(Avenida da) Liberdade perdida…

Opinião.

Os actuais problemas de congestionamento de tráfego na Avenida da Liberdade não se resolvem por lhe acrescentar capacidade de escoamento, fazendo das laterais um reforço da faixa central.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Em 2012, na apresentação pública das alterações a realizar nas laterais da Avenida da Liberdade, António Costa, então Presidente da Câmara de Lisboa, enunciava os objectivos da mudança: reduzir o volume de tráfego e melhorar a qualidade do ar na Avenida, aumentar a segurança da circulação, proporcionar maior comodidade para as pessoas e favorecer uma boa ligação entre os passeios e os espaços centrais arborizados. A decisão fora precipitada por um processo movido pela Comissão Europeia ao Estado português pelo não cumprimento da lei da qualidade do ar na Avenida.

Com efeito, apesar de algumas tentativas para resolver esse problema – que passaram pela lavagem da faixa de rodagem para remover os poluentes aí depositados, por uma melhor gestão dos cruzamentos semaforizados, introdução de uma tarifa mais alta e redução do tempo máximo de estacionamento nas laterais da Avenida e por campanhas de promoção do transporte colectivo neste eixo, bem servido pela Carris e o Metro de Lisboa –, a concentração de poluentes continuava a ultrapassar os limites legais. A solução teria, pois, de passar pela redução do volume de tráfego e a interdição de circulação aos veículos que não respeitassem as normas europeias quanto a emissão de poluentes, o que ocorreu com a introdução de uma ZER (Zona de Emissões Reduzidas) logo em 2011 na Avenida para veículos anteriores a 1992 (norma Euro 1), ainda que com excepções para residentes, veículos de emergência e transportes públicos.

Esta nova proposta para a circulação automóvel nas laterais da Avenida da Liberdade seria objecto de um período experimental de três meses, dando cumprimento ao acordado numa dezena de reuniões públicas com múltiplos interessados: residentes, comerciantes, empresários da hotelaria e restauração, escritórios de advogados, associações comerciais, operadores de transportes e junta de freguesia… Nessas reuniões, foram apresentadas três alternativas para se atingirem aqueles objectivos, as quais traduziam outras tantas visões para o futuro da Avenida:

  1. cortar o trânsito na faixa central e concentrá-lo nas laterais (o que viria a ser testado com a “feira agrícola” promovida por uma grande cadeia de hipermercados);
  2. cortar o trânsito e o estacionamento nas laterais, permitindo estacionamento na faixa central e ligando os passeios ao espaço arborizado;
  3. manter a circulação na faixa central mas invertendo os sentidos nas laterais e limitando a velocidade a 30 km/h para permitir a coexistência com a circulação de bicicletas, mantendo aí o estacionamento nos dois lados enquanto não fosse construído um parque de estacionamento na Rua Rosa Araújo.

Após a discussão realizada, foi decidido testar esta última alternativa.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Findo o período experimental, considerando o que se apurou e as novas reuniões realizadas, procedeu-se a alguns ajustamentos, nomeadamente assegurar a continuidade da circulação nas laterais em vez de manter o seu funcionamento em bolsas.

O novo sistema de circulação permitiu reduzir o tráfego nas laterais de 400 veículos nas horas de ponta para cerca de 50 a 100 (este valor apenas atingido no quarteirão do Tivoli por aí existir um parque de estacionamento), cumprir pela primeira vez os limites legais de concentração de poluentes definidos na lei da qualidade do ar (excepto no tocante a partículas devido à tolerância quanto à circulação de táxis e autocarros a diesel que não respeitavam as normas europeias Euro 1), passar a ter lugares de estacionamento disponíveis e eliminar o estacionamento abusivo em segunda fila. Não se registaram acidentes e a permeabilidade entre os passeios e os espaços arborizados foi confirmada pelo maior número de pessoas a passear nessa parte da avenida.

