa seca socioeconómica no caso de faltar de água às populações, isto é, de existir mais procura por recursos hídricos que oferta para fornecer às pessoas. A seca agrícola dá-se quando há falta de água disponível no solo para responder às necessidades agrícolas. Já a seca hidrológica diz respeito à redução dos níveis médios de água nos reservatórios e consequentemente no solo, sendo que se regista após um longo período de défice na precipitação.

A seca meteorológica é resultado de uma menor precipitação em relação aos valores habituais e pode não ser transversal ao país – isto porque as condições atmosféricas que resultam em deficiências de precipitação podem ser muito diferentes de região para região. O agravamento de secas meteorológicas podem originar escassez de água ao nível da agricultura, dos reservatórios e das populações, ou seja, pode levar aos outros tipos de seca já mencionados. A seca meteorológica só por si significa um “défice de precipitação”, que, se se prolongar no tempo, “vai provocar défices de água no solo, nos reservatórios e pode afectar as populações”, explica-nos Vanda Cabrinha, meteorologista no IPMA. Para já, não é essa a situação em que o país se encontra e o IPMA mostra-se ainda esperançoso que venham aí semanas ou meses chuvosos que possam pelo menos atenuar a situação.

Imagem via IPMA

O que está em causa hoje?

Actualmente, a seca meterológica afecta todo o território continental do nosso país: 11% está em seca extrema, 34% em seca severa, 54% em seca moderada e apenas 1% em seca fraca, segundo dados do IPMA de 25 de Janeiro. Para encontrarmos uma seca mais severa que esta é preciso recuar 17 anos, a Janeiro de 2005, quando 22% do território se encontrava em seca extrema, 53% em seca severa e 25% em seca moderada.

A justificar esta seca estão os baixos valores de precipitação registados nos últimos meses, particularmente em Novembro e em Janeiro. Aliás, o passado mês de Janeiro foi o sexto mais seco desde 1931 e o segundo mais seco desde 2000, a seguir ao tal Janeiro de 2005, segundo o IPMA. Choveu muito pouco – apenas 12% do valor normal –, o que tem consequências na quantidade de água no solo, que diminuiu significativamente em relação ao final de Dezembro em todo o território continental. Nas regiões Nordeste e Sul do país, já só existe 20% da água que seria expectável existir no solo e em muitos locais dessas regiões as plantas já não conseguem tirar mais água do solo. O valor médio de precipitação foi de 13.9 mm em Janeiro; em 75 % do território a quantidade de precipitação foi mesmo inferior a 10 mm – foi o caso de Lisboa, onde o total de precipitação se ficou nos 5,5 mm, ou seja, o que costuma chover nos meses secos de Julho e de Agosto (já lá vamos).

Imagem via IPMA

O passado mês de Janeiro foi ainda o quinto Janeiro mais quente desde 2000, com um valor médio da temperatura média do ar de 9,65 °C – superior ao valor normal em 0,84 ºC. Mais quente só mesmo o Janeiro de 2016, com 10,78 ºC. O valor de temperatura máxima do ar foi o mais alto dos últimos 90 anos, com um valor médio de 15,29 °C, mais 2,20 °C, em relação ao valor normal. O valor médio de temperatura mínima do ar foi de 4.02 °C, ou seja, 0.52 °C inferior ao valor normal. (Nota: o valor normal tem como referência o período 1971-2000.)

Fevereiro promete continuar a ser seco e ainda mais quente, pelo que se prevê um agravamento da seca meteorológica. “Para a situação de seca diminuir significativamente ou mesmo cessar no mês de Fevereiro, seria necessário que nas regiões do Norte e Centro ocorressem quantidades de precipitação superiores a 200/250 mm e na região Sul superiores a 150 mm, situação que somente ocorre em 20% dos anos”, escreve o IPMA. Em Portugal, para os meteorológicas, o ano hidrológico começa a 1 de Outubro e termina a 30 de Setembro, ou seja, inicia-se quando as reservas hídricas atingem geralmente o seu mínimo e começa o período chuvoso. Considerando o actual ano hidrológico até 25 de Janeiro, o valor acumulado de precipitação apresenta um défice de -255 mm, ou seja, choveu menos 45% que o normal.

Imagem via IPMA

Como é que Lisboa se quer adaptar?

Nas grandes cidades, como Lisboa, a seca não é sentida de forma directa. O estuário do Tejo que banha a capital continua cheio de água, os jardins continuam a ser regados e não falta água nas torneiras. Mas “o primeiro impacto” numa metrópole como Lisboa, diz Vanda, pode ser “no preço da carne, dos alimentos e da própria água”. “Não vai faltar água” – pelo menos à luz do cenário actual, mas a seca pode ter “um custo económico”. “Há cada vez mais probabilidade de haver mais secas e secas mais prolongadas, e isso pode vir a afectar as populações nas grandes cidades a longo prazo”, avisa a especialista.

Por isso, é urgente as cidades se adaptarem. Mais de três quartos dos cidadãos europeus vivem em zonas urbanas e as suas actividades familiares, sociais e económicas dependem do acesso água. Cerca de um quinto do volume total de água doce captada na Europa alimenta os sistemas públicos de abastecimento de água – água destinada a agregados familiares, pequenas empresas, hotéis, escritórios, hospitais, escolas e algumas indústrias.

Para já, Lisboa está a concluir o seu Plano de Acção Climática (PAC), um documento que traça a resposta da cidade às alterações climáticas, incluindo à maior probabilidade de secas, num horizonte de oito anos – até 2030. Também a Área Metropolitana de Lisboa (AML) conta com um plano de resposta à crise climática – o Plano Metropolitano de Adaptação às Alterações Climáticas (PMAAC-AML), criado em 2019. E, a nível nacional, existe um Plano de Prevenção, Monitorização e Contingência para Situações de Seca.

Vanda lamenta que as respostas do país à seca estejam ainda “muito no papel, com medidas pré-determinadas para agir”, existindo “dificuldade ainda regionalmente de aplicar essas orientações”. Algumas dessas respostas seriam simples: optimizar a rega para horários matinais ou nocturnos, em que se consiga reduzir ao máximo a água que nesse processo acaba por evaporar; evitar colocar relvados em rotundas ou outras zonas sem utilização humana, apostando em prados de sequeiro que vivam ao sabor das estações e que não necessitem de rega artificial; ou evitar elementos hídricos meramente decorativos que promovam apenas o desperdício da água em vez da sua reutilização.

Numa versão preliminar do PAC, que esteve em consulta pública no ano passado, lê-se que “entre as alterações climáticas projectadas para Lisboa até final do século”, se prevê uma “diminuição da precipitação média anual, antevendo- se o agravamento das situações de seca e de escassez de água”. Na capital portuguesa, chove uma média de 743 mm por ano, sendo os meses mais chuvosos os de Novembro e Dezembro com valores superiores a 115 mm/mês. Os meses de Julho e Agosto são os mais secos, com valores mensais na ordem dos 4 e 6 mm – contudo, note-se que este Janeiro de 2022 foi tão seco em Lisboa como um habitual mês de Verão. Em média, por ano, registam-se apenas 24 dias com valores de precipitação superior ou igual a 10 mm. Por outras palavras, em Lisboa já chove pouco e é expectável que continue a chover menos e que haja mais situações de seca e de escassez de água.

No PAC, Lisboa estipula “um conjunto de metas quantificáveis para a minimização dos impactes associados às principais alterações climáticas projectadas para Lisboa”, incluindo a diminuição da precipitação. A cidade precisará de apostar “na eficiência e gestão sustentável do recurso água, bem como a regulação do ciclo hídrico em meio urbano e melhoria do sistema de drenagem de águas pluviais”. Olhando a medidas concretas, até 2030, Lisboa pretende reduzir em 30% o consumo de água potável no universo da Câmara Municipal (face a 2018) e criar 30 hectares de novas áreas de prado biodiverso de sequeiro. Estas áreas de prado são ecossistemas naturais e que se gerem sozinhos segundo os ciclos da água – verdes no Inverno, depois das primeiras chuvas; alaranjados no Verão. Os 30 novos hectares de prado de sequeiro significa um crescimento de 10 vezes deste tipo de zonas na cidade; e 20% desses 30 novos hectares resultarão da reversão de águas actualmente regadas.

Lisboa procurará ainda aumentar a permeabilidade do solo, permitindo aproveitar melhor cada pingo de água da chuva – isto poderá ser feito, por exemplo, com a opção por pavimentos que permitam a infiltração da água no subsolo ou com o aumento dos espaços verdes na cidade (até 2030, pretende-se que 25% de Lisboa sejam áreas verdes). Aliás, a autarquia vê na sua infraestrutura verde uma “ferramenta fundamental para a adaptação climática” e procurará “soluções de base natural”, como os já referidos prados de sequeiro, mas também a criação de bacias de retenção de água a céu aberto que permitam “uma melhor gestão do ciclo da água, ao promover a sua retenção e infiltração” em dias de precipitação.

A nível metropolitano, as medidas não são muito diferentes. A AML prevê aumentar a resiliência dos sistemas naturais e agroflorestais à escassez hídrica, recuperando a vegetação ribeirinha, optimizando a água disponível para rega agrícola, promovendo pequenas barragens e charcas para uso dos agricultores, ou promovendo o cultivo colectivo. Pretende-se também aumentar a eficiência na distribuição e consumo de água, operacionalizando um plano metropolitano de gestão de secas, monitorizando e corrigindo perdas de água nos sistemas de distribuição, promovendo a eficiência hídrica em espaços verdes e no meio urbano, sensibilizando a população para a poupança deste recurso, ou apostando na reutilização das águas residuais em vez do seu encaminhamento directo para o esgosto. Por último, o plano metropolitano prevê uma melhor gestão dos recursos hídricos, com a sua monitorização através de dados, o aumento da capacidade de armazenamento, a criação de mais superfícies permeáveis em meio urbano, ou uma melhor fiscalização e licenciamento das captações de água e das descargas poluentes.

A seca que hoje vivemos não é inédita. As situações de seca são, há vários anos, frequentes em Portugal Continental, afectando sobretudo as regiões a Sul do Tejo, com consequências severas na agricultura e pecuária. A seca é considerada um desastre natural, que, ao contrário de outros, actua de forma lenta e silenciosa, podendo não ter impactos imediatos na vida humana. Contudo, se essa seca se prolongar, como vimos anteriormente, pode afectar populações inteiras durante muito tempo. Não podendo ser evitadas, as secas podem ser minimizadas com uma resposta adequada a começar pelas cidades.

Como referido também, a seca não afecta o país todo por igual. Se em Lisboa, este problema pode ser menos sentido, o mesmo não é em Setúbal, por exemplo. Este concelho integrante da AML, localizado a Sul do Tejo, foi dos mais afectados por secas no período entre 2000 e 2020, de acordo com dados do IPMA recolhidos pelo Público. Vanda Cabrinha explica se deve a “problemas estruturais” da região, “ao nível de barragens e outros reservatórios”, levando a um “défice estrutural de água”. Se a zona interior a Sul do Tejo está hoje servida pelo Alqueva, o mesmo não se verifica no litoral entre a Península de Setúbal e a Costa Alentejana. No meio de Fevereiro e no final do mês, o IPMA irá fazer novos pontos de situação sobre a seca.

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