Por razões que desconheço (deixei de ser vereador no final de 2013) as intervenções projectadas para a Avenida da Liberdade acabaram por não se realizar nos mandatos seguintes. Não se substituiu o pavimento das laterais por um piso que assegurasse a continuidade entre os passeios e os espaços arborizados, ainda que permitindo uma circulação automóvel condicionada e tornasse a circulação em bicicleta mais segura e confortável; não se construiu o previsto parque de estacionamento a meio da Avenida, em complemento dos existentes nos seus topos (Marquês de Pombal e Restauradores); e, após 2015, não se avançou com o aumento das restrições da Zona de Emissões Reduzidas – que se quedaram por abranger apenas os veículos anteriores à norma Euro 3 (2000) na Zona 1, que abrange a Avenida da Liberdade, e Euro 2 (veículos anteriores a 1996). Mas, sobretudo, não se implementou a sua fiscalização pelo sistema automático de leitura de matrículas, cujo concurso para aquisição das câmaras estava para ser lançado desde 2013.

Proposta de alteração dos pavimentos das laterais à data (CML)

Por outro lado, deixou-se degradar o piso das laterais e não se interveio na regulação semafórica dos cruzamentos, deixando que os congestionamentos na faixa central se acentuassem. Tudo isto acabou por retirar maior impacte às medidas tomadas e deixaram consolidar a ideia de que a Avenida da Liberdade tinha passado para um nível secundário das preocupações da Câmara Municipal de Lisboa, situação que se acentuou quando o executivo municipal atribuiu prioridade absoluta às intervenções realizadas no eixo central da cidade – Avenida da República/Saldanha/Fontes Pereira de Melo.

Os actuais problemas de congestionamento de tráfego na Avenida da Liberdade não se resolvem por lhe acrescentar capacidade de escoamento, fazendo das laterais um reforço da faixa central. A solução passa por uma melhor coordenação dos semáforos (retomando o conceito de “onda verde”, para o que é necessário dotar os serviços da Câmara de capacidade técnica para intervirem neste domínio, invertendo a política seguida nos últimos dois mandatos autárquicos); resolver o problema do cruzamento com a Rua Alexandre Herculano (o que implica eliminar a viragem à esquerda de quem procede do sentido descendente da Rua do Conde de Redondo), mudar o pavimento das laterais, tal como estava previsto no projecto inicial (ver figura anterior), onde peões e bicicletas teriam melhores e mais seguras condições de circular. Ao proceder de outro modo irá assistir-se ao aumento do congestionamento na faixa central e nas laterais da Avenida, ao pior funcionamento da rotunda do Marquês de Pombal e à segregação funcional entre os passeios e os espaços arborizados, além de não resolver, antes agravar, a concentração de poluentes na Avenida.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Esta intervenção que a Câmara Municipal de Lisboa irá agora levar à prática resulta da aprovação de uma proposta nesse sentido no anterior executivo municipal. Para não se dizer que essa proposta era uma afronta directa ao que António Costa tinha defendido publicamente quando era Presidente da Câmara, foi apresentada por uma vereadora do PSD e foi “englobada” numa proposta mais abrangente da criação de uma ZER dita “ABC”, que na prática reservava o acesso à Baixa e Chiado aos residentes, turistas e veículos eléctricos, ainda que, obviamente, com algumas excepções – como sempre acontece neste tipo de restrições à circulação automóvel. Coerente com a política de transformar o centro histórico de Lisboa num parque turístico e para residentes ricos, a proposta era mais um passo nessa direcção. Infelizmente, mesmo que quisesse alterar esta proposta, o actual executivo municipal, não tendo maioria na Câmara ou na Assembleia Municipal, não o conseguiria fazer. Estamos assim condenados a mais uma tergiversação política cujos maus resultados não tardarão a fazer-se sentir.

Com quase 50 anos de prática profissional, onde procurei aplicar os ensinamentos dos Mestres com quem trabalhei (Nuno Portas, Costa Lobo, Bruno Soares, Manuel Salgado e Vassalo Rosa, entre outros), sempre procurei tomar decisões fundamentadas no estudo da realidade onde intervinha e em estudos técnicos que justificassem as acções propostas. Com dúvidas e certamente com erros, mas sempre disponível para ouvir outras opiniões, reconhecer o erro e corrigi-lo. O que não se pode aceitar é questionar propostas com base no “achismo” e decisões obedecendo a imediatismos sem fundamento técnico.


Uma versão reduzida deste artigo foi publicada no jornal Público de 29 de Março de 2023.

